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O tradutor como leitor crítico

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 146-150)

CAPÍTULO 2 O TEXTO LITERÁRIO E SUA TRADUÇÃO

4. O texto literário

4.3. Leitura e interpretação do texto literário para a tradução

4.3.1. O tradutor como leitor crítico

Questão pouco debatida durante o processo de ensino-aprendizagem de práticas de tradução, a leitura tem um papel importantíssimo para o progresso da competência tradutória, a qual, como visto no capítulo anterior, seria formada pelas subcompetências linguística, extralinguística, instrumental, psicofisiológica, estratégica, de transferência e metacognitiva do tradutor (ECHEVERRI, 2008). Assim, antes de aprender a traduzir, o tradutor deve primeiramente aprender a ler de modo mais atento que o leitor comum, com um senso crítico mais aguçado, com uma curiosidade maior para detalhes que passariam despercebidos pelo leitor, pois o tradutor “deve ter um ótimo nível de ‘leitura e de compreensão’ na língua estrangeira”169

(NEWMARK,1988, p. 3).

Desse modo, o tradutor deve ter em mente que uma vez que “qualquer texto desafiador exige uma leitura minuciosa, tanto fora de contexto quanto no contexto”,170

(NEWMARK, 1988, p. 11), a soma de curiosidade e de senso crítico resultaria em um

168 “Le traducteur lit, non parce qu’il en a envie, mais parce qu’il le doit. Et il lit ce qu’on lui donne, ou ce qu’il accepté de lire. [...] Le traducteur est peut-être le seul travailleur intellectuel à lire autant et à lire des choses aussi différentes, compte tenu de ses domaines de spécialisation.”

169 “Further, I shall assume that you have a degree-level ‘reading and comprehension’ ability in one foreign language.”

170

leitor diferenciado, criterioso e cuidadoso, e permitiria a constituição de sua competência tradutória. A esse respeito, Freddie Plassard (2007 apud NORMANDIN, 2011, p. 53) destaca que “a leitura é considerada, por muitos tradutores, como uma aquisição. A competência em leitura em si, indispensável à aquisição da competência tradutória, é raramente debatida na tradutologia.”171

Em geral, acredita-se “[...] que tradutores lidam com palavras, mas essa é uma meia-verdade. Qualquer que seja [...] [o] ramo de tradução [sua especialização], eles também lidam com ideias. E os tradutores literários lidam com culturas”172

(LANDERS, 2001, p. 72). Já Ítalo Calvino acredita que o ato de traduzir é o verdadeiro modo de se ler um texto e que a tradução de textos literários seria a mais surpreendente de todas as especialidades de tradução, pois “traduzir é uma arte: a passagem de um texto literário, qualquer que seja seu valor, para outra língua demanda sempre um certo tipo de milagre. [...] o tradutor literário é aquele que se põe por completo em jogo para traduzir o intraduzível”173

(CALVINO, 2001, p. 1825).

Deve-se destacar, novamente, que a leitura e a interpretação de textos pragmáticos de textos literários são realizadas de modo diferente, pois enquanto o primeiro dá atenção ao conteúdo, o segundo se preocupa com a forma e com o estilo, como assegurado por Normandin (2011, p. 57-58):

É claro que os tradutólogos e os formadores preocupados com a tradução de textos ditos pragmáticos não têm os mesmos objetivos de leitura e nem buscam transmitir aos tradutores em formação os mesmos objetivos de leitura como fazem os “leitores literários”, os críticos literários ou os teóricos da literatura.174

171 “La lecture est souvent considérée comme allant de soi aux yeux de nombreux traducteurs.La compétence de lecture elle-même, indispensable à l’acquisition de la compétence de traduction, est rarement débattue en traductologie.”

172

“It is commonly thought that translators deal with words, but this is only partly true. Whatever their branch of translation, they also deal with ideas. And literary translators deal with cultures.”

173 “Tradurre è un’arte: il passaggio di un testo letterario, qualsiasi il suo valore, in un’altra lingua richiede ogni volta qualquer tipo di miracolo. [....] Il traduttore letterario è colui che mette in gioco tutto se stesso per tradurre l’intraducibile.”

174 “Il est clair que les traductologues et les formateurs préocupés par la traduction de textes dits pragmatiques ne ce donnent par les mêmes objetifs de lecture,et ne cherchent pas à transmettre aux apprentis traducteurs les mêmes objetifs de lecture que ceux que se donnent les ‘lecteurs littéraires’, les critiques littéraires ou les théoriciens de la littérature.”

Desse modo, é durante a leitura atenta e detalhada que o tradutor percebe que traduzir não é uma tarefa fácil, uma vez que é o resultado de diversas variáveis e não somente da aglomeração de palavras. É devido à percepção crítica que esse profissional nota possíveis choques culturais e ideológicos, o que resulta em buscas por estratégias para transmitir ao novo público-alvo o que o autor ansiou por colocar em seu texto e o que de fato o autor consignou no texto.

De acordo com Haroldo de Campos (2004), assim como de Calvino (2001), a tradução seria a maneira mais intensa de ler e interpretar, pois transitaria entre a necessidade e a impossibilidade. O tradutor lê o texto do Outro, do estrangeiro, pensando em como tornar aquela leitura inicial em um texto numa outra língua, que apresente fluidez e coerência na língua de chegada. O tradutor percebe, então, que “aprender a traduzir também é aprender a ler” (SARMENTO, 2001, p. 35); e mais, como afirmado por Octavio Paz (2009, p. 9), “aprender a falar é aprender a traduzir”.

Por outro lado, devido à constante leitura, o tradutor se transforma em um leitor com senso crítico aguçado e, consequentemente, enquanto traduz também analisa criticamente as marcas histórico-sociais de uma cultura diferente da sua, isto é, reaprende a ler e a reinterpretar o mundo. Essa reinterpretação do mundo por meio do ato tradutório demonstra que “toda tradução é [uma] crítica”, como afirma o ensaísta Albrecht Fabri (apud CAMPOS, 2004, p. 32).

Consequentemente, é por meio do ato tradutório e da leitura da tradução que percebemos nosso envolvimento com a língua e a cultura de origem, pois “[...] a tradução tende a expressar o mais íntimo relacionamento das línguas entre si. Ela própria não é capaz de revelar, nem é capaz de instituir essa relação oculta; pode, porém, apresentá-la, atualizando-a de maneira germinal ou intensiva” (BENJAMIM, 2001, p. 195). Mas, mesmo sendo concebida como um novo modo de ler e de perceber o mundo, traduzir continua sendo uma atividade questionada entre as sociedades, como afirma Henri Meschonnic (2010, p. XX):

Traduzir é o ponto fraco das noções da linguagem. Porque é ponto onde a confusão entre língua e discurso é a mais frequente, e a mais desastrosa. A língua é o sistema da linguagem que identifica a mistura inextricável entre uma cultura, uma literatura, um povo, uma nação, indivíduos, e aquilo que eles fazem dela.

Portanto, ao conceber a tradução como um novo modo de leitura para o tradutor, nada mais coerente que enfatizar o fato de que a leitura e a interpretação durante o processo tradutório e de seu produto, o texto traduzido, são realmente de extrema importância para o sucesso de uma tradução. É durante a leitura que o tradutor adquire ou constata ter os conhecimentos necessários para realizar o processo tradutório (DELISLE, 1984).

Com essa expectativa, George Bastin e Monique Cormier enumeram as características esperadas de um bom tradutor, sempre destacando a importância em dominar as línguas envolvidas e conhecer bem suas culturas, como pode ser observado a seguir:

Em primeiro lugar, o tradutor deve ter uma excelente compreensão da língua de partida e ótimas habilidades de escrita na língua de chegada. O tradutor trabalha geralmente no sentido de sua língua materna. [...] O tradutor deverá possuir ampla cultura e demonstrar uma grande curiosidade intelectual. [...] Por fim, esperamos que o tradutor domine uma terceira língua, que ele tenha domínio de uma especialidade e possa trabalhar em outras especialidades e que ele use facilmente as ferramentas de informática175 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 51-52).

Partindo desse pressuposto, o tradutor deve compreender que a ele é dado uma tarefa importantíssima para a obra: “encontrar na língua para a qual se traduz a intenção a partir da qual o eco do original é nela despertado” (BENJAMIM, 2001, p. 203). E, por esse motivo, deve estar sempre lendo, pesquisando, conferindo e ampliando seus conhecimentos, isto é, se atualizando, pois o tradutor deverá perceber as mudanças no uso da língua pela comunidade na qual se insere e da qual traduz, pois

caso vise a qualidade, o tradutor trabalhará as competências que utilizará durante toda sua carreira: a leitura e escrita. Ele lerá com um duplo propósito: aperfeiçoar sua língua materna e das línguas estrangeiras, mas também

175 “D’abord, un traducteur doit posséder une excellente compréhension de la langue de départ et de solides qualités rédactionnelles dans la langue d’arrivée. Le traducteur travaille en effet généralement vers sa langue maternelle. [...] le traducteur doit posséder une large culture et faire preuve d’une grande curiosité intellectuelle. [...] Enfin, de plus en plus, on souhaite que le traducteur maîtrise une troisième langue, qu’il maîtrise également un domaine de spécialité et puisse travailler dans d’autres, et qu’il utilise aisément les outils informatiques.”

enriquecer a bagagem de conhecimentos gerais e especializados176 (BASTIN; CORMIER, 2007, p. 44).

E, como bem expressado por Peter Newmark (1988, p. 18), “em resumo, [o tradutor] tem que estudar o texto não para si próprio, mas como algo que deve ser reconstruído par um diferente público e uma cultura distinta”.177

No documento Do ensino de tradução literária (páginas 146-150)