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Da Carta de Curitiba

No documento FERNANDO HENRIQUE DE MORAES ARAÚJO (páginas 48-55)

3. DA ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO

3.1 Do Ministério Público no Brasil

3.1.3 Da Carta de Curitiba

A regulamentação da instituição ministerial em novo texto constitucional já era anseio dos membros do Ministério Público, haja vista que a Lei Orgânica Nacional datada de 1981 urgia por retificações e alcance constitucional.

Com a Emenda Constitucional 1/69 inclusiva do Ministério Público na esfera do Poder Executivo, não havia autonomia da instituição para exercício de suas atribuições.

E isso tinha razão de ser. Um dos principais entraves institucionais era a relação de vinculação e submissão do Ministério Público ao Poder Executivo.

O Chefe do Ministério Público – o Procurador Geral (seja nos Estados, seja da União) – era considerado “o braço direito do respectivo Chefe do Executivo”.

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DIAS, Astor Guimarães. Introdução à história do Ministério Público do Estado de São Paulo. Justitia, 60 anos, São Paulo, 1999, p. 262-278.

A nomeação e a demissão ad nutum do Procurador-Geral eram instrumentos de mando branco do Chefe do Executivo ao órgão incumbido de fiscalizá-lo e também sua própria administração, já que, veladamente, fazia com que o Ministério Público não agisse com a necessária independência e liberdade, tornando-o órgão de acanhada atuação em relação a condutas ilegais praticadas pelos Chefes dos Executivos das diversas esferas da Federação (União, Estados).

E a razão era óbvia, já que o Procurador-Geral tinha como uma de suas funções, investigar e processar, eventualmente, o próprio Chefe do Executivo que o escolhera.

Como tivemos a oportunidade de demonstrar em capítulo anterior, a história do Parquet no Brasil sempre caminhou por tal via, somente sendo encerrada com a Carta Republicana de 1988.

Nesse sentido dispunha o Decreto n. 9.392, de 05 de agosto de 1938, que o Procurador Geral seria nomeado pelo governo, entre doutores e bacharéis em Direito, de reputação ilibada e marcante merecimento, devendo contar com mais de 35 anos de idade e mais de 10 anos de prática forense.

O Chefe da instituição ministerial poderia ser nomeado pelo chefe do Executivo entre cidadãos que preenchessem os requisitos indicados, pouco importando se compunha ou não os quadros da carreira, o que para aquele período temporal se mostrava interessante ao Poder Executivo, em evidente detrimento da instituição ministerial, absurdo este que somente veio a ser corrigido com a Constituição Federal de 1988.

Isso porque a Lei Orgânica Nacional n. 40, de 14 de Dezembro de 1981, manteve diversos dispositivos retrógrados que ainda eram entraves ao fiel e independente exercício das funções ministeriais.

É bem verdade que no artigo 2º da referida lei foram contemplados os princípios institucionais do Ministério Público: a unidade, a indivisibilidade e a autonomia funcional; no artigo 3º, III, prevista a legitimidade do Parquet para ajuizamento de ação civil pública e no artigo 5º a estruturação da carreira em primeiro e segundo graus de jurisdição (Promotores de Justiça e Procuradores de Justiça, respectivamente).

No entanto, a ligação umbilical com o Poder Executivo ainda perdurava. O artigo 6º dispunha que:

“O Ministério Público dos Estados terá por Chefe o Procurador-Geral de Justiça, nomeado pelo Governador do Estado, nos termos da lei estadual.”

As atribuições do Procurador-Geral estavam previstas no artigo 7º, entre as quais:

“(...)

III - representar ao Governador do Estado sobre a remoção de membro do Ministério Público estadual, com fundamento em conveniência do serviço; IV - designar o Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado, dentre lista tríplice apresentada pelo Colégio de Procuradores;

V - designar, na forma da lei, membro do Ministério Público do Estado para o desempenho de funções administrativas ou processuais afetas à Instituição; VII - avocar, excepcional e fundamentadamente, inquéritos policiais em andamento, onde não houver delegado de carreira;”

Ora, o dispositivo mantinha hipóteses absolutamente arbitrárias, como a remoção de membro da instituição, sem prévia consulta de órgãos colegiados da classe, bastando mera representação ao Governador (figura estranha aos quadros institucionais), além de designação de membros para atuarem em determinados casos, quando houvesse “interesse” do Procurador-Geral de Justiça (ou do próprio Chefe do Executivo), sem que houvesse respeito ao princípio do promotor natural69 (que posteriormente se consagraria definitivamente com a Constituição Federal de 1988).

Aquele cidadão de absoluta confiança do Chefe do Executivo nomeado para o cargo de Procurador-Geral de Justiça poderia, portanto, buscar o afastamento arbitrário de algum membro que porventura fosse contrário aos interesses do Poder Executivo, mesmo que escorado em atuação legalmente correta.

Além disso, os poderes do Procurador-Geral de designação do Corregedor-Geral e de membros para o desempenho de funções que entendesse adequadas não respeitavam a Teoria dos freios e contrapesos acolhida pela Constituição de 1988 e nem sequer respeitava o já mencionado princípio do promotor natural.

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“A idéia do promotor natural surgiu, embrionariamente, das proposições doutrinárias pela mitigação do poder de designação do procurador-geral de justiça, evoluindo para significar a necessidade de haver cargos específicos com atribuição própria a ser exercida pelo Promotor de Justiça, vedada a designação pura e simples, arbitrária, pelo Procurador-Geral de Justiça.

...

A consagração do princípio do promotor natural veio da legislação constitucional paulista, com o art. 46, n. II, da Constituição do Estado de São Paulo, na redação dada pela Emenda Constitucional 33, de 30.06.1982, que garantia ao Promotor de Justiça a inamovibilidade, salvo a hipótese de remoção compulsória para igual entrância, somente com fundamento em conveniência do serviço, mediante representação do Procurador-Geral de Justiça, ouvido o conselho superior do Ministério Público, assegurada ampla defesa.”

Hoje o princípio se encontra consagrado na CF, art. 128, § 5º, n. I, b, e na LOMP, art. 38, n. II, bem como nos regimes estaduais do MP, como por exemplo no de São Paulo (LOMP-SP, art. n. 220, II).” NERY JR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: RT, p. 88-89.

A possibilidade de avocação de inquéritos policiais em andamento também não se fazia democrática e legalista.

Sobre o contexto histórico Mazzilli explica que:

“O anteprojeto final, nacionalmente conhecido com o nome de ‘Carta de Curitiba’, é resultado, basicamente do trabalho de harmonização de cinco fontes: a) os principais diplomas legislativos já vigentes (CF e LC federal n. 40/81); b) teses aprovadas no VI Congresso Nacional do Ministério Público (Ministério Público e Constituinte, Justitia, São Paulo, v. 131 e 131-A, jun. 1985); c) as respostas dos membros do Ministério Público do País a uma pesquisa, sob forma de questionário-padrão, elaborada em outubro de 1985, pela CONAMP (Confederação Nacional do Ministério Público); d) o anteprojeto apresentado por José Paulo Sepúlveda Pertence à Comissão Afonso Arinos; e) o texto provisório, elaborado por comissão designada pela Conamp, preparatório para a reunião final de Curitiba, realizada em junho de 1986.”70

Antes de 1988, quando então se promulgou a Carta Constitucional, foram realizados vários congressos e reuniões de membros do Ministério Público de todo o Brasil.

Tais reuniões culminaram com a elaboração e aprovação, em 1986, da “Carta de Curitiba”, formalizada no 1º Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes de Associações do Ministério Público, realizado no Estado do Paraná, da qual foram extraídas, em sua maioria, as idéias institucionais relativas ao Ministério Público, para elaboração do texto constitucional de 1988.

Nesse período houve intenso debate a respeito do texto relativo ao futuro tratamento constitucional-institucional do Ministério Público.

Os enfrentamentos da instituição ministerial foram muitos, até mesmo dentro da própria classe, como o interesse de muitos Ministérios Públicos Estaduais de desligamento em relação ao Poder Executivo e de outros em sentido oposto, como foi o caso do Ministério Público Federal, que ainda tinha intenção de manter atividades de representação da Fazenda Pública da União e, também, de que houvesse norma que permitisse a seus membros o exercício da advocacia, com o que pactuava o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro71.

70

MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 24.

71

Informação obtida com o próprio Hugo Nigro Mazzilli em entrevista por nós realizada em 08.06.2006, na cidade de em São Paulo, na residência do entrevistado.

Obviamente tais posicionamentos institucionais mais conservadores não vingaram na Assembléia Nacional Constituinte, por notória contradição à alma ética institucional que se buscava alcançar com a nova ordem constitucional, o que realmente se efetivou.

Sobre tal questão Mazzilli informa que:

“Em 1986, o então Procurador-Geral da República, José Paulo Sepúlveda Pertence, integrante da Comissão de Estudos Constitucionais, elaborou sua proposta de texto para o Ministério Público.

Nas vésperas do Encontro de Curitiba, o Comitê n. 5 da Comissão de Estudos Constitucionais aprovara a Proposta Pertence, com algumas modificações, entre as quais incluíra a proibição da advocacia (o que não tinha constado da Proposta Pertence). O Plenário da Comissão manteve o texto básico em suas linhas gerais, inserindo importantes modificações (manteve a ação de interpretação de lei em tese; retirou a figura do defensor do povo dentre as funções do Ministério Público; manteve o princípio da independência funcional dos membros da instituição, limitando-o, porém, com o amplo espectro das designações e assim reduzindo o alcance prático da inamovibilidade; eliminou a proibição do exercício da advocacia; equiparou à da Magistratura a remuneração dos membros do Ministério Público que exercessem suas funções sob dedicação exclusiva etc.).”72

Imaginemos se, atualmente, pudessem os membros do Ministério Público, das diversas esferas da Federação, exercer também a advocacia, além das funções públicas às quais já estão por lei obrigados.

A hipótese, por si só, já se mostra surreal e teratológica.

No entanto, tal conduta era permitida antes da Constituição Federal de 1988, o que demonstra a ausência total de espírito ético e falta de legitimidade da instituição para a defesa de lides coletivas, principalmente para a defesa do patrimônio público da União, Estados. Municípios e Distrito Federal, pois não se vislumbra razoável que esse mesmo agente político – que não tinha obrigação de respeito a valores éticos – postulasse em ações contra o Poder Público a moralidade, sem que isso fosse verificado em sua própria instituição.

Felizmente, o óbvio prevaleceu: a impossibilidade de acumularem os membros do Ministério Público funções outras, salvo a de magistério.

Também a resistência à conquista de garantias institucionais foi intensa.

72

Especialmente magistrados e delegados de polícia eram contrários à previsão de garantias institucionais pelo Parquet73.

A Magistratura, porque não desejava que o Ministério Público obtivesse as mesmas garantias institucionais e os Delegados de Polícia porque desejavam justamente se equiparar à instituição do Ministério Público e, portanto, lutavam contra a aprovação de texto constitucional que estabelecesse garantias institucionais equivalentes às do Poder Judiciário.

Ambas as classes acabaram vendo suas aspirações derreadas, posto que o Parquet conseguiu as mesmas garantias de um Poder de Estado (do Poder Judiciário) e a classe dos Delegados de Polícia não conseguiu a equiparação pretendida, seja no texto normativo constitucional, seja em batalhas jurídicas travadas perante o Poder Judiciário, após sua promulgação.

Mesmo assim, o texto foi considerado vitorioso por Mazzilli, muito embora considere que se perdeu, em tal oportunidade, a chance de a própria classe, por exemplo, escolher de forma direta, e sem interferência externa, seu Procurador-Geral, bem como a explicitação do poder de investigação na esfera criminal (sem assumir por completo a titularidade das investigações), criando norma clara e expressa sobre o poder de investigação do Ministério Público, em casos envolvendo agentes políticos e policiais de quaisquer áreas (militar ou civil).74

Assim entende o estudioso autor porque nos casos criminais, em que há envolvimento de agentes políticos de “alto escalão governamental” a possibilidade de um Delegado de Polícia agir nas investigações com independência é quase inexistente.

Com ele concordamos. A causa é simples.

Tomemos por hipótese uma investigação envolvendo fato criminal cometido em tese por um Governador de Estado.

Como pode o Delegado Geral de Polícia investigá-lo com tranqüilidade e segurança, sabendo que é o investigado (o próprio Governador) que o nomeia e também toda a chefia da Secretaria de Segurança Pública; que decide em que local irão trabalhar (já que os Delegados de Polícia não tem a garantia de inamovibilidade), reduzindo por completo sua esfera de

73

Informação também obtida com o próprio Hugo Nigro Mazzilli em entrevista por nós realizada em 08.06.2006, na cidade de em São Paulo, na residência do entrevistado.

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liberdade, o mesmo não ocorrendo em relação ao Ministério Público, dada a existência do princípio da inamovibilidade.

Ainda assim, mesmo que concordemos com as lúcidas críticas de Mazzilli, certo é que, da forma em que o Ministério Público se ergueu na Carta de 88, sua “criação” trouxe evidente revolução da praxe forense, com a presença de um defensor da sociedade.

Aguçada a visão de João Lopes Guimarães Junior sobre o desenho do atual Ministério Público traçado na Constituição Federal de 1988:

“Inegavelmente, o Ministério Público brasileiro tem hoje outra magnitude. A modificação, que se iniciou com a legitimação para propositura da ação civil pública em defesa de direitos difusos e coletivos, consagrou-se com o advento da nova Constituição Federal. Os escopos estatais relacionados à pacificação social e ao fortalecimento do Estado de Direito estão hoje, em grande parte, sob a responsabilidade do Ministério Público.

A evolução institucional trouxe ao Ministério Público responsabilidade pela defesa dos interesses sociais até em face do próprio Estado, pois dentro do sistema de freios e contrapesos concebido pelo constituinte, o Parquet recebeu a importante missão de coibir os eventuais excessos e desvios cometidos pelos Poderes Legislativo e Executivo.”75

Pelo exposto, percebe-se, por diversos prismas, que até 1988 a instituição não se mostrava forte e independente, a ponto de poder atuar de forma incisiva e correta na defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis, posto que a pressão direta e indireta do Poder Executivo era evidente, ainda que mascarada por normas legais, mas arbitrárias, de controle da instituição, como aquelas há pouco apresentadas.

Já com a Carta Política de 1988, contendo expressamente os princípios institucionais levados – unidade, indivisibilidade e independência funcional – finalmente foi conquistado adequado perfil institucional, não mais se prevendo a hierarquia.

Com a previsão de tais princípios o poder que ficava concentrado nas mãos de um só cargo – o de Procurador-Geral – foi diluído aos membros de atuação em 1º grau, distanciando-se o Ministério Público brasileiro das tradicionais origens francesas, para sim figurar como instituição una e indivisível, mas independente do ponto de vista funcional, equilibrando-se princípios até então jamais conjugados.

75

GUIMARÃES Jr. João Lopes. Ministério Público: proposta para uma nova postura no processo civil. In: FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo (Coord.). Ministério Público: instituição e processo. São Paulo: Atlas, 1997, p. 143-144.

O esforço hercúleo para que o Ministério Público brasileiro se tornasse uma instituição diferenciada sem dúvida não foi em vão, garantindo à sociedade órgão independente para a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis, sem a possibilidade de mandos e desmandos internos ou externos, colocando-a praticamente em patamar de igualdade institucional aos Poderes da Nação.

Do ponto de vista político, o ganho institucional e também social foi tão extraordinário que agora, mais de uma década depois, começa a ser objeto de ameaça de ataques congressistas, visando derrubar-se a força decorrente de tais conquistas constitucionais.

No documento FERNANDO HENRIQUE DE MORAES ARAÚJO (páginas 48-55)