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2.1 Ética e modernidade Habitus e habitat na era da crise civilizatória

2.1.4 Crise, tempo e a proposição de um pensamento para além da modernidade

A tarefa de identificação dos contornos e dimensões da crise da razão (e da modernidade) é ao mesmo tempo complexa e de difícil realização, especialmente, no caso desta tese, ao relacioná-las a um fenômeno socioespacial específico, as ecovilas. Nessa perspectiva, Ricoeur (1988) chama a atenção para o desafio que é expor e analisar os meandros da crise e relacioná-la com a modernidade. Para ele, três eixos fundamentais são abordados: a dificuldade de unificação das diversas abordagens temáticas (que ele chamou de regionais) sobre o conceito de crise; a difícil tarefa de refletir sobre a crise levando-se em consideração a totalidade histórica; e, sobretudo, porque, ao se referir à crise da modernidade, estamos referendando a época contemporânea, portanto de difícil distanciamento analítico. Não cabe nesse momento apresentar e elaborar o rico e instigante caminho de sua análise. No entanto, uma das singularidades que emerge de sua reflexão é a de pensar a crise da modernidade tendo em vista a categoria do tempo ou da temporalidade.

Para Ricoeur (1988), ―(...) crise é p tologi do processo d hist ri se torn r temporal: ela consiste numa disfunção da relação normalmente tensa entre horizonte de expect tiv e esp o de experiênci ‖ (RICOEUR, 1988, p. 14). Isto ocorre à medid que expectativa é tomad como horizonte do futuro n form de proje ões societári s ―(...) sem influênci sobre o curso efetivo d hist ri ‖ e experiênci vigente é tr g d pelos conflitos e incompletudes das estruturas e organização políticas, sociais e econômicas no presente. A crise ocorre, então, como cisão na medida em que ―(...) o esp o d experiênci foi reduzido pelo repúdio da tradição e o horizonte da espera foi transformado em utopia/ucronia (PERINE, 1992, p.174)‖. Ricoeur (1988) rel t existênci de du s tensões de fundo com respeito à dissociação entre expectativa e experiência, as quais emergem em diversas interpretações da crise contemporânea. Para ele, em diferentes pensadores que se debruçaram sobre a questão da modernidade emerge o julgamento da crise, de um lado como uma espécie de rompimento ou negação da tradição e, do outro, como pressão sobre a própria modernidade, a qual nunca se completou, mas, ainda assim, já está em via de se acabar em pós-modernid de. Isto p rece devido um ―(...) recuo geral das convicções e da capacidade de compromisso que esse recuo acarreta ou, o que vai dar ao mesmo, o recuo geral do sagrado, quer o entendamos como sagrado vertical (religioso no sentido mais lato) ou sagrado horizont l (político no sentido m is l to)‖ (RICOEUR, 1988, p.17).

A leitura de Ricoeur (1988) da crise da modernidade remete a uma análise ao mesmo tempo ontológica e ética no intuito de enxergar no ensejo da construção historial das

sociedades contemporâneas sua possível superação. A crise na modernidade contemporânea (a qual também é crise da modernidade) se instaura, assim, a partir de um modo próprio, antropocêntrico, de lidar com a temporalidade. Dispõe da suposta capacidade de precisão do pensamento subjetivo (centrado no sujeito) como elemento transcendente de julgar a presencialidade imanente do presente para enquadrá-lo na operacionalização e no ordenamento objetivo do mundo. A crise é marcada pela inabilidade de estabelecer novas alianças socio-históricas que refaçam a experiência como lugar da esperança, não a partir da invenção de utopias sociais e estatais, mas pelo reconhecimento de seus fins morais (PERINE, 1992). A partir de Ricoeur (1988), assim, podemos inquirir que o sagrado, entendido em sua dualidade religiosa e histórica, afiança a recuperação do elo entre transcendência e imanência na relação entre passado e presente, para assim tornar larga e plural a possibilidade de futuro, a partir de seu caráter transtemporal.

Essa visão do sagrado, a partir de Ricoeur (1988), sustenta nesta tese a visão de vínculo entre História e realidade mitológica, na medida em que, como será visto, nas ecovilas genuínas há uma reaproximação de uma visão cósmica da Terra, isto é, partícipe da vida e destino do Universo físico (physis), mas, que também é reverenciada por seu mistério. Por isso a compreensão do Planeta como Mãe Terra, por isso as ritualísticas de reverência e revivificação do encontro entre ecovila/coletivo e os sistemas e seres naturais, entendidos como partes do corpo vivo de Gaia. Por outro lado, a sacralidade vista nela mesma, como manifestação de um universo transcendente, espiritual, reconhecida pelo sentimento de admiração e reverência aos mistérios (transtemporal) do mundo e da Terra (assim como presente em Eliade, 1980), também estão explicitados em muitas ecovilas, tais como Terra Mirim, na Bahia e a Morada da Paz, no Rio Grande do Sul.

Na perspectiva do sagrado compor um campo epistêmico e moral de crítica à crise, advém a necessidade da modernidade processar uma revisão de sua cegueira ética (BARTHOLO, 1986), fundamentada na crença em uma racionalidade que basta a si própria no presente e direção progressiva ao futuro: a morte do passado. Essa visão suscita na crítica à crise da modernidade uma nova aliança com o passado na forma de experimentação de novos modos de temporalidade que possam incluir a tradição e seus legados a partir de novos campos epistemológicos e fenomenológicos, como presentes em diferentes ecovilas genuínas. Não só o exercício da crítica, mas a inclusão dessas práticas e valores, chamam para um redimensionamento das concepções de tempo e espaço, que se abrem para uma transsubstancialização do mundo pela inclusão do inaudito, do mistério, do indecifrável. Dessa maneira, a construção do ethos das ecovilas genuínas pode ser compreendida como

uma conformação híbrida de temporalidade e espacialidades. De um lado, matrizes técnicas, sapienciais, epistêmicas, etc., que se originam de sociedades e povos tradicionais sofrem influências e adaptações modernas. Do outro, o uso de técnicas e instrumentos modernos (contemporâneos) são emantados por percepções antigas de agir e ver o mundo.

A leitura do filósofo Santos, L. (2013) sobre a modernidade se inscreve nesse tipo de abordagem. O autor assinala para uma crítica da uniformização e autonomia processada no pensamento moderno (pós-Renascimento) como razão crítica que tende a anular sua própria capacidade de julgamento ao deixar de fora sentidos e finalidades encontradas em outras formas de saberes. Seguindo um caminho hermenêutico deixado por pensadores críticos da modernidade de diferentes matizes, como Husserl, Heidegger, Ricoeur, Gadamer, Buber, Levinas, Maciel e Kusch, Santos, L. (2013) percebe claro limite na pretensa capacidade ilimitada de sujeição crítica da razão reflexiva pelo risco de exaustão do seu caráter normalizador, em tensão com o passado e o futuro. Isto ocorre primeiramente pela incapacidade ou pelo desleixo do pensamento moderno de lidar com as sombras produzidas pela projeção da luz racional que se pretende onisciente. Por outro lado, acontece pelas perdas de coerência e de substância surgidas com a crítica minimalista (pós-moderna) que busca desmontar todo o edifício construído pela racionalidade iluminada ao oferecer ao sujeito pouca referência além de si mesmo e uma linguagem desenraizada em campos semióticos produtores de hibridismos. Para Santos, L. (2013):

(...) Nesses tempos de deserto, em que a racionalidade moderna parece haver atingido a exaustão após levar ao extremo o seu poder, não há como pretender uma possível superação da razão crítica por uma hipotética – e ainda mais engenhosa e rigorosa – crítica da razão crítica, que só nos precipitaria mais para dentro do vórtice do qual se espera escapar. A razão crítica não pode ser superada por qualquer novo investimento reflexivo, porque justamente lhe coube conduzir ao limite o esforço de construção/desconstrução reflexiva do sentido. Em tempo de deserto, já não se trata apenas de refletir mais, investir mais, capacitar, produzir, construir, desconstruir, reconstruir, progredir, mais (ou menos!), mas de preparar o dom de um novo começo. Trata-se, portanto, de submeter a razão moderna a um mortal rito de passagem pelo qual ela venha a renascer para além de seu poder e de sua impotência (SANTOS, L., 2013, pp. 6-7).

O que Santos, L. (2013, p. 14) propõe, na linha de Ricoeur, é a possibilidade de assimilação de outras matrizes sapienciais já acumuladas no caminho da humanidade, na esperança de se ―(...) encontr r arché38de um novo come o civiliz t rio‖ (SANTOS, L., 2013, p. 7). Nessa perspectiva, esta nova arché viria de um redimensionamento radical do pensamento crítico por meio da abertura ao sagrado, vertical e horizontal.

38Arché é um princípio que deve estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no

Para ele, as agruras do pensamento crítico (moderno) não vêm do seu caráter reflexivo que alinha, no debate, universalidade da razão a direitos individuais, mas sim do pensamento que promoveu o objetivo, o calculável, o factível, como medidas de ciência. As ciências que nascem nos séculos XVIII e XIX desdenham da sabedoria dos antigos ao descartar seus conteúdos e modos de apreensão do conhecimento, tomando-a ora como superstição, ora como erro epistêmico. Esse modo de proceder nega toda possibilidade de diálogo com outras instâncias de formulação e relação com o real, instituindo-se como a medida a partir da qual o real pode ser julgado e ordenado. O conflito crítico entre diferentes racionalidades, o qual ainda se inscreve nos campos filosófico e sociológico, fragmenta-se, também, na negação civilizatória da grande riqueza (e atualidade) das sabedorias tradicionais.

Porém, para Santos, L. (2013), não se trata da anulação do moderno em antimoderno ou pós-moderno. Pois, o simples pelo à ―morte‖ d modernid de corre o risco de nul r o reconhecimento de que, no exercício público da demos, a razão crítica tem desempenhado o ―(...) m is efic z preventivo contra abuso de poder, desigualdade de direitos, exploração e violênci ‖ (SANTOS, L., 2013, p. 8). Isto é, há um leg do do pens r r cion l e univers l (democrático) moderno que serve de diretriz fundamental para a reconstrução do mundo. No entanto, cabe ir ao fundo da compreensão dos limites da razão diante dos desafios postos e, no percurso, atravessá-la por dentro com outras fontes sapienciais.

O chamado ao diálogo entre tradição e modernidade39, nesse caso, atenta-se em romper com o embaçamento ético gerado por um tipo de pensamento que, negando as origens e os antigos, se pretendeu absoluto em seu relativismo. A ideia é, então, reposicioná-lo frente aos desafios de um tempo que demanda novos sentidos de novos (ou antigos) arcabouços culturais e civiliz t rios que poss m conferir, de um l do, ―(...) respons biliz o étic às suas conquistas científicas, tecnológicas, econômicas, jurídicas e políticas; e, de outro, atuação como eixo existencial ante a generalizada dissolução pós-modern ‖ (SANTOS, L., 2013, pp. 14-15). Diante da crise da modernidade, Santos, L. (2013) sugere a necessidade da inclus o étic , epistêmic e ontol gic de um perspectiv ―tr nsmodern ‖, lev ndo em consider o núcleos s pienci is que inclu ―(...) transcendência ou relação com a gratuidade do mistério; a alteridade ou não indiferença pela diferença do Outro; e a tradição ou perten à mem ri de um comunid de‖ (SANTOS, L., 2013, p. 15).

No entendimento do que é apresentado nesta pesquisa essa proposta redimensiona a possível superação da crise da modernidade por um duplo viés: a contenção daquilo que no

39 Este tema aparece em algumas partes desta tese, mas seu desenvolvimento demandaria um trabalho à parte. Fica como sugestão de novas pesquisas.

moderno se tornou excesso – o racionalismo, o materialismo, p.ex., e a abertura para aquilo que a modernidade esqueceu – do lugar da Origem de onde os antigos retiram sua sabedoria. A modernidade como modo de tempo historial sob a regência da razão aos poucos foi se tornando deserto, lugar de desterro para o vicejar do pensamento (UNGER, 2001). Na abertura para um pensar não estéril, que se dinamiza pelo diálogo com outras matrizes racionais e sapienciais conforma-se assim um espaço para a construção de um novo modo de habitar que inclua maneiras amenas de se olhar, se organizar e agir sobre a Terra.

Essa reflexão em torno da abordagem de Ricoeur (1988) e Santos, L. (2013) sobre a crise da modernidade assinala para a identificação de como o tempo é percebido e vivido por diferentes grupos nesse contexto contemporâneo de fronteiras. Com base na relação entre experiência e expectativa, novos desenhos civilizatórios, criativos e emancipados, têm sido realizados e a cada instante ao buscarem ressignificar seus legados tradicionais enquanto se adaptam/resistem ao modo progressivo do ethos moderno. Nesse contexto, mito e razão, transcendência e imanência, símbolo e ação, modernidade e tradição entram em diálogo na forma como os grupos se constroem espacialmente. Essas relações são encontradas nas formas como os membros das ecovilas constroem seus espaços de vida a partir de um novo

ethos com base na prática de novas tecnologias, valores e normas.

O filósofo Jeudy Aragão40 assinala que já na Grécia Antiga, em especial no período helênico, pensadores se propuseram a realizar uma espécie de reviravolta nos preceitos e fundamentos do edifício metafísico platônico e aristotélico, propondo à época novas percepções para a felicidade, a morte, a liberdade, o social, etc. Portanto, para ele, já nesse período pode-se mencionar um processo de revisão do sentido do ethos grego, tendo em vista críticas contundentes aos modelos culturais estabelecidos. Quando esta tese se refere à propost d s ecovil s como constru o de um ―novo ethos‖ n o firm lgo m is tu l, no sentido de novidade, mas, assinala para um modo de ser que se diferencia em aspectos nevrálgicos do modelo técnico-racionalista da civilização atual. Na proposta teórica e mais radical das ecovilas genuínas pouca coisa fica do projeto civilizatório moderno, a não ser o diálogo e debate de ideias e a normatização social fora da exclusividade religiosa. Esta tese propõe, assim, a ética e a ontologia do cuidado como fundamentos deste novo ethos.

40 Mestre pela UFBA e professor de filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA). Reflexões realizadas em conversa (informal) com este autor no final de fevereiro de 2015.