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Da abordagem cognitiva e psicolinguística à abordagem socioconstrutivista:

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 67-70)

1. O ensino de tradução no contexto americano e europeu nos últimos 30 anos

1.1. Abordagens de ensino de tradução desenvolvidas nos últimos 30 anos

1.1.5. Da abordagem cognitiva e psicolinguística à abordagem socioconstrutivista:

abordagem socioconstrutivista: Donald Kiraly

Donald Kiraly acredita na eficiência de uma abordagem socioconstrutivista durante a formação acadêmica do tradutor, pois, desde o princípio, o aprendiz será incitado a compreender seu papel na sociedade e na sua profissão. Para ele, a análise dos erros dos aprendizes seria uma ferramenta didática, já que permite a busca por estratégias de tradução e, consequentemente, a solução dos problemas encontrados pelos aprendizes, além de permitir trabalhar deficiências precedentes do ensino médio e fundamental.

Em sua obra Pathways to Translation, de 1995, Kiraly defende o uso de protocolos verbais (Think-Aloud Protocols, TAPs), uma vez que compreender a atividade mental do tradutor seria importante para o desenvolvimento de uma didática da tradução. Isso significa o uso da abordagem cognitiva para elaborar sua metodologia de ensino de tradução. “De modo geral, o objetivo dos estudos envolvendo o uso de TAPs é compreender melhor os mecanismos psicológicos e linguísticos que envolvem o ato de traduzir”62

(JÄÄSKELÄINEN, 2005, p. 266).

Com a publicação de A Social Constructivist Approach to Translator Education: Empowerment from Theory to Practice, em 2000, Kiraly busca um novo ponto de partida para a discussão a respeito das concepções metodológicas da prática tradutória, iniciada em 1995. O pesquisador relata que se deve buscar utilizar materiais de situações reais no processo de ensino-aprendizagem de tradução, sendo o aprendiz o

62 “At most general level, the purpose of TAP studies is to gain a better understanding of the psychological and linguistic mechanisms involved in the activity of translating.”

personagem ativo em desenvolvimento profissional e acadêmico. A formação do tradutor seria, portanto, um processo dinâmico e interativo, enquanto o professor seria um facilitador durante todo o processo. Por essa razão, cabe ao aprendiz buscar ajuda quando necessário, ou seja, buscar colaboração com seus colegas e professor, o que demonstra ser a abordagem proposta por Kiraly também colaborativa.

Kiraly busca alternativas à didática tradicional, trabalhando com a ideia de uma maior interação entre aprendizes e professores. O grupo deve ser mais ativo e buscar o crescimento em conjunto, por meio da cooperação na aquisição de conhecimentos que deverão ser interiorizados. Além disso, deve-se observar a necessidade de intervenção de outros personagens para que a aprendizagem não se estagne. Essa estratégia permitiria que o conhecimento adquirido pelo aprendiz não estacionasse no nível intermediário, a zona de desenvolvimento proximal,63 pois já adquiriu mais conhecimentos e extrapolou a zona de desenvolvimento real,64 no entanto, o aprendiz deve buscar mais conhecimento, abrangendo, desse modo, a zona de desenvolvimento potencial.65 Desse modo, a construção do conhecimento ocorreria no âmbito da zona de desenvolvimento proximal, por meio de desafios, questionamentos e resolução de problemas. Na visão proposta por Kiraly e defendida por Márcia do Amaral Peixoto Martins como pode ser observado abaixo, o professor seria um facilitador para que os aprendizes possam construir seu próprio conhecimento:

De detentor único do saber, o professor passa a facilitador, com a função de levar os aprendizes a construírem seus próprios conhecimentos – o que transforma a sua sala de aula em um local propício à aprendizagem interativa e autêntica. Os aprendizes, por sua vez, de receptores passivos do conhecimento delimitado e transmitido pelo professor, tornam-se agentes de sua própria aprendizagem, pela qual são responsáveis (MARTINS, 2006, p. 39).

63 Zona de Desenvolvimento Proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1994, p. 112).

64 Zona de Desenvolvimento Real: “é determinado por aquilo que [...] [o indivíduo] é capaz de fazer sozinha, porque ela já tem um conhecimento consolidado. Solução independente do problema” (FREIRE, [s.d], p. 3).

65 Zona de Desenvolvimento Potencial: “é determinado por aquilo que [...] [o indivíduo] ainda não domina, mas é capaz de realizar com auxílio de alguém mais experiente. Solução de problema sob orientação de alguém mais experiente” (FREIRE, [s.d], p. 3).

Em seu trabalho sobre a formação de tradutores publicado em 2000, Kiraly critica sua primeira abordagem cognitiva e adota o socioconstrutivismo como base para propor uma abordagem colaborativa de formação de tradutores:

A aprendizagem é atingida de modo mais eficiente através de interações significativas com colegas e outros membros da comunidade à qual os estudantes pretendem se incorporar. [...] Mais do que tentar desenvolver de forma atomística habilidades e conhecimentos relacionados com a tradução, com exercícios simulados prévios à prática da tradução, seria mais construtivo iniciar cada evento pedagógico com um projeto fortemente realista e, se possível, genuíno66 (KIRALY, 2000, p. 60).

Assim, Kiraly demonstra sua oposição quanto ao uso de textos fabricados, o que pode ser observado na proposta de Hurtado Albir (1999) ao não ressaltar a importância do uso de documentos autênticos que tenham um objetivo real e possam ser publicados.

Desse modo, os aprendizes não teriam outra escolha a não ser buscar novos conhecimentos por meio da interação nas atividades propostas, o que permitiria um aprendizado em etapas enquanto adquirem a competência tradutória, ou seja, Kiraly propõe que o aprendizado seja o verdadeiro foco na formação de tradutores. Acreditando nessa proposta de Kiraly (2000), Márcia Martins afirma que

[...] quando os aprendizes são confrontados com visões distintas, eles aprendem a avaliar as vantagens e desvantagens de diferentes pontos de vista e a escolher as mais viáveis; o professor também dá suas sugestões que não devem ser entendidas como palavra final (MARTINS, 2006, p. 38).

Ao apoiar uma abordagem socioconstrutivista por meio da proposta de que os professores ajam como facilitadores, intermediários, e que tenham ampla experiência como tradutores profissionais, esse pesquisador busca demonstrar na verdade o modo como tornaria mais fácil para o professor usar textos reais durante o processo de ensino- aprendizado, além de instigar o aprendiz a buscar seus próprios conhecimentos. Desse

66

“[l]earnig is best accomplished through meaningful interaction with peers as well as full-fledged members of the community to which learners are seeking entry. […] Rather than attempting to build up students’ translation-related skills and knowledge atomistically in simulated exercises prior to translation practice, it would be much more constructive to start each pedagogical event with a highly realistic, and if possible genuine, translation project.”

modo, Martins aponta que “faz mais sentido pensar numa educação que tenha o propósito de criar condições para um espaço público de discussão em que as pessoas possam confrontar seus diferentes pontos de vista” (MARTINS, 2006, p. 37).

Kiraly afirma que competência tradutória seria formada por um conjunto de habilidades, no qual o bom tradutor deve, de acordo com Martins, “usar ferramentas e conhecimento para criar textos que cumpram seu objetivo comunicativo e que sejam aceitos como boas traduções na comunidade que os recebe” (MARTINS, 2006, p. 29- 30). Ademais, Kiraly assevera que a competência em tradução ou a competência tradutória não bastam para que o tradutor seja um profissional de sucesso.

Para ser bem-sucedido, o profissional de hoje deve [...] conhecer as ferramentas tecnológicas disponíveis e utilizá-las para aumentar sua produtividade e a qualidade de suas traduções; ser capaz de se familiarizar com novos assuntos e dominar novas modalidades de tradução de maneira rápida e eficiente; conseguir identificar e observar as normas e convenções vigentes nas novas comunidades discursivas que deseja integrar; estar preparado para justificar suas opções e escolhas tradutórias, caso venha a ser questionado; saber trabalhar em conjunto com outros tradutores e com especialistas (KIRALY, 2000, p 13-14 apud MARTINS, 2006, p. 29-30).

Vale ressaltar ainda que Kiraly (2000) atribui a falta de metodologias de ensino de tradução ao pouco tempo de sistematização do curso nas diversas universidades ao redor do mundo, admitindo assim que metodologias para a formação de tradutores e professores de tradução ainda não foram bem desenvolvidas.

Passaremos a relatar a abordagem proposta por Daniel Gile, a qual credita à análise de todo o processo tradutório durante as atividades relacionadas ao ensino de tradução o sucesso da formação do aprendiz de tradutor, e na qual se observa características do ambiente europeu de ensino, mas que pode ser bem exemplificada com a criação da nova habilitação em espanhol no curso de tradução da Universidade de Brasília e que será relatado a seguir.

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 67-70)