• Nenhum resultado encontrado

2. CULTURA

2.7 Cultura e Consumo

A cultura e o consumo estão fortemente relacionados, pois o que os indivíduos consomem é, em grande parte, influenciado pela cultura à qual pertencem. Da mesma forma, como um processo de retro-alimentação, os hábitos de consumo de uma sociedade também acabam por influenciar os costumes e as características de um povo, podendo alterar em níveis diferentes, as peculiaridades de uma cultura em particular.

Considerando-se que todo o ciclo de consumo na vida do homem inicia-se a partir de seu reconhecimento das necessidades, a motivação surge como resultado da percepção de que há algo faltando, e isso leva os indivíduos a assumir determinadas condutas de comportamento e de consumo. Esse processo, que resulta na formação das atitudes e, conseqüentemente, de tendências comportamentais, acaba por influenciar a formação e o funcionamento da sociedade e da cultura.

Todo indivíduo possui necessidades inatas e adquiridas (SCHIFFMAN; KANUK, 2000). As inatas correspondem às necessidades básicas, como as fisiológicas, também chamadas necessidades primárias. As necessidades adquiridas, também conhecidas como secundárias, são desenvolvidas ao longo da vida e sofrem grande influência de muitos fatores, dentre eles os culturais.

Assim, a partir de uma necessidade sentida pelo consumidor, este passa a sofrer um sentimento de desconforto originado pela diferença entre o estado real (deficitário de algo) e o estado desejado (satisfação de uma necessidade). Tanto as necessidades quanto os desejos não satisfeitos geram uma tensão no indivíduo. Tal tensão provoca o surgimento da motivação, que é a força que objetiva reduzir a situação desconfortável. Sendo a força motriz de todo comportamento humano, a motivação tem como alvo a satisfação e a conseqüente diminuição do estado de tensão e frustração inicial.

Após se sentir motivado, o consumidor passa a direcionar sua atenção aos estímulos do ambiente que estejam relacionados à diminuição do estado desconfortável, que se instalou devido à falta de atendimento de suas necessidades e desejos atuais.

Dentre as necessidades já reconhecidamente existentes para cada indivíduo, Linton (1945) considera que há três tipos principais que devem ser considerados: a necessidade de reação emocional aos outros indivíduos, qual seja, o desejo de se relacionar com outras pessoas, afetivamente e no âmbito social; a necessidade de segurança a longo prazo, que compreende as satisfações presentes e as futuras, que permanecem incertas; e a necessidade de novas experiências, em que o indivíduo se cansa da monotonia daquilo que lhe é familiar, e parte em busca de novas sensações.

Há muitas e distintas formas de classificar necessidades, sendo a do psicólogo americano Abraham Maslow uma das mais conhecidas e difundidas. Maslow influenciou grandemente as ciências sociais por meio de seus estudos sobre os tipos de necessidades dos indivíduos, classificando-as em cinco principais grupos, hierarquicamente, da mais urgente para a menos urgente: necessidades fisiológicas, de segurança, sociais, de estima e de auto-realização. Embora ele tenha desenvolvido tal classificação para aplicação à vida humana de forma geral,

os resultados de seus estudos têm sido utilizados para a compreensão do comportamento dos indivíduos também na dimensão do consumo.

Os consumidores não decidem no isolamento, mas em um contexto social repleto de influências interpessoais (externas) e intrapessoais (internas). Apesar das diversas classificações para os diferentes tipos de necessidades, e de sua inegável importância para o entendimento do comportamento humano, a formação da personalidade e da conduta humana não pode ser explicada somente pela existência de necessidades e pelas maneiras escolhidas, individualmente, para satisfazê-las. A experiência com o meio em que vive um indivíduo contribui para a formação de sua conduta e de sua atitude.

A cultura não pode ser explicada apenas por meio das necessidades humanas. Entretanto, estas representam uma pré-condição para a cultura, e a maneira como as necessidades são satisfeitas guarda uma forte relação com a cultura do indivíduo. Além disso, um indivíduo somente atribui importância a alguns aspectos e segmentos culturais, como arte, religião e ciência, quando suas necessidades básicas se encontram atendidas. Assim, tais segmentos culturais não poderiam ser explicados por meio das necessidades fisiológicas.

Entre o meio natural e o indivíduo existe sempre, interposto, um meio humano, que é vastamente mais significativo. Esse meio humano consiste num grupo organizado de outros indivíduos, isto é, uma sociedade, e em um modo particular de vida, característico desse grupo, isto é, uma cultura. É a interação do indivíduo com esses outros a responsável pela formação da maior parte de seus padrões de conduta, até mesmo de suas reações emocionais mais profundas (LINTON, 1945, p. 24).

Arnould e Thompson (2005) abordam a teoria que estuda o comportamento do consumidor considerando-se os aspectos socioculturais, experimentais, simbólicos e ideológicos do consumo. A CCT, termo oferecido pelos autores, que significa Consumer Culture Theory (Teoria da Cultura do Consumidor) diz respeito a um conjunto de perspectivas teóricas que se referem às relações dinâmicas entre as ações dos consumidores, o mercado, e os significados culturais, e pode contribuir para a pesquisa sobre o consumidor por meio do estudo das dimensões culturais do ciclo de consumo.

O consumo é algo central para a cultura do consumidor, seja o consumo de serviços ou bens, de produtos considerados commodities ou com alto grau de diferenciação. Contrariamente à visão antropológica de que os indivíduos são os condutores da cultura, consumidores são vistos como produtores da cultura (ARNOULD; THOMPSON, 2005).

No contexto da CCT, a cultura é considerada além de um sistema homogêneo de significados coletivamente compartilhados, estilos de vida, e valores unificadores compartilhados pelos

membros de uma sociedade. A cultura, aos olhos dessa teoria, é compreendida como um tecido de experiências, significados e ações, e tem o seu foco nas dimensões experimentais e socioculturais do consumo, compreendendo temas como simbolismo de produto, práticas rituais, histórias de consumidores relacionadas a significados de produtos e marcas, e fronteiras simbólicas.

[...] a CCT explora a distribuição heterogênea de significados e a multiplicidade de grupos culturais sobrepostos, que existem dentro da estrutura sócio-histórica mais abrangente da globalização e do capitalismo de mercado. Portanto, a cultura do consumidor denota um arranjo social no qual as relações entre a cultura de vida e os recursos sociais, e entre os significativos estilos de vida e os recursos simbólicos e materiais dos quais aqueles dependem, são mediados pelo mercado (ARNOULD; THOMPSON, 2005, p. 869).

A CCT defende que o consumo é historicamente moldado pelas práticas socioculturais presentes nas estruturas e ideologias dos mercados dinâmicos. Assim, são considerados os significados culturais, as influências sócio-históricas, e as dinâmicas sociais que moldam as experiências e as identidades do consumidor, em um amplo contexto da vida cotidiana.

O termo “cultura do consumidor” também conceitua um sistema interconectado de imagens, textos e objetos comercialmente produzidos e utilizados pelos grupos – através da construção de práticas, identidades e significados sobrepostos e, às vezes, até conflitantes – para criar um senso coletivo de seus ambientes e para orientar as experiências e as vidas de seus membros (KOZINETS, 2001

apud ARNOULD; THOMPSON, 2005, p. 869).

A teoria da cultura do consumidor é compreendida, assim, como um arranjo social em que os mercados mediam as relações entre a cultura viva e os recursos sociais, entre estilos de vida significativos e recursos simbólicos e materiais. Tal idéia inspira a pesquisa do consumidor, que acessa os aspectos socioculturais, experienciais, simbólicos e ideológicos do consumo. “Além do mais, a cultura do consumidor descreve uma rede densamente elaborada de conexões globais e extensões por meio das quais as culturas locais se encontram progressivamente inter-relacionadas pelas forças do capital transnacional e da mídia global” (ARNOULD; THOMPSON, 2005, p. 869).

A pesquisa na teoria da cultura do consumidor, sobre os padrões sócio-históricos de consumo, explora as influências exercidas pelas estruturas institucionais e sociais sobre o consumo, bem como as relações entre as experiências do consumidor, os sistemas de crenças e práticas, e essas estruturas institucionais e sociais (ARNOULD, 2006). Outro importante tema abordado pela CCT é a maneira como os consumidores ativamente atribuem significado às propagandas, marcas, ambientes de varejo, ou bens físicos, de forma a corresponder e manifestar suas circunstâncias pessoais e sociais, além de suas identidades e objetivos de vida.

Assim, o consumidor possui uma extensa e heterogênea gama de recursos, proporcionada pelo próprio mercado, dos quais é possível construir identidades individuais e coletivas (ARNOULD; THOMPSON, 2005).

Para o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, a sociedade capitalista ocidental é uma forma específica de ordem cultural, sendo regida não exclusivamente pela racionalidade econômica, mas com dimensões culturais e simbólicas também. Assim, o significado social de um objeto é menos visível por seus atributos físicos que pelo valor que ele assume na troca. Para Sahlins, a utilidade de um objeto para um indivíduo é um significado construído pelos próprios sujeitos, e não uma qualidade intrínseca do objeto. Dessa forma, os objetos apenas representam algo importante na sociedade humana conforme a própria significação que os homens lhe atribuem (JAIME JÚNIOR, 2001).

Barros e Rocha (2006) também concordam com a visão simbólica do consumo. Para eles, o consumo representa um sistema de significação, e a principal necessidade social que supre é a necessidade simbólica. Assim, o consumo é como um código, e por meio dele são traduzidas boa parte das relações sociais e elaboradas muitas das experiências de subjetividade. Esse código, ao traduzir sentimentos e relações sociais, forma um sistema de classificação de coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos.

O consumo permite um exercício de classificação do mundo que nos cerca a partir de si mesmo e, como é próprio dos códigos, pode ser sempre inclusivo. [...] De um lado, inclusivo de novos produtos e serviços que a ele se agregam e são articulados aos demais, e de outro, inclusivo de identidades e relações sociais que são definidas, em larga medida, a partir dele. [...] nossa cultura vivencia o consumo como forma privilegiada de, por meio dele, traduzir afetos, desejos e relações sociais, elaborando uma visão de mundo (BARROS; ROCHA, 2006, p. 45-46).

Barros e Rocha argumentam que as pesquisas que classificam os consumidores em classes sócio-econômicas, definidas pela posse de bens de consumo e/ou renda, reduzem a complexidade do mercado ao preço de entrada, isto é, o preço que se paga para adquirir bens e usufruir serviços. Para eles, o consumo é um sistema cultural complexo - parte fundamental da sociedade contemporânea - e conhecer efetivamente este fenômeno é indispensável para compreender as diferenças simbólicas existentes entre os sistemas de produção e consumo de produtos. Assim, os indivíduos possuiriam livre acesso ao repertório cultural que envolve compras, trabalhos, gastos e ganhos.

[...] a abordagem antropológica do consumo – representada por autores fundamentais como Marcel Mauss (1974), Thorstein Veblen (1965), Mary Douglas (1978), Marshall Sahlins (1979) e Colin Campbell (1987), entre outros – argumenta que nem o dinheiro, nem a razão prática nem a lógica econômica explicam os diferentes significados do consumo. Uma vez que se pode pagar o preço de

entrada para adquirir bens e usufruir serviços, as escolhas se tornam completamente dependentes da ordem cultural, de sistemas simbólicos e de necessidades classificatórias (BARROS; ROCHA, 2006, p. 37).

Dentre esses autores fundamentais citados, Barros e Rocha oferecem especial ênfase ao trabalho de Thorstein Veblen e de Marcel Mauss. Veblen, em A Teoria da Classe Ociosa, publicado em 1899, trata da questão de retirar o consumo da posição de simples reflexo da produção, e considerá-lo também como um discurso sobre as relações sociais. Veblen ultrapassou a visão utilitária do consumo que prevalece no viés economicista, enfocando o significado cultural contido nesse fenômeno e em suas práticas. Portanto, não se trata de reduzir esse fenômeno ao indivíduo, uma vez que o consumo é um fato social capaz de gerar representações coletivas.

Dessa forma, o consumo se torna algo simbólico, e Veblen aponta o lugar central do consumo como uma forma de comunicação, ou seja, uma expressão de status, de construção e evidência de diferenças sociais. Produtos e serviços são associados a certos tipos de grupos sociais, estilos de vida, perspectivas e desejos, envolvendo toda uma sociedade em um sistema de comunicação de poder e prestígio.

Outra referência igualmente importante é o clássico de Marcel Mauss, Ensaio Sobre a

Dádiva, publicado em 1923. Neste texto, a ordem cultural é decisiva nas situações de troca, e o caráter utilitarista e racional passa a ser algo relativo.

As trocas são fenômenos coletivos [...]. As trocas respondem a necessidades culturais e não apenas econômicas, como retribuição, honra, prestígio, poder e, principalmente, o dar e o receber como obrigação da própria troca [...]. A produção deixa de ser vista como uma prática lógica de eficiência material, e se insere no reino da intenção cultural (BARROS; ROCHA, 2006, p. 38).

Fica evidente, assim, a íntima ligação entre os aspectos culturais e os hábitos de consumo de bens e serviços. Uma vez que o consumidor se encontra envolvido nessa complexa rede de significados, que é a cultura, todas as suas decisões – e isso envolve o consumo – serão inevitavelmente influenciadas pelas principais nuances culturais, crenças, normas e costumes de sua sociedade. Portanto, não há como dissociar o consumo da cultura, nem considerá-los como fenômenos ou conceitos independentes.

Embora a atuação no mercado doméstico traga conforto para as organizações e seus líderes (devido ao domínio do ambiente e da cultura), a competição que se acendeu entre mercados globais e não mais restrita apenas a mercados locais, impôs a necessidade de expansão dos negócios para além das fronteiras nacionais (SINA, 2008).

A atuação comercial em países distintos implica em desafios que podem ir além das diferenças lingüísticas. A cultura, entendida em sua concepção mais abrangente, torna-se muitas vezes um opositor ainda mais difícil de ser “combatido” que a própria concorrência. Assim, quando se considera a internacionalização de marcas, as dificuldades lingüísticas representam apenas uma das nuances culturais que devem ser corretamente gerenciadas. Em suma, diante de todos os conceitos revistos sobre cultura e sua relação com a sociedade, com o indivíduo, e com o consumo, torna-se uma tarefa difícil apresentar, em uma única frase, um conceito ao mesmo tempo abrangente e satisfatório sobre o que é, de fato, a cultura, principalmente ao se considerar as ambigüidades que sempre se fizeram presentes, desde o início, nas tentativas de conceituar o termo. Retoma-se aqui, a dificuldade identificada por Ogburn (1964), de que a cultura, sendo um termo tão amplo e com tantos significados, não possa ser completamente definida em apenas uma frase.

Entretanto, analisando-se as definições apresentadas pelos diversos autores, pode-se considerar apropriada a conceituação de cultura como sendo a personalidade de uma sociedade, um conjunto de padrões comportamentais adquiridos e transmitidos por meio de vários símbolos, como a linguagem, o vestuário, os hábitos alimentares, o idioma, os produtos, as formas de relacionamento social etc., conjunto este permeado por crenças, valores e costumes que caracterizam um grupo de pessoas. Este será o conceito considerado por ocasião da realização das próximas etapas deste trabalho.

Embora a cultura, conforme abordado, tenha duas significações extremas, a pessoal (cultura interiorizada) e a coletiva (compartilhada entre os membros de uma sociedade), para corresponder ao problema de pesquisa apresentado nesta tese, será considerada a cultura como uma expressão do pensamento de uma coletividade, um contexto social, seguindo a escola de pensamento de Geertz (1973), cuja abordagem interpretativista considera a cultura como um contexto, algo público, cujo significado é armazenado e transmitido por meio de símbolos sociais. Os aspectos culturais que se pretende investigar por ocasião da pesquisa de campo permeiam tanto aqueles chamados manifestos, como os costumes, a linguagem e a conduta pública, quanto os chamados ocultos, como as crenças e os valores.

Considerando-se os aspectos culturais apresentados e toda a diversidade de conceitos e de tentativas de explicações para os fenômenos culturais, seu armazenamento, sua transmissão ou manutenção, levantam-se os seguintes questionamentos a respeito das diferenças culturais e a atuação internacional de marcas de serviços: como as organizações consideram os aspectos culturais de outros países nos quais pretendem atuar? Tais organizações consideram os aspectos manifestos e ocultos da cultura local? Como lidam com as barreiras culturais com

as quais se defrontam nesta tentativa de internacionalização? Houve, de fato, uma queda das barreiras culturais após a globalização, ou as culturais locais se mantiveram inalteradas? O próximo capítulo abordará os conceitos de imagem e identidade de marca, posicionamento e gestão internacional de marcas de serviços, assim como as peculiaridades e características desse tipo de gerenciamento, à luz do conceito de cultura, tratado no presente capítulo.