5. DO INQUÉRITO CIVIL
5.3 Teoria institucional ou objetiva de legitimação do Ministério Público para o inquérito civil
O artigo 129 da Constituição Federal, entre várias atribuições exemplificativas, prevê em seu inciso III ser função institucional do Ministério Público: “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
A alçada constitucional foi conquistada graças ao trabalho incansável dos membros do Ministério Público e de sérias pessoas da sociedade civil, que lutaram pela promulgação de uma Constituição Federal digna de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
A despeito de críticas elaboradas por muitos autores sobre a disseminação de ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, não foram tais argumentos fortes o suficiente para derrubar a proposta garantista alcançada pela Instituição ministerial brasileira.
A doutrina apresenta fundamento de legitimação do Ministério Público para atuação na defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Mafra Leal assim explana:
“A justificativa que se propõe é de que a atuação desses autores coletivos se dá pelo que se quer chamar de Teoria Institucional ou Objetivista. Nesse caso, a legitimação não decorre propriamente da representação da classe, mas de uma atividade pública que tem estreita ligação com a estrutura constitucional do Estado-providência, que atribui às entidades legitimadas a incumbência de defesa e concretização de direitos difusos. Portanto, o título de legitimação para as ações coletivas encontra fundamento no direito material instituído no chamado Estado Social.
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Assim Benjamim atribui à massificação do conflito, que ‘retira o litígio da esfera exclusiva dos diretamente envolvidos publicizando-o, o fundamento do que o autor chama de supra-individualidade, que decorre, portanto, do direito material, tornando as normas outrora privatísticas em normas de interesse público’.
(...)
Diante desse direito material especial, atribuído a uma entidade fluida, em virtude da indeterminação de seus membros (comunidade), e sem personalidade jurídica, e por isso direito difuso, o enfoque se desloca da legitimação da representação de grupos para a necessidade de um autor que implemente tais direitos e que possa levá-los a juízo. A identidade do representante como membro ou possuindo alguma particular pertinência com a comunidade representada, nesse caso, é irrelevante ou secundária. A idéia é que as ações coletivas focalizam direitos e valores tais que devem ser judicializados com a mera constatação de violação objetiva das normas que consagram direitos difusos, bastando essa verificação para desencadear a legitimação é denominado nesta dissertação de Teoria Objetivista ou Institucional.”148
Mais adiante conclui:
“A Teoria Objetivista exime-se do ônus de justificar o título de representação do autor e passa a conceber a ação coletiva como um processo objetivo à semelhança das ações diretas de inconstitucionalidade brasileiras ou do contencioso administrativo europeu.”149
Camargo Ferraz, Milaré e Nery Junior esclarecem:
“Relativamente ao interesse processual, que também deverá estar presente para que o Ministério Público possa propor e ver julgada, pelo mérito, a ação civil pública, há uma peculiaridade anotada por Carnelutti. Para ele, o poder que a parte privada tem de exigir a tutela jurisdicional é um posterius em relação ao interesse. Isto quer significar que o poder deriva do interesse processual, da necessidade de ingresso em juízo. No que pertine ao Ministério Público, entende o mestre que o interesse processual deriva do poder (legitimidade) que o legislador lhe outorgou para o exercício da ação civil.
Em outras palavras, o interesse está pressuposto (in re ipsa) na própria outorga da legitimação: foi ele identificado previamente pelo próprio legislador, o qual, por isso mesmo, conferiu a legitimação.”150
Por fim, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery aduzem que:
148
LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações Coletivas: História, Teoria e Prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 70-71.
149
Ibidem, p. 73.
150
FERRAZ, Antonii Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Édis; NERY JUNIOR, Nelson. A ação civil pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 35.
“2. Natureza da legitimação ativa. Para as ações coletivas na tutela de direitos difusos e coletivos, trata-se de legitimação autônoma para a
condução do processo (selbständige Prozeβführungsbefugnis), ordinária.
Quando a ação coletiva for para a tutela de direitos individuais homogêneos (v. CDC 81 par. ún. III), haverá substituição processual, isto é, legitimação extraordinária.”151
Adotamos o entendimento acima apresentado, segundo o qual a legitimação do Ministério Público para a ação civil pública (mais ainda no inquérito civil porque extraprocessual), pese o respeito a corrente doutrinária diversa, é pressuposta, ou seja, não demanda a necessidade de comprovação de interesse processual.
Aliás, no tema que nos toca – inquérito civil – seria inconcebível pensar que o Ministério Público tivesse de “comprovar” interesse extraprocessual, para investigar determinado fato.
Como já destacamos no item anterior, quando a Constituição Federal dispôs que o inquérito civil é uma função institucional do Ministério Público (em verdade instrumento institucional de atuação e não função institucional), não prevendo ou exigindo qualquer requisito ou condição para tal exercício, absolutamente descabido ao legislador infraconstitucional, ou à doutrina, de forma criativa, a busca de meios que possam limitar o campo de investigação do Parquet.
Está o Ministério Público, portanto, autorizado por lei fundamental – a Constituição Federal – a investigar, via de regra, ameaças ou danos a interesses metaindividuais.
Mais. Qualquer tentativa do legislador infraconstitucional de acometer a outra instituição, que não o Ministério Público, a legitimação para uso do inquérito civil padecerá de vício de inconstitucionalidade.
Também assim ocorrerá caso venha a limitar sua utilização por leis infraconstitucionais.
A razão é simples.
Em primeiro lugar porque das instituições previstas no texto constitucional, somente em relação ao Ministério Público é que houve expressa permissão para utilização do inquérito civil, daí o princípio da exclusividade que será adiante analisado.
151
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 487.
Concluímos que o Ministério Público possui um interesse pressuposto de atuação na defesa de interesses metaindividuais, relacionado com o seu caráter institucional, ou seja, lhe é conferida pelo Estado de Direito tal presentação de forma objetiva, não se perquirindo questões de ordem subjetiva.
Doravante também será analisada a ratio legis de não ter havido previsão constitucional a outros órgãos públicos para o uso do inquérito civil.
Na verdade a Constituição Federal criou o Ministério Público como sendo uma instituição pública de defesa social, fora dos quadros dos Poderes Constituídos justamente para poder controlá-los de diversas formas.
Daí por que dizer que sua legitimação é pressuposta.
Porque é uma instituição criada pela forma republicana democrática para fiscalizar e controlar os abusos e as ilegalidades cometidas por outros órgãos e poderes e também pela sociedade civil como um todo.
É o que também defendem Shimura:
“Para o Ministério Público, não se exige o requisito da representatividade
adequada, pois é da essência de sua finalidade institucional a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
De conseguinte, seu interesse processual é presumido, uma vez que suas atribuições já vêm fixadas pela própria norma constitucional. Ademais, não se lhe exige a chamada representatividade adequada, porque a própria Constituição Federal já lhe fixou sua vocação.”152
E Mazzilli:
“O interesse de agir do Ministério Público é presumido pela própria norma que lhe impõe a atribuição. Quando a lei lhe confere legitimidade para acionar ou intervir, é porque lhe presume o interesse.”153
Por isso é que se afirma que no Brasil foi adotada, a teoria institucional ou objetiva, pois há uma instituição criada pelo sistema constitucional destinada a defender, presentar ou representar a sociedade nas questões coletivas, sem questionamentos subjetivos relacionados ao interesse para atuação na área transinvididual.
152
SHIMURA, Sérgio. Tutela Coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, p. 56.
153