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2.2 O ethos zeloso e a condição ontológica do modo de habitar cuidadoso

2.2.1 Habitar e resguardar na moradia cuidadosa da Terra/terra

A vida é a condição inerente à Terra, como a Terra é, porque, também, abriga o mistério do fenômeno biológico (ou sagrado) da vida. Mas a Terra, organismo vivo, não é só isto. É também morada. Sendo a Terra matriz da vida e nela encontrando sua ordem e seu movimento, a vida humana, igualmente, recebe Dela sua condição inexorável de ser, seu habitat, seu oikos. Ademais, ao nos oferecer o oikos, a Terra também nos oferta um ethos, na medida em que a vida que se conhece é terrena. Nessa perspectiva, se da Terra recebemos um corpo físico, por igual, recebemos Dela um sentido, formas de conduta, que ampliam as

possibilidades da reflexão sobre o tema. O corpo que nos reverte é pó, húmus, material do qual construímos nossa morada corporal, humana – seres feitos de ou a partir do húmus. A Terra ganha, dessa maneira, status ontológico, o qual pode apoiar visões sobre a construção de novas éticas, com base no lugar que o ser humano é colocado na presencialidade de seu ser e na sua relação com a teia da vida sobre o Planeta. Contudo, já não é a Terra como planeta de que está a se falar, mas, da Terra como um fundamento existencial que permite ao ser humano habitar neste planeta e sob os céus.

No pensamento de Heidegger, o caráter essencial da Terra não é o de ser o planeta que abriga e sustenta a physis (Natureza) na abrangência do cosmos. Ela o é, mas, numa qualidade diferente daquela com a qual ela é percebida quando se estudam os sistemas físicos e naturais do Planeta como fenômeno puramente material. Para Heidegger (2006a), a Terra se oferece como terra para que tudo nela possa vicejar por uma condição que misteriosamente já se oculta ao se oferecer como aquilo que sustenta. Na essencialidade de seu devir, a terra carrega o guardado do ser, aparecendo como uma região que se presenteia, no fechado de si mesma, para que o ser aconteça como autoemergência em tudo que compõe a terra. Ou seja, as coisas naturais crescem, se nutrem e se desenvolvem na e da terra porque nela encontram o ser que se res-guardou para que as coisas possam se dar no aberto do mundo (FOLTZ, 1995).

Heidegger nos diz que ―(...) terr está presente como essenci lmente quilo que se abriga em tudo que emerge. (...) A terra é o suporte servidor, florescendo e frutificando, irrompendo p r for n roch e n águ , emergindo p r pl nt e o nim l‖ (HEIDEGGER apud FOLTZ, 1995, p. 167). As coisas do mundo e da natureza – a vida (a mais intensa das coisas naturais) – aparecem, dessa maneira, porque a terra é o abrigo, fechado, que permite que o vicej r d s cois s conte . ―(...) A terr suport e sustent , conserva e alimenta apenas tr vés do c ráter int cto de seu fech mento‖ (FOLTZ, 1995, p. 169). Ao se dá, terr já se contém, se retém, aparecendo no essencial dos seres que dela emergem. Neste fechamento que se abre para o eclodir abundante dos seres o caráter mesmo da terra é o de nutrição. E na nutrição el p rece como nutriente e como o florescer d cois nutrid , pois, ―(...) terr é o sustento de todo gesto de dedic o‖ (HEIDEGGER, 2006 , p. 128). A ontologi do h bit r terra se imbrica ao ôntico do cuidado: habitar atento ao ser aí na terra como condição para o vínculo cuidadoso na construção do mundo.

Mas, qual a implicação disto para as questões discutidas aqui? A terra, sendo o abrigo nutridor que nos sustent dem nd um ―conserv r‖, um ―s lv r‖, este brigo como condi o para que os humanos possam encontrar nela sua morada. A maneira com a qual o humano pode vigorar em seu ser liga-se essencialmente ao fato de que somos ao modo de ser terreno.

S ntos, L. (1994) firm : ―(...) terr n o nos dá apenas o pão, o teto, roupa, a companhia. Provendo-nos de tudo isso, Terr nos dá, sobretudo, o nosso modo de ser‖ (SANTOS, L., 1994, p. 52). O viço da terra chama permanentemente o humano a enxergar nela o deitar de suas próprias raízes. Então, como acontece este modo de ser que, crescido da terra (e sob os céus), é oferecido o hum no p r que este sej ? Heidegger ssin l que ―(...) ser homem consiste em h bit r‖ (HEIDEGGER, 2006, p. 129). Em que consiste esse h bit r que é condição ontológica do humano? Para ele, este habitar não se refere apenas ao ato do humano se acolher em uma guarita, em um lugar que lhe ofereça proteção física em meio a todo o ambiente. Não diz apenas de um lar que lhe ofereça conforto psicológico pelo convívio familiar com outros iguais. Este habitar pressupõe, antes de tudo, um enraizamento na terra, um estar na nutrição vicejante da terra, resguardados, na medida em que o humano se sente compelido a dele zelar, enquanto vela pelo seu oculto. Sobre o habitar ao modo do resguardar, Heidegger (2006a) reflete:

Resguardar é (...) quando deixamos alguma coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência, seguindo a correspondência da palavra libertar [freien]: libertar para a paz de um abrigo. Habitar, ser trazido à paz de um abrigo diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. (...) Mostra-se tão logo nos dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre essa terra (HEIDEGGER, 2006a, p. 129).

Neste sentido, o habitar enquanto resguardo acontece quando, construindo lugares no mundo, o humano mantém nutridas suas relações essenciais de afeto, proteção, compaixão e liberdade com a terra. Na percepção de Heidegger, não se habita a terra apenas no ato de utilização de seus recursos para se construir casas; não se habita explorando ou esgotando a terra. No habitar que resguarda a terra não é subjugada, nem a ela o humano está submetido. Habita-se porque se é na terra, porque pacificamente e livres nela os humanos se enraízam enquanto cuidam para que sua essência seja preservada em seus aparecimentos. Assim, no h bit r, o hum no é c p z de s lv r terr . S lv r, qui, ―(...) n o diz pen s err dic r um perigo. (...) Signific , n verd de: deix r lgum cois livre em seu pr prio vigor‖ (HEIDEGGER, 2006a, p. 130). Salvar a terra pressupõe, assim, uma aliança afetiva e atenciosa com ela, para que, em todo o uso que dela se possa fazer, ela e seus seres permaneçam vicejando como terra e seres, no florescer e vigorar de cada animal e planta, na diversidade dinâmica e sistêmica das paisagens, no correr livre das águas de rios e riachos, na nutrição guardada nos pântanos e mangues, na profundidade imaculada dos oceanos, na essencialidade contida em cada rocha e cristal, no aberto do ar que reveste o planeta, ou

mesmo no sorriso de uma criança, nas mãos e pés dos velhos, nos gestos livres de cada homem e de cada mulher sobre esta terra. O habitar para o cuidado desdobra-se em cada ato de atenção e de deixar crescer o que se é.

No habitar que salva enquanto cuida, o oculto da terra, sua essência e devir, permanece ainda encoberto no desocultamento da produção e da construção humanas. No oculto da terra resguarda-se a seiva que nutre, pois o ser da terra é na nutrição que se oferece. Porém, no oferecimento de suas seivas e de sua vida, a terra estará permanentemente chamando, provocando os mortais a cuidá-la, a resguardá-la, a salvá-la. Pois, como nos diz Carneiro Le o (1988, p. 56), ―(...) como quer que se determine posi o do mundo n hist ri d hum nid de, TERRA lhe opõe sempre s tensões de su prote o‖. M s, o ser humano só salva porque já se abriu para receber dela sua nutrição e proteção. É necessário que cresça dentro dele a vontade de tal proteção, já que contra ela (a terra e sua proteção) tantas vezes se rebel : ―(...) ser vivo o homem perm nece inevitavelmente ligado à vida, de cujos laços seu ‗peito doído de poder‘ sempre tem procur do sep rá-lo‖ (CARNEIRO LEÃO, 1988, p. 56). Dessa forma, na modernidade moderna, a rebeldia (o peito doído de poder) aparta da terra o ser humano porque dela não se sente nutrido, pois dela deseja o ganho e não o cuidado.

Diante de tal modo de ser que tudo quer dominar (porque impõe, explora, controla), já não basta uma atitude que se realiza por que espera? Não se requer, na modernidade moderna, um modo de produzir o qual enquanto faz deixa o ser das entidades aparecerem pelos feitos cuidadosos? Será que caminhos pacíficos no modo de habitar nesta terra podem ser observados na atitude de escuta atenta para com o res-guardado da terra, sob os céus? Como enxergar tal possibilidade na contemporaneidade? É possível que o modo de habitar (zeloso) proposto pelas ecovilas genuínas (com base na sustentabilidade, no holismo, na comunidade) tenha algo a contribuir aos sistemas naturais da Terra (do lugar ao mundo) diante das mazelas de sociedades humanas ensimesmadas no ethos capitalista e tecnocientífico?

O ethos do cuidado suscita o habitar ao modo de construir, suscita ocupar a superfície terrestre no resguardar da terra. O habitar se conforma assim na produção do mundo sobre a terra. O humano cria então uma geografia da terra, e a técnica materializa a possibilidade ôntica e ontológica da existência do espaço. Assim sendo, o ethos cuidadoso propõe novas percepções da relação entre técnica e natureza na construção do espaço geográfico, bem como novas abordagens epistemológicas e produtivas da relação entre sociedade e natureza. Pressupõe uma ontologia da técnica e do espaço que possa compreender o processo de tensões vividas entre o lugar e o mundo, entre a comunidade e a sociedade na construção do habitar humano na Terra. A fenomenologia da técnica zelosa se torna geográfica, então. Deste modo,

a condição técnica é tanto necessária para se pensar as crises contemporâneas como condição

sine qua non para a apresentação das ecovilas genuínas como reações a essas crises a partir da

construção de novas horizontalidades socioespaciais.

PARTE 2

TÉCNICA E ESPAÇO GEOGRÁFICO