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Capítulo 3 Sobre Áreas Protegidas

3.1 Os primórdios

3.1.1 Da Época Medieval

Na época medieval, dá-se uma inversão da expansão de uso descrita, e os espaços naturais voltam a ser apanágio das classes dominantes, com lugares exclusivamente destinados à caça, tal como acontecia na Ásia Menor (Davenport e Rao, 2002; Runte, 2010).

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São criadas reservas privadas com o objetivo principal de oferecer à aristocracia e aos grandes proprietários rurais locais de deleite e de caça (Lockwood e Kothari, 2006).

É no período iluminista, e em consequência da Reforma protestante47, que se alteram as conceções sobre as relações do homem com a natureza. Neste sentido, alguns autores sublinham como a perspetiva moderna de conservação da natureza surge em países com forte pendor para o protestantismo, nomeadamente, nos EUA e no Reino Unido (Lockwood e Kothari, 2006; Viard, 1985).

Conan (1985) defende que essa nova conceção resultou, nestes dois países, de uma forma inédita de olhar e apreciar a natureza, tornada tableau vivant da paisagem na história da cultura visual do século XIX, de que, modernamente, viria a resultar a criação de áreas protegidas. Mais especificamente, o autor afirma que, nos finais do século XVIII, os ingleses transformaram a apreciação da pintura, da gravura e do desenho da paisagem numa cultura de passeio campestre e pelos recantos solitários da natureza, tornada privilégio estético das elites. Descobrir a paisagem tornou-se hobby de qualquer homem cultivado e refinado que, dispondo da cultura visual requerida, podia apreciar a natureza como se de uma obra de arte se tratasse.

Por oposição, os americanos, sobretudo os citadinos, imigrantes recém-chegados, orgulhosos da sua nova cidadania e procurando afirmar-se face à hegemonia cultural dos europeus, adotaram a cultura do olhar “pitoresco” para exaltar a grandeza da natureza selvagem americana. A classe média das cidades americanas partilhava um sentimento de orgulho nacional, que assentava na ideia de que a identidade do povo americano era fundada no respeito pela natureza e na sua conquista, em nome de uma particular conceção da nação. A paisagem torna-se signo de orgulho popular, símbolo de identidade nacional, e os “parques nacionais” surgem como símbolos da nação americana. Se os americanos privilegiavam o estado selvagem da natureza, os ingleses, por seu turno, defendiam o ordenamento humano da natureza selvagem, considerando a paisagem selvagem desinteressante (Conan, 1985)48.

Runte (2010) defende que a ideia de parque nacional surge mais por preocupações nacionalistas do que por preocupações ambientais per se: «America’s incentive for national parks lay in the discovery that scenery was a cultural asset» (2010: 11). Segundo o autor, a criação dos parques nacionais preencheu um vazio cultural, e ocorreu num período em que a América padecia de um complexo de inferioridade face à história, à literatura e à arte europeias. A ideia de parque nacional emerge de os americanos procurarem um traço distintivo para a criação da

47 A Reforma protestante fazia a apologia da divinização da natureza sem intermediários - o Homem toma conta do

seu destino, logo domina a natureza.

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Os nomes emblemáticos deste contraste são, no caso norte-americano, o Presidente Theodore Roosevelt, e, no caso britânico, o arquiteto paisagista vitoriano Capability Brown, e o parque privado que criou em Blenheim Castle

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sua identidade enquanto nação, num lugar pristino e edénico: «Just as Europe retained custody of the artifacts of Western civilization, so the United States might sanctify its natural wonders» (2010: 9).

Surgem movimentos de poetas e escritores norte-americanos que rapidamente criam e alimentam ideias românticas e debates vivos entre a América e a Europa, em torno da dualidade naturalismo e civilização. Destacam-se, neste domínio, as obras de David Henry Thoreau e George Perkins Marsh49.

Durante este período, século XIX, três perspetivas sobre a relação homem natureza persistiam (Jepson e Witthaker, 2002):

- A natureza como independente e perfeita, incorporando os jardins do Éden, puros e imaculados, sem a intervenção do homem;

- O idílio rural de uma harmonia pastoral, no qual o homem naturalmente melhoraria as criações de Deus;

- O homem que destrói e espolia a natureza.

De acordo com estes autores, é a partir de então que surge o embrião de uma política pública de criação de espaços protegidos, através do lobbying de homens notáveis da sociedade (grupos de caçadores de elite) – que, posteriormente, estabeleceriam redes internacionais de conservação da natureza50 -, e que deriva de duas motivações essenciais: por um lado, o desejo de preservar locais com especial interesse para a contemplação intelectual, científica e estética da natureza, com significativa expressão nas grandes metrópoles e junto das elites; por outro lado, a aceitação de que a conquista humana da natureza acarreta uma

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No seu livro Walden or Life in the Woods, publicado em 1854, Thoreau enfatiza a importância da solidão, contemplação e proximidade com a natureza para ultrapassar uma existência desesperada. A obra constitui, entre outros aspetos, uma crítica às sociedades ocidentais contemporâneas, cujas atitudes consumistas e materialistas contribuíam, segundo o autor, para um afastamento do homem da natureza e para a destruição da mesma. Dez anos depois, em 1864, Marsh publica Man and Nature or Physical Geography as modified by human action, no qual documenta os efeitos da ação humana sobre o meio ambiente, salientando que o domínio do homem sobre o ambiente natural estava a ter efeitos destrutivos sobre o mesmo. Na sua obra Marsh apela ao desenvolvimento de ações de conservação da natureza por parte dos poderes públicos. É neste contexto, que nesse mesmo ano, Abraham Lincoln confia a proteção do vale de Yosemite ao Estado da Califórnia e é criada a reserva com esse nome, reclassificada como Parque Nacional, em 1890.

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Na América do Norte, destacam-se, conforme referido, as ações de Theodore Roosevelt, que ao escrever sobre as mudanças induzidas pelo Homem no Oeste americano, começa a promover dois valores fundadores do movimento conservacionista: 1) a matança desnecessária da vida selvagem é cruel e bárbara; 2) a conquista da natureza pelo homem acarreta uma responsabilidade moral para preservar formas de vida ameaçadas. Em 1887, Roosevelt funda o Boone and Crockett Club, com a missão de conservar a vida selvagem e habitats em estado crítico e promover a caça justa.

No Reino Unido, destaca-se Edward North Buxton, membro associado do Boone and Crockett Club, que em 1903, funda a Fauna Preservation Society. A atuação desta sociedade era feita através de lobbying informal, e defendia, tal como a sua congénere americana, o direito à existência das espécies, através da criação de santuários e parques nacionais, seguindo as linhas do modelo americano e canadiano (Jepson e Witthaker, 2002).

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responsabilidade moral, de que decorre o propósito de assegurar a sobrevivência de espécies ameaçadas.

Da primeira motivação referida resulta o desejo de preservar monumentos da natureza - e reconhecê-los como igualmente importantes aos criados pelo Homem -, para a civilização humana, a cultura e a criação de uma identidade nacional, importância que pode variar na forma e escala. Da segunda resulta a vontade de travar e limitar a excessiva matança de espécies, através de criação de legislação sobre caça de animais de grande porte (caça grossa), e da criação de reservas de caça.

As diferenças entre americanos e ingleses é que os primeiros consideravam monumentos naturais as paisagens de grandeza espetacular, que deveriam ser transformadas em parques nacionais. Os segundos, por seu turno, encaravam os pequenos monumentos naturais como elementos culturais, que deviam ser protegidos enquanto monumentos e reservas naturais.

Nos finais do século XIX, portanto, a ideia da natureza como sistema robusto e predestinado de equilíbrios começa a ser substituída pela noção de sistemas imbricados e sensíveis à intervenção humana (Jepson e Witthaker, 2002).

3.1.2 …À criação da primeira área protegida do mundo moderno

Independentemente das conceções religiosas (protestantes vs. católicos), das condições materiais de existência (urbanos vs. montanheiros/rurais), é comummente aceite que a moderna conceção de áreas protegidas surge nos finais do século XIX, com a criação, em 1872, do primeiro Parque Nacional nos EUA, o Yellowstone National Park. Este parque foi estabelecido pelo Congresso norte-americano, e promulgado pelo presidente Ulysses S. Grant. A sua base legal consistia na criação de um parque público para benefício e usufruto do povo (Eagles et al., 2002).

A partir daqui, a criação de parques nacionais dissemina-se por vários países do Império Britânico, como Austrália, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul51. A sua génese partilhava características comuns: o facto de terem sido criados por decisão governamental; o facto de as áreas reservadas para esse efeito cobrirem, na sua generalidade, vastas áreas de território; e o facto de, na sua origem, ser contemplado o usufruto público (Eagles et al., idem). O conceito de Parque Nacional alastra-se então a outros países, nomeadamente, no continente europeu. Se, por um lado, na América do Norte, a génese conservacionista assenta

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A Austrália foi, em 1879, o segundo país a criar um parque nacional, o National Park, posteriormente renomeado Royal National Park; o Canadá cria o seu primeiro parque nacional em 1885, o Banff National Park; a Nova Zelândia em 1894, o Tongariro National Park; e a África do Sul estabelece a Sabi Game Reserve, em 1898, hoje incluída no Kruger National Park.

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na promoção moral, pelas elites de caçadores, dos limites da exploração humana, traduzida na criação de reservas de caça e de legislação sobre caça grossa, na Europa, por outro lado, a génese conservacionista assentava na criação de monumentos naturais como objetos de contemplação.

O desejo dos conservacionistas de proteger atributos valiosos da paisagem europeia ganha ímpeto através da visão de Hugo Conwentz, biólogo berlinense que faz uma série de conferências em cidades europeias, de 1903 a 1908, para promover o seu conceito e visão do que designa, numa fórmula, à época, para muitos paradoxal nos termos, por Naturdenkmal52 -

monumento da natureza (Jepson e Witthaker, 2002):

«…Under the term Natural Monument, characteristic formations of nature are understood, particularly those which are still in their primitive location and have remained completely, or almost completely untouched by civilization. To these belong not only individual forms and species, but also plant and animal associations, geological and scenic rarities…» (Conwentz, 1914: 110).

Conwentz considerava que a administração pública em particular, e a sociedade em geral, tinham que tornar-se, tanto quanto possível, permeáveis à ideia de conservação da natureza e da sua importância para o futuro. Assim, durante este período, foram criadas sociedades para a proteção dos naturdenkmal em vários países da Europa: em França (1901), na Suíça (1909) e no Reino Unido (1912). Todas elas tinham em comum o facto de serem constituídas por elites. Posteriormente, a ligação destas sociedades entre si tornar-se-á um fator chave para a internacionalização dos ideais da conservação, como se explicará mais à frente.

Não obstante a importância da criação das sociedades para a proteção dos

naturdenkmal, as primeiras medidas de conservação da natureza na Europa estão também

ligadas à intervenção florestal - muitas das anteriores florestas constituem hoje áreas protegidas (Mose e Weixlbaumer, 2007). Por exemplo, na Alemanha, as florestas eram consideradas as áreas mais ameaçadas em termos naturais, pelo que, em 1907, através de uma Ordem Geral, foi dada autorização aos governos provinciais reais para criarem reservas em zonas florestais extensas. Estas regiões de floresta eram administradas de forma diferente das do regime normal de gestão do território, tendo em vista os objetivos de proteção. Após a criação da região-floresta, era feito um inventário dos monumentos naturais aí existentes, bem como a sua cartografia, e cada região-floresta tinha que manter um cadastro dos monumentos naturais no seu seio (Conwentz, 1914). Também em França, neste período –

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O termo Naturdenkmal é criado, em 1819, por Alexander von Humboldt (naturalista alemão), para designar uma área que devia ser protegida devido à sua beleza natural (EEA, 2012).

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finais do século XIX, inícios do século XX - o corpo florestal (Corps des Eaux et Forêts) desempenha um papel crucial no ordenamento da natureza, em particular em zonas frágeis, como as de montanha.

Kalaora e Savoye (1985) referem a existência de duas conceções diferentes na administração florestal, no que concerne a função da floresta na natureza e na sociedade, neste período: a conceção estatista e a conceção social.

A conceção estatista (centralista) de conservação da natureza, nomeadamente, de zonas de montanha, defendia o controlo das populações de montanha, excluindo-as dos seus territórios, através da nacionalização dos solos e da reflorestação intensiva. Trata-se de uma conceção de proteção da natureza apenas com objetivos ecológicos e científicos, em que cabe ao Estado o monopólio da conservação. A conservação da natureza era considerada missão de utilidade pública, e o lema era reflorestar as áreas de montanha.

A paisagem era, pois, entendida como paisagem-monumento. Tratava-se de uma política de proteção estética da natureza (especialmente da montanha), na qual os guardas florestais se constituíam como os agentes ativos de criação de parques e reservas naturais, em íntima aliança com as elites urbanas, e como facilitadores do movimento de conservação da natureza. Esta perspetiva, elitista, urbana e estatista, defendia um modelo de constituição de reservas e parques semelhante do modelo norte-americano.

A conceção social (descentralizada), defendida por uma minoria de guardas florestais inspirados pela Escola de Le Play53, preconizava a conservação da natureza através da manutenção das populações no seu território, e do estabelecimento de equilíbrios entre os interesses destas e os imperativos de gestão do território. A conservação da natureza tinha como objetivo primeiro a melhoria das condições das populações locais, em particular, das populações de montanha.

De facto, neste período, na Europa Continental, persistia a ideia de promover o planeamento racional dos recursos, através do seu inventário e da proteção de atributos interessantes da natureza. É a partir desta altura que começa a produzir-se mapas de vegetação - o primeiro é publicado em França, em 1897, sendo publicados mapas semelhantes na Alemanha, no Reino Unido e na Suíça, na primeira década do século XX (Jepson e Witthaker, 2002).

Os primeiros parques nacionais americanos foram criados no Oeste do país. Cobriam vastas áreas de territórios virgens, sendo por sua emulação que os primeiros parques nacionais da Europa foram criados em zonas muito pouco povoadas e se adotaram modelos de gestão

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fortemente inspirados nesse modelo norte-americano54, em que o objetivo principal era o de circunscrever, e proteger da intervenção humana, vastas áreas naturais selvagens (Lockwood e Kothari, 2006; Pinto, 2008).

A visão de parque nacional diferia de país para país. Os britânicos, por exemplo, defendiam igualmente o modelo americano, de um espaço que permitisse o acesso do público para fins recreativos e de observação, mas em que a flora e a fauna fossem preservadas no seu estado quase selvagem. Os portugueses e os franceses concebiam o parque nacional como um lugar com relvados e jardins de flores, e consideravam que a presença humana fazia perigar os objetivos de conservação da natureza. Os belgas propunham uma categoria de área de proteção integral, como uma área totalmente restrita à intervenção e presença humana, e de acesso unicamente com autorização especial (Jepson e Witthaker, 2002).

Simultaneamente, e decorrente da Revolução Industrial, o espaço rural surge como o refúgio de uma civilização tradicional, como um lugar de paz e de harmonia, onde os consumidores urbanos dos campos usufruíam de espaços protegidos (Chamboredon, 1985). Esta redescoberta do espaço rural resulta do desejo de fugir, temporariamente, à pouco saudável vida industrial das cidades europeias (Jepson e Witthaker, 2002), o que motivou iniciativas populares de conservação de paisagens rurais tradicionais, consideradas de valor natural, cultural e histórico (Pinto, 2008).