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2.5 Ecovilas e globalização Limites e novas fronteiras do social, do

2.5.1 Economia solidária como resposta ao fundamentalismo do mercado

Na globalização o mercado é o principal articulador das forças hegemônicas ao se incumbir de interferir e de regulamentar praticamente todas as relações sociais. As dimensões político-econômicas têm caráter central no contexto da globalização, na medida em que é just mente em fun o d ―vit ri ‖ c pit list p s-Guerra Fria que o mundo experienciará um processo de integração técnica e econômica jamais visto. As nuances deste processo são bastante complexas para tratarmos aqui em toda sua amplitude. No entanto, vale colocar que esse novo quadro traz consequências inquietantes para todas as sociedades, exigindo de seus agentes sociais atitudes que possam fazer frente aos desafios impostos pela totalização da vida social por meio do dinheiro (SANTOS, M., 2000, 2006). Neste contexto, as ecovilas genuínas assumem posturas diversas da posição purista e de isolamento de muitas comunidades alternativas dos anos 1960/70. Elas tendem a se instalar e amadurecer, tendo que responder diretamente de forma criativa ou reativa às demandas impostas pelos sistemas econômicos e políticos dos novos tempos.

No contexto da globalização a ascensão da ideologia neoliberal vai empreitar esforço para redimensionar as sociedades globalizadas em torno de um projeto socioeconômico uniformizante baseado no mercado. Neste sentido, a doutrina neoliberal busca influenciar governantes, intelectuais, agentes sociais e econômicos em direção à privatização, desaparelhamento do Estado (BURSZTYN, 1998), abertura (irrestrita) das fronteiras comerciais, ampliação da competitividade e estímulo ao empreendedorismo como força propulsora das ações individuais e coletivas. As grandes corporações se tornam ainda mais influentes ao promover forte processo de concentração produtiva e de riqueza e ao expandir seu capital e influência aos mercados tradicionais e emergentes. Junto aos governos nacionais, elas têm tido grande influência e controle sobre o destino das pessoas, não só no oferecimento de serviços e bens, mas, também, na produção de conhecimento, de informação, de alegorias, influenciando muitas vezes os caminhos da guerra e da paz. Por outro lado, a integração das finanças nesta nova fase do capitalismo tem demonstrado fragilidades ao criar teias especulativas que, a um solavanco, colocam abaixo diversas economias nacionais, bem como todo o sistema global, tal como demonstra a recente crise mundial de 2008.

O trabalhador bem qualificado e inserido se torna cada vez mais um consumidor. Se para eles ocorre aumento em renda, maior ainda é o débito criado ao canto da sereia do marketing globalizado o qual oferece produtos cada vez mais sofisticados e cada vez menos próximos das suas necessidades reais. Entre outros trabalhadores, há aqueles os quais, ainda

que do lado de fora, se esforçam por conseguir um emprego e outros que, por falta de qualificação ficarão permanentemente de fora das benesses oferecidas aos que se submeterem ao mercado de trabalho. Não obstante, a pressão do capital sobre a economia e o trabalho impulsion cri o de nov s ―redes de indign o e esper n ‖ (CASTELLS, 2013)62

. Em uma economia cada vez m is riv liz d , ―(...) polític gor é feit no merc do. Só que esse mercado global não existe como ator, mas como uma ideologia, um símbolo. Os tores gor s o s empres s glob is‖ (SANTOS, M., 2000, p. 67). Nest nov polític é no mercado, ou no tudo transformado em mercado e consumo (BAUMAN, 2007), que a força de trabalho, as necessidades, os desejos e gostos, as visões e anseios das pessoas serão medidos e valorados. É no cenário geopolítico comandado pelas grandes corporações e pelos mecanismos financeiros internacionais que, majoritariamente, o destino de grupos, povos, nações e territórios, é decidido. Em outras palavras, na globalização, sob a orientação competitiva do mercado, o capital tem cada vez mais se tornado o fundamento basilar da construção do ethos humano sobre a Terra. Shiva (2003) concebe este processo como o fundamentalismo de mercado da globalização e, radicalmente, afirma:

(...) Este fundamentalismo redefine a vida como commodity, a sociedade como economia e o mercado como meio e fim da aventura humana. O mercado está sendo tomado como o princípio organizador de provisão de alimentos, água, saúde, educação e outras necessidades básicas; é tido como princípio básico da governança; está sendo visto como a medida de nossa humanidade (SHIVA, 2003, p. 2, tradução nossa)63.

Neste quadro, a expansividade do mercado precariza as relações sociais na medida em que deix todos vulneráveis às su s regr s e ―humores‖ e dem nd de c d pesso e coletividade respostas às situações-limite. Não há, neste processo, isenções: ou submete-se na busca por vantagens, ou resiste-se, ou, busca-se formas de adaptações criativas. A questão colocada é que muitas vezes as fronteiras entre esses três papéis não são tão claras, devido à teia cultural e tecnológica com a qual a lógica do mercado tem se feito presente nas mínimas ações dos indivíduos das sociedades contemporâneas. Porém, diante do desafio de ultrapassar os limites da forte concentração e desequilíbrio impostos pela mais-valia global, novas formas mais equânimes e justas de produção e de distribuição de bens e riquezas têm sido propostas.

62 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança. Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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―This fund ment lism redefines life s commodity, society s economy, nd the m rket s the me ns nd end of the human enterprise. The market is being made the organizing principle for the provisioning of food, water, health, education and other basic needs, it is being made the organizing principle for governance, it is being m de the me sure of our hum nity‖.

Este é o caso da economia solidária; ela objetiva redimensionar o pensar e o fazer econômicos tendo como base a reversão dos valores dos sistemas financeiros, de troca e de produção a partir do empoderamento econômico e da autonomia política de pessoas e grupos situados localmente. Seu foco fundamental é a ressignificação de práticas promovidas pelo mercado, o qual se baseia no valor de troca de bens e serviços, para uma economia centrada no valor de uso, tendo como missão básica o apoio à realização cotidiana das necessidades materiais e imateriais das pessoas. Se projetos de economia solidária se espacializam fundamentalmente a partir de arranjos locais, o caráter global da sociedade contemporânea permite uma articulação em rede como forma de encontro com uma nova consciência global de viver e morar, vinculados aos valores coletivos e à prática de sistemas produtivos e de consumo de baixo impacto.

Em confronto p r digmático, economi solidári ―(...) está no cerne das grandes lutas polític s de noss époc e result do confronto de v lores e visões de mundo‖ (SINGER, 2004, p. 8). Singer (2004) propõe a cooperação e a solidariedade como abordagens alternativas à competitividade capitalista, bem como propõe a criação de novas forças produtivas e o redimensionamento das relações de produção a partir de outros arcabouços tecnológicos. Há um debate interno ao campo da economia solidária com respeito à capacidade de ela poder (ou querer) acabar com o sistema capitalista. A proposta de Singer (2004) parece ficar entre esses dois extremos. A autora reconhece que a economia solidária tem se beneficiado dos avanços do conhecimento promovido pelo capitalismo, mas por outro l do, que veio como ―(...) re o contr s injustiças perpetradas pelos que impulsionam o desenvolvimento c pit list ‖, o tempo em que ―(...) propõe um uso bem distinto d s for s produtiv s ssim lc n d s‖ (SINGER, 2004, p. 11). O que se propõe nest tese se proxim da abordagem de Singer e atenta para as críticas mais contundentes ao capitalismo (CARVALHO, 2011)64.

A economia solidária volta-se para a construção de novos fundamentos socioeconômicos sustentáveis com base na cooperação e autogestão. Da mesma forma, contribui para a formação de paradigmas sócio civilizatórios que incorporam a pluralidade e o empoderamento dos grupos e pessoas, localmente situados. A economia solidária não propõe um novo modelo econômico, mas se propõe a implementar transformações articuladas a

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Em uma leitura marxista, ver: CARVALHO, K. L.. Economia solidária como estratégia de desenvolvimento: uma análise crítica a partir das contribuições de Paul Singer e José Ricardo Tauile. In: II Conferência do Desenvolvimento, 2011, Brasília. II Conferência do Desenvolvimento - IPEA, 2011. v. 1. pp. 1-18.

outros movimentos soci is, que poss m lev r à constru o de um ―(...) ethos civilizatório superior o do c pit l‖ (LISBOA, 2003, p. 51).

(...) O emergir da Economia Solidária (ES) entrelaça-se com o feminismo, com o despontar da agroecologia e o revigoramento das formas familiares de produção agrícola, expressões do contramovimento de defesa da sociedade diante do fundamentalismo de mercado, partes duma transição paradigmática e civilizacional. A ES é sinal dum outro paradigma produtivo e civilizatório, estando bem sintonizada com as novas possibilidades organizacionais. Por refutar o produtivismo, a ES revela uma outra modernidade, uma outra civilização com novas formas de viver e de se relacionar, uma outra visão sobre o progresso, sobre o político e sobre a aliança da humanidade com a natureza (LISBOA, 2003, pp. 53- 54).

Na proposição construída nesta tese, vê-se então que um dos aspectos fundamentais das propostas de economia solidária é a formulação e experimentação de processos econômicos (produtivos, de troca, de consumo) de escala humana, face a face. São na maior parte inici tiv s que envolvem ―(...) empreendimentos individu is e f mili res ssoci dos e (...) utogestionários‖ (SINGER, 2004, p.7), num dimens o produtiv e esp ci l que, de lgum maneira, quebra com quilo que M rx entendeu como ―tr b lho lien do‖65. Em um mundo globalizado, a economia solidária estabelece circuitos espaciais locais, horizontalizados e colaborativos (SANTOS, M., 1996) que incitam o redimensionamento da cadeia socioeconômica (da produção ao consumo) para além do capital, mesmo inserido em uma economia de mercado. Essa ambiguidade estabelece alguns limites técnicos e valorativos paradigmáticos, também presentes nas propostas de ecovilas.

Vivian (2012) entende a economia solidária como uma prática social, democrática, autônoma e plural, que prima pela valorização dos laços sociais e busca articular diversas fontes de recursos e processos econômicos de caráter mercantil, não mercantil e não monetário (VIVIAN, 2012, p. 131). É neste contexto que Vivian (2012) estuda a apropriação e relação das ecovilas com iniciativas da economia solidária. Para ele, enquanto proposta de formulação de uma nova ética na relação de grupos humanos entre si e com seu meio, implícita ou explicitamente, as ecovilas tendem a incorporar diversas das práticas e princípios vinculados à economia solidária como base para a sustentabilidade de seus projetos (VIVIAN, 2012). Ness perspectiv , ―(...) estrutur econômic d s ecovil s é frequentemente desenhada para se ajustar a uma vida social e familiar acolhedora por meio da redução das necessid des fin nceir s que permit um mud n no estilo de vid ‖ (SVENSSON, 2002, p.

11, tradução nossa)66. Assim, o sentido da economia solidária nas ecovilas só se realiza numa abordagem múltipla da sustentabilidade.

Apesar de ainda vinculadas em alguns aspectos à economia hegemônica (e dela dependente para sobreviver), as ecovilas têm sido lugares onde tentativas e práticas de formas locais, alternativas e autônomas de economia têm sido experimentadas: trocas solidárias, bancos alternativos, moedas complementares, geração de renda local (comércio verde, serviços de consultoria, educativos, de saúde holística, de hospedagem, entre outros), produção local de alimentos, economia informal expandida (compartilhamento de refeições e serviços) (SVENSSON, 2002, p. 12). Vale reforçar que, tanto em nível teórico quanto prático, na tentativa de se colocar em prática essas proposições econômicas, os membros das ecovilas genuínas voltam-se para o exercício de um estilo de vida mais simples, a partir de conceitos e princípios com contornos ecológicos e ético como a simplicidade voluntária (ELGIN, 2007).