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2.3 Técnica e espaço geográfico Formação do mundo e artificialização da

2.3.1 Técnica e espaço geográfico Do meio natural ao meio técnico-científico-

horizonte da experiência e horizonte da expectativa (RICOEUR, 1988). Abre-se espaço para o acontecer do diálogo entre temporalidades diversas na tentativa de aproximar a técnica de um caráter original de tekné49, que é acolhido e acolhe o lugar como ambiente unido – Terra e mundo. A técnica como elemento constituinte do lugar, porque pertencente ao grupo, se oferece como relações e mediações com o meio, mas também, em função de seu caráter finalístico (e teleológico), é um modo de auscultar a terra e de representar o mundo. Recobrando suas origens gregas, Barbosa (1987) afirma:

(...) Caso levemos em consideração a raiz tek – (...) que significa dar luz, gerar – percebemos que na noção de tekné ressoa o mesmo sentido implicado no termo ―idei ‖. Se ―idei ‖ signific origin lmente ―form visível‖, os gregos, o formularem uma ideia, viam-na, contemplavam-na enquanto uma expressão desvelada do ser, isto é, enquanto ser manifestando-se na sua própria luminosidade. Ora, se a noção de tekné designava o conjunto teórico-prático das várias técnicas, ela possuía, na realidade, uma dimensão desveladora, isto é, (...) uma expressão dopróprio ser enquanto totalidade. (...) Enquanto meio de desvelamento, enquanto o tornar visível de uma forma, o agir técnico acompanhava, digamos, os contornos da

physis e aí encontrava os seus limites. Neste sentido, esta ação possuía uma

dimensão não ofensiva e não autônoma que já não mais se encontra no fazer técnico moderno (BARBOSA, 1987, p. 56).

A técnica forma um conjunto de objetos, métodos e instrumentos que permite o realizar das comunidades de homens enquanto propõe e solicita o apresentar-se dos entes do mundo como aquilo que são. Se na perspectiva ontológica a técnica vincula a ação produtiva humana ao caráter dos seres desvelados, na perspectiva geoantropológica a técnica é dada ao homem como o homem é dado à história. O vínculo entre humano, técnica e história recria a face do Planeta ao inventar a geograficidade do mundo e a se tornar consciente de si. Desde a origem, a técnica é parte constituinte do ethos humano e da criação do espaço geográfico. O agir produtivo humano estabelece o vínculo entre técnica e espaço e possibilita a realização do conteúdo dos lugares. Para Santos, M. (1996), o espaço só pode ser pensando em sua relação indissociável com o tempo, pois se materializa como sistema de objetos produzido nas vicissitudes dos eventos (sistemas de ações). Na tessitura da história, o espaço torna-se geográfico quando aparece por igual a técnica como produto e produtora das ações. Para Santos, M. (1996), a técnica cria o território e se torna, ela mesma, uma dimensão do espaço. Por outro l do, n o existe técnic sem esp o. ―(...) D í que técnic s existe como meio-

técnico‖ (MOREIRA, 1999, p. 152). Este l o entre esp o e técnic oferece entendimento filosófico e político sobre um mundo em intensas mudanças.

A técnica vincula o humano à terra-território (meio físico, lugar de morada) à medida que as pessoas se tornam materialmente presentes e coletivamente agentes no mundo por meio da transformação do meio natural pela ação do trabalho, isto é, da produção (SANTOS, M., 1996). A técnica como meio e método também se torna ato próprio da ação que unifica tanto funcionalmente quanto ontologicamente o trabalho humano ao lugar por meio de mecanismos econômicos, sociais, culturais e políticos. Como sistema produtivo e valorativo, a técnica assume também um caráter cultural próprio e aparece como fundamento da instituição do ethos de povos e sociedades. Segundo Santos, M. (1996), a artificialização do espaço é um dado geográfico que se estende ao longo da História.

Não só todas as sociedades dispõem de técnicas, mas o trabalho e o conhecimento se tornam também modos de ser da natureza, na medida em que os eventos naturais são historiados na construção do espaço enquanto parte-fundamento do ser social. A técnica torna material a relação sociedade e natureza na formação do espaço geográfico e sustenta o telos do modo de intervenção social sobre o meio. Quanto mais próximas das matrizes ontológicas da natureza, mais a técnica possibilita o ethos zeloso e menor se torna seu impacto. Quanto mais expansiva, maior sua abrangência espacial e maior seu impacto. No início de alcance local, depois de contexto regional, nacional e internacional, a técnica expandida passa a construir um espaço geográfico unificado. Em análise ao mesmo tempo dialética e fenomenológica da produção do espaço, Santos, M. (1996) relata a existência de três etapas na relação das sociedades com a natureza sob a intermediação técnica.

No início, a natureza era meio de vida e as técnicas, autônomas e locais, se uniam ao meio natural sem impor-lhes grandes transformações (SANTOS, M., 1996). Circunscritas às experiências civilizatórias e antropológicas geograficamente situadas, nesse período, a técnica vincula-se ao lugar primeiro como modo de criação das condições materiais de existência coletiva. Circunstancial e local, a técnica era ajustada aos modos de vida encontrados nas diferentes regiões do planeta. O rigor das condições naturais de sobrevivência grupal de certo modo condicionava o fazer/saber técnico e a tipologia dos instrumentos de transformação do meio. Por outro lado, a técnica aparece aí como modo de significação da relação do grupo com o lugar de morada a partir do trabalho e da relação simbólica com a terra.

O peso da sobrevivência material que condicionava a técnica localmente não deixava de ser também modo de comunicação com o inaudito a partir de sistemas de valores sacralizadores do fazer/saber humano (ELIADE, 1980). Para as sociedades arcaicas e

tradicionais, o espaço também é habitado por outros seres não humanos (biológicos ou não), visíveis ou invisíveis, com os quais o saber/fazer produtivo e técnico necessita se relacionar. São tempos em que o encanto e a magia ainda faziam parte de um mundo habitado também por deuses e espíritos, apresentados aos grupos e povos ao modo de espectro, como símbolo devocional e litúrgico ou como presença (DARDEL, 2011, pp. 48-66). No contexto tradicional e arcaico, a técnica é presenteada pelos deuses ao mundo. Se de um lado os deuses se colocam distantes, pertencentes à ordem da reverência e da exaltação mitológica, por outro, são próximos ao ponto de oferecem o sentido sacro ao fazer humano. À técnica (objetos e ações) é imposto um limite sobrenatural para que se mantenha contida a propensão humana à

hybris; este sustenta a ação por meio da crença de que a técnica se vincula diretamente à

realidade inaudita da qual o humano suspeita desde seus primórdios.

Com a emergência do meio técnico, o espaço se mecaniza, a lógica instrumental desafia a lógica natural e as técnicas passam a serem extensões dos lugares que, aos poucos, se tornam desencantados (SANTOS, M., 1996). A técnica tradicional aparecia como modo de desvelar local, cotidiano e sazonal dos ciclos naturais. Porém, o fazer técnico moderno passa a quantificar universalmente o tempo pelo relógio e ordenar os acontecimentos da natureza pela objetivação científica do mundo. Na lógica do cálculo que vigora nesse período, a técnica assume a conformação dada pela produção industrial para o mercado, pela medida rítmica da máquina e valoração do dinheiro (SANTOS, M., 1996). O meio técnico aparece, então, com a intensificação das relações internacionais ocorridas pela expansão moderna da indústria e da cidade, mas que se dá de forma desigual na apropriação dos objetos técnicos e na assimilação da racionalidade técnica instrumental pelos diferentes países, regiões e áreas. Pode-se dizer, assim, que nesse período a técnica passa ter um impacto regional e, em menor grau, nacional e internacional. Este fato possibilitou, pela primeira vez na história, a inauguração de uma divisão internacional do trabalho.

A grande novidade desse período é que os novos objetos e sistemas técnicos, inventados para funcionar à cadência artificial do produtivismo, ajudam na consolidação da superação da condição natural humana. A partir da II Guerra Mundial, em especial a partir da década de 1970, esse fato começa ganhar novas conotações. Sob a égide do mundo em disputas geopolíticas, a intensificação da ação do mercado e da civilização industrial e, sobretudo, as inovações técnicas (quantitativas e qualitativas) nas áreas do transporte, comunicação e da construção nova fase tecnológica surgem como meio técnico-científico-informacional. Para Santos, M. (1996), a civilização contemporânea cria um espaço geográfico integrado no qual ―(...) segund n turez tende ser tot l‖ (SANTOS, M., 1996, p. 203).

Já solidificada do ponto de vista civilizatório e tecida como instrumental material e intelectivo do capitalismo (e das instituições a ele vinculadas), a técnica se consolida como tecnociência e passa a ser o substrato constitutivo do espaço geográfico intrincado globalmente. A condição inicial da técnica como artefato ou artifício é superada pela modelação racional e universal da tecnociência, unificadora do espaço e tempo pela construção de uma teia de fluxos tão intensa quanto é a materialização da unicidade instrumental do espaço. No modo de aparecer da técnica na contemporaneidade surge um caráter político explicito que atua sobre os diversos grupos e povos a partir do poder de reificação e de enfeitiçamento dos sistemas e objetos técnicos, bem como pela organização global das forças controladoras da mais-valia global.

Em síntese, aquilo que se inicia como experiências e habilidades singulares se expande pela presença da técnica como dado essencial da política e do social. A tendência à aceleração e à articulação espacial mundial torna os objetos técnicos carregados de intencionalidade, receptáculos e condutores privilegiados de informação. O espaço, intensificado em seu caráter fixo também se consolida como fluxo, inaugurando assim novos modelos de espacialidades e sociabilidades, como no caso das tecnologias digitais (DI FELICE, 2007). Nesse contexto, paradigmas de entendimento da relação entre mundo e Terra entram em disputas a partir de novos conteúdos e propostas horizontalizadas do espaço geográfico.

2.3.2 Unicidade técnica e a tessitura da tecnosfera-psicosfera. A constituição vertical e