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Gestão efetiva e boa governança em áreas protegidas

Capítulo 3 Sobre Áreas Protegidas

3.4 Áreas Protegidas: desafios hoje

3.4.3 Gestão efetiva e boa governança em áreas protegidas

É comummente aceite que a boa governança é um pré-requisito para uma gestão eficaz das áreas protegidas.

As preocupações com as questões de avaliação da gestão de áreas protegidas emergem no terceiro Congresso Mundial de Parques, realizado em 1982, em Bali. Mais especificamente, no Plano de Ação de Bali, o objetivo 3 “ajudar os gestores a melhorar a qualidade ecológica das áreas protegidas existentes”, pressupunha o desenvolvimento de conceitos e métodos para avaliar a gestão de áreas protegidas, no sentido de assegurar a adequação das medidas aplicadas (IUCN, 1987).

Dez anos depois, no quarto Congresso Mundial de Parques Nacionais e Áreas Protegidas, realizado em 1992, em Caracas, a 17.ª recomendação80 recomendava que a IUCN e a CNPPA adotassem um sistema a ser usado pelos órgãos de gestão das áreas protegidas, para monitorizar a eficácia da gestão, e as ameaças às áreas protegidas (McNeely, 1993). Neste sentido, em 1996, a IUCN-WCPA cria uma task force para estudar as questões da avaliação da gestão em áreas protegidas (Hockings et al., 2006; Leverington et al., 2010), e, em 1997, elabora uma primeira versão de um quadro metodológico e orientações (Leverington et al.,

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Como se referiu anteriormente, a 17.ª recomendação também teve um papel preponderante no desenvolvimento do sistema de classificação de áreas protegidas com seis categorias que se conhece hoje.

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2010), cuja versão definitiva é publicada em 2000. Em 2006, é lançada uma segunda edição, substancialmente revista, da metodologia81.

Como os próprios autores referem, não se trata de uma metodologia específica para avaliar a eficácia da gestão, mas de um quadro metodológico para o desenvolvimento de sistemas de avaliação e de orientações para a prática da avaliação82. A metodologia baseia-se na ideia de que uma boa gestão de áreas protegidas se desenvolve de acordo com um processo cíclico constituído por seis fases ou elementos (Hockings et al., 2006):

 Começa pela compreensão do contexto da área protegida, dos seus valores ou forças, das suas fraquezas, ameaças que enfrenta e oportunidades disponíveis83; das partes envolvidas e do ambiente político;

 Prossegue com o planeamento: estabelecimento da visão, dos objetivos e das estratégias para conservar os valores e reduzir as ameaças;

 Aloca inputs (recursos) de pessoal, dinheiro e equipamento, para concretizar os objetivos;

 Implementa ações de gestão, de acordo com processos aceites; e

 Eventualmente produz outputs (bens e serviços que devem ser detalhados nos planos de gestão);

 Que resultam em impactos ou resultados, que se espera concretizem os objetivos definidos a longo prazo.

Segundo os autores, os seis elementos refletem as três questões principais implícitas em processos de gestão (Hockings et al., idem): o modelo de gestão, que pode ser aplicado quer a áreas protegidas individuais, quer a sistemas de áreas protegidas (contexto e planeamento); a adequação dos mecanismos e processos de gestão (inputs e processos); e a concretização dos objetivos de gestão, incluindo a conservação dos seus valores (outputs e resultados).

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O reconhecimento da legitimidade de outros tipos de áreas protegidas (privadas, comunitárias ou indígenas) como parte integrante dos sistemas nacionais suscitou igualmente a necessidade de criar sistemas transparentes para a avaliação da eficácia da gestão das mesmas (Hockings et al., 2006). Em 2004, a CBD também estabelecia como meta a atingir no âmbito do PoWPA, que todas as áreas protegidas tivessem sistemas de gestão eficaz até 2012.

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Em resultado, uma série de metodologias de avaliação têm sido desenvolvidas e aplicadas: por exemplo, a WWF desenvolveu o Rapid Assessment and Prioritization of Proteted Area Management (RAPPAM), que é atualmente uma das abordagens mais usadas para realizar avaliações da eficácia da gestão de redes de áreas protegidas (EEA, 2012; Hockings et al., 2006; Leverington et al., 2010).

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No fundo, trata-se de uma análise SWOT (Strengths, Weaknesses, Opportunities and Threats) das áreas protegidas.

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Em suma, a ideia principal subjacente ao modelo proposto pela IUCN é a de que várias abordagens podem ser adotadas para uso em diferentes biomas ou regiões, e aplicadas de acordo com diferentes níveis de recursos (Chape et al., 2008). Neste sentido, a avaliação da eficácia da gestão poderá ser um indicador importante para determinar se os objetivos de conservação estão a ser atingidos, fortemente influenciados como estes são pela qualidade da governança.

A boa governança em áreas protegidas pode ser entendida como um sistema que se rege por princípios e valores definidos pelas partes interessadas, consagrados na Constituição, em legislação ambiental, legislação sobre áreas protegidas, políticas, práticas culturais ou consuetudinárias (Dudley, 2008). Neste sentido, e refletindo também os princípios definidos em acordos internacionais, tais como a CBD ou a Declaração Universal dos Direitos dos Povos

Indígenas, a IUCN definiu os seguintes princípios gerais de boa governança em áreas

protegidas (Dudley, 2008):

 Legitimidade e voz – Diálogo social e coletivo concertado sobre os objetivos de gestão, baseado na liberdade de associação e expressão, e isento de qualquer tipo de discriminação relacionada com género, etnicidade, estilo de vida, valores culturais ou outras características;

 Subsidiariedade – Atribuição da responsabilidade de gestão a entidades próximas dos recursos em causa;

 Justiça – Partilha equitativa dos custos e benefícios da criação e gestão de áreas protegidas, providenciando o acesso a julgamentos imparciais em situações de conflito;

 “Não prejudicar” – Garantir que os custos decorrentes da criação e gestão de áreas protegidas não criam, ou agravam, situações de pobreza e/ou vulnerabilidade;

 Direção – Promover e manter uma visão das áreas protegidas e seus objetivos de conservação consistentes a longo prazo;

 Performance – Conservar a biodiversidade, usar os recursos de forma inteligente e, simultaneamente, responder às necessidades das partes envolvidas;

 Responsabilidade – Definir de forma clara os níveis de responsabilidade, e assegurar a informação adequada e a responsabilização de todos os intervenientes sobre o cumprimento das suas responsabilidades;

 Transparência – Assegurar que toda a informação relevante é disponibilizada a todas as partes envolvidas;

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 Direitos Humanos – Respeitar os direitos humanos no contexto da governança da área protegida, incluindo os direitos das gerações futuras.

Tendo por base os princípios propostos pela IUCN, Lockwood (2010) desenvolve igualmente uma metodologia para avaliar a governança (ética e racional) em áreas protegidas, por relação a uma gestão eficaz (orientada para a concretização de objetivos), a qual resulta de uma combinação entre capacidade institucional (recursos humanos, financeiros e infraestruturais), contexto (valores, ameaças, influências, agentes envolvidos) e planeamento (estratégias,

políticas, planos). Concretamente, o autor define um quadro metodológico de avaliação da

boa governança em áreas protegidas terrestres84, que assenta sobre sete princípios e respetivos resultados de desempenho (tabela 10).

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Tabela 10 – Princípios de boa governança e resultados de desempenho

Princípios Resultados Esperados

Legitimidade  O órgão diretivo possui autoridade, através de mandato legal ou democrático  Os restantes agentes aceitam livremente a autoridade do órgão diretivo

 O órgão diretivo tem uma longa ligação cultural a alguns, ou a todos, os terrenos da área protegida

 O órgão diretivo atua de acordo com o seu mandato e os objetivos da área protegida  Os governantes atuam com integridade e compromisso

Transparência  A governança e os processos de tomada de decisão são abertos ao escrutínio dos restantes agentes envolvidos

 O raciocínio por detrás das decisões é claro  As conquistas e os fracassos são evidentes

 A informação é apresentada de forma apropriada e consoante as necessidades dos restantes agentes

Responsabilidade  O órgão diretivo e o restante pessoal têm funções e responsabilidades claramente definidas  O órgão diretivo demonstra aceitação das suas responsabilidades

 O órgão diretivo é responsável perante o seu eleitorado (responsabilidade de cima para baixo)  O órgão diretivo está sujeito à prestação de contas (responsabilidade de baixo para cima)  Os níveis em que o poder é exercido (municipal, regional, nacional, internacional) coincidem

com a devida escala de direitos, necessidades, problemas e valores

Inclusão  Todos os agentes têm oportunidades adequadas para participar nos processos e ações do órgão diretivo

 O órgão diretivo tenta envolver ativamente os agentes marginalizados e desfavorecidos

Justiça  Os agentes, os administrativos e o restante pessoal são ouvidos e tratados com respeito  Há respeito recíproco entre todos os níveis hierárquicos

 As decisões são tomadas de forma consistente e sem preconceito  Os direitos dos povos indígenas e os direitos humanos são respeitados  O valor intrínseco da natureza é respeitado

 A distribuição (intra- e intergeracional) dos custos e benefícios das ações e decisões é identificada e tida em consideração

Conetividade  O órgão diretivo está efetivamente conectado com os órgãos de governo nos diferentes níveis de governança

 O órgão diretivo está efetivamente conectado com os órgãos de governo no mesmo nível de governança

 As ações e orientações do órgão diretivo são consistentes com as orientações estabelecidas pelos órgãos de governo de nível superior

Resiliência  O órgão diretivo tem a cultura de deliberadamente aprender com a experiência e de absorver novo conhecimento

 O órgão diretivo tem flexibilidade para reorganizar os seus processos e procedimentos internos, em resposta a mudanças nas condições internas ou externas

 Mecanismos formais proporcionam a segurança do mandato e da realização dos objetivos da área protegida a longo prazo

 O órgão diretivo utiliza planeamento adaptativo e processos de gestão  O órgão diretivo dispõe de procedimentos para identificar, avaliar e gerir riscos Fonte: Lockwood, 2010 (tradução própria).

Notas do autor: mandato refere-se ao âmbito e conteúdo da concessão de autoridade ao órgão diretivo, declarado numa constituição, estatutos, legislação ou direito consuetudinário.

Os objetivos de cada área protegida são especificados pelo sistema de categorização de áreas protegidas da IUCN.

Pessoal refere-se aos administrativos, funcionários e voluntários que constituem o órgão diretivo. Para órgãos diretivos de base comunitária, pessoal também se refere aos membros da comunidade.

Em síntese, nas últimas duas a três décadas, a governança em áreas protegidas deixou de ser predominantemente de base estatal, e tornou-se um sistema multiníveis, no qual os poderes se distribuem, de forma difusa, entre diferentes atores. Os modelos contemporâneos de governança variam desde o tradicional exercício de autoridade por parte de um órgão do governo, a modelos de cogestão, que envolvem parcerias, passando por modelos informais, que envolvem diferentes agentes, ONGs, comunidades e indivíduos. Este regime multiníveis

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traz vantagens. O envolvimento de diferentes atores pode resultar em processos de gestão e de governança mais eficazes e na promoção de sistemas de áreas protegidas mais justos e

mainstreamed. A descentralização pode, no entanto, resultar em processos e instituições

fragmentados, sem representatividade e pouco democráticos (Lockwood, 2010).