• Nenhum resultado encontrado

O tradutor como mediador: entre a leitura naturalizante e a estrangeirizante

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 156-159)

CAPÍTULO 2 O TEXTO LITERÁRIO E SUA TRADUÇÃO

4. O texto literário

4.3. Leitura e interpretação do texto literário para a tradução

4.3.4. O tradutor como mediador: entre a leitura naturalizante e a estrangeirizante

É por meio da apresentação de uma realidade sociocultural, diferente da sua, para outros públicos-leitores, que a tradução de textos literários atua como mediadora não somente do texto literário envolvido no processo de tradução, mas de toda uma história. Porém, é o tradutor que atua como agente da transformação que possibilita ao texto de origem cruzar as barreiras impostas pelas línguas envolvidas e trafegar entre sistemas literários ou, como denominado por José Lambert, seu polissistema (COSTA; GUERINI; TORRES, 2010).

Em relação à percepção da tradução como mediadora, Pascale Casanova ressalta que o tradutor

[é um] intermediário indispensável para “atravessar” a fronteira do universo literário, o tradutor é um personagem essencial da história do texto. Os grandes tradutores centrais são os verdadeiros artesãos do universal, ou seja, do trabalho em direção a “um”, em direção à unificação do espaço literário (CASANOVA, 2002, p. 180).

Porém, para que o processo tradutório obtenha sucesso, é preciso que o tradutor, ao atuar como mediador entre a língua e a cultura de partidas e a língua e a cultura de chegada, compreenda que a “tradução é apenas um modo de alguma forma provisória de lidar com a estranheza das línguas” (BENJAMIM, 2001, p. 201). Consequentemente, o tradutor, ao se ver como mediador, percebe que o processo tradutório pode gerar diferentes produtos conforme a leitura e interpretação do texto de origem.

Por essa razão, os tradutores de textos literários devem inferir que, ao transportar o texto original para uma nova comunidade, estão de fato recriando um texto literário por meio da sua visão de mundo, pois, “do mesmo modo que a escrita literária é uma arte de criação, a tradução de textos literários também é, embora chamaremos de recriação em vez de criação”187

(BASTIN; CORMIER, 2007, p. 16). Essa recriação só é possível a partir do momento em que a leitura e a interpretação do texto original sejam realizadas de maneira satisfatória, pois caberá ao tradutor a tarefa de demonstrar aos leitores da língua de chegada as razões que levaram determinado texto literário a ser traduzido, e como consequência, mostrará que esse texto detém valor na cultura de partida e, assim, pode ser considerado um bem cultural. O processo de recriação deve favorecer os futuros leitores do texto de chegada, no sentido de que o tradutor deve se preocupar em escrever o texto de maneira natural e, caso necessário, saiba utilizar de sua habilidade em manipular a escrita para demonstrar a originalidade do texto de partida, bem como evidenciar as escolhas estilísticas do autor188 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 17).

Conforme proposto por Walter Benjamim, o tradutor deve ir ao encontro da proposta do autor e realizar uma tradução em que o leitor perceba características da escrita do autor, mas num contexto da língua de chegada, como pode ser observado abaixo.

187 “On a souvent défini la traduction comme un art. Dans la même mesure que l’écriture littéraire est un art de création, la traduction de textes littéraires l’est aussi, bien que l’on parlera alors de recréation plutôt que de création. Il est toutefois exagére de voir dans la traduction professionnelle, essentiellement pragmatique ou non purement esthétique, un art.”

188 “Traduire, c’est aussi produire un texte duquel il convient d’exiger trois qualité: qu’il soit rendu naturellement en langue d’arrivée et qu’il parvienne, par une adroite manipulation de l’écriture, à donner l’idée la plus juste de l’originalité et des inventions stylistiques de l’auteurs traduit.”

[...] a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, ir reconfigurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso (BENJAMIM, 2001, p. 207).

Bem como observado por Bastin e Cormier, “a leitura é, portanto, entrar no mundo do outro para entender os meandros, a forma e o conteúdo”189 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 28) da sociedade em que esse texto se insere. Assim, espera-se do tradutor um trabalho minucioso, pois ele “deverá, sobretudo, compreender o texto, ou seja, descobrir o percurso mental e discursivo do escritor ou autor: seu raciocínio, seus não ditos, suas redundâncias, suas insinuações”190 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 27). Desse modo, o tradutor, por meio desse processo meticuloso, recria o que lhe foi destinado a ser traduzido. Segundo Paulo Rónai, “quando o texto a traduzir é de caráter literário, [...] o tradutor deve utilizar seus conhecimentos de técnico para conseguir efeitos de arte a provocar emoções estéticas” (RÓNAI, 1981, p. 19).

Entretanto, como enfatizado por Bastin e Cormier, o tradutor não consegue se abster de seus valores, suas crenças, suas ideologias, sua cultura e sua história, mesmo tentando agir e pensar como o público-alvo original do texto em que traduz:

A tradução possui propriedades elásticas. Podemos fugir da própria língua para entrar em outra, mas sempre retornamos à nossa. Podemos ter um banho de cultura estrangeira, mas sempre retornaremos à cultura original, porém nunca no mesmo estado de que partimos. No entendimento do outro que a tradução proporciona, se acrescenta a distância com relação à sua própria língua e cultura, e, portanto, uma grande compreensão de si. O tradutor trabalha tendo como princípio o respeito ao outro, naquilo que ele tem de mais precioso, seus pensamentos e suas expressões. A diversidade linguística e cultural é solidificada pela atividade tradutória191 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 62-63).

189 “Lire, c’est donc pénétrer dans le monde des autres pour en saisir les tenants et les aboutissants, fond et forme confondus.”

190 “Le traducteur devra surtout comprendre le texte, c’est-à-dire découvrir le cheminement mental et discursif du rédacteur ou de l’auteur: ses raisonnements, ses non non-dits, ses redondances, ses insinuations.”

191 “La traduction a des propriétés élastiques. On a beau s’éloigner de sa propre langue pour en pénétrer une autre, on revient toujours à la sienne; prendre un bain culturel étranger, on revient toujours à sa culture originale, mais jamais dans le même état qu’auparavant. À la compréhension de l’autre que procure la traduction s’ajoutent la distance d’avec sa propre langue et sa propre culture et donc une plus grande compréhension de soi. [...] Le traducteur travaille au respect de l’autre dans ce qu’il a de plus précieux, sa pensée et l’expression de celle-ci. La diversité langagière et culturelle est consubstantielle à l’activité de traduction.”

Aproximando-se do que afirma Rónai (1981), Bastin e Cormier acreditam que durante o processo de leitura o tradutor reage ao que lê, inicialmente devido à forma, e em seguida, conforme o modo como o texto foi escrito. A presença ou não de emoção permite que o tradutor interprete as nuances contidas no texto; “na verdade, ele irá raciocinar a leitura. Ele vai resumir a análise do conteúdo e forma, em termos macro e microtextuais”192

(BASTIN; CORMIER, 2007, p. 29). De qualquer forma, porém, o tradutor, reagindo ou não de forma emotiva ao texto literário lido, antes de iniciar processo tradutório, “é preciso compreender bem antes de traduzir. [...] [Pois] a boa tradução deve fazer, e não somente dizer. Deve, como o texto, ser portadora e levada” (MESCHONNIC, 2010, p. XXIX) por emoções e sentimentos próprios à escrita literária.

A tradução do texto literário deve tentar repassar à língua e à cultura de chegada as reações esperadas pelo autor ao escrever o texto de origem. A tradução pode evidenciar a presença do Outro, sendo mais estrangeirizante, ou pode tentar ocultar mais as diferenças entre as línguas e culturas envolvidas e, por conseguinte, ser um produto da naturalização imposta pelo tradutor. Por outro lado, o tradutor pode tentar se abster, esconder sua intervenção no texto traduzido, contudo, por meio de suas escolhas tradutórias, acaba se revelando e demonstra toda sua experiência de mundo e suas ideologias.

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 156-159)