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DA CONTINUIDADE-DESCONTINUIDADE À PRESENÇA-AUSÊNCIA

2. CONTRIBUIÇÕES DO TEMPO PARA A ORGANIZAÇÃO DA MENTE 1 CONCEPÇÕES DE TEMPO

2.3. DA CONTINUIDADE-DESCONTINUIDADE À PRESENÇA-AUSÊNCIA

Esta forma de considerar o tempo é menos directa, mas também muito importante no estudo do tempo como organizador do psiquismo. E tudo começou com Freud que postulou que a origem do tempo está na percepção da descontinuidade do sistema percepção-consciência. Para ele é o investimento não continuo dos objectos do exterior a partir de quanta emitidos pelo Ego que determinam a percepção de descontinuidade, que está na origem do tempo, o que implica um antes contínuo. Para Freud, o sistema perceptivo é descontínuo, e pode ser concebido como uma superfície, devido à capacidade de ter obrigatoriamente de estar pronto para receber novas excitações, excitações essas que apelam ao desaparecimento dos traços anteriores que são recolhidos logo depois de terem realizado a sua função – a de se inscreverem. É pela percepção da descontinuidade

75 do investimento do sistema percepção-consciência que Freud postula a origem do tempo. Esta teorização está de acordo com as investigações científicas já referidas por Atkins (2006). Klein também fazendo originar o tempo da descontinuidade, considera que a descontinuidade já existe desde o nascimento – o acto da maior descontinuidade. Portanto o sentido de descontinuidade, essencial ao conceito de tempo, é para ela derivado de uma descontinuidade externa. E assim o tempo caracterizado por Klein é tomado como “protótipo de periodicidade”.

Segundo Harticollis (1974) Freud baseia-se, no final da sua vida, nas ideias de Marie Bonaparte (1940) que afirma que o «sentido que temos da passagem do tempo origina-se na nossa percepção interna da passagem da nossa própria vida». É no momento em que a consciência acorda dentro de nós, que nós percebemos este fluir interno e projectamo-lo no mundo externo. Este fluir relaciona-se também com a atenção, nomeadamente o investimento perceptivo conferido aos objectos, que surge a partir de quanta emitido pelo Ego. A nossa actividade preceptiva interna irá só mais tarde fazer deles uma continuidade e é aqui que encontramos o protótipo do tempo projectado no mundo exterior. Assim colocado numa equação seria atenção=percepção=tempo. Cohn (citado por Orgel, 1965) acrescenta a esta ideia a noção de que o ritmo das funções vitais cria um sentido de tempo regressivo especial no inconsciente. O tempo progressivo é uma projecção deste sentido para fora. Os problemas relacionados com o tempo são predominantemente narcísicos e projectivos, na qual o tempo psicologicamente reflecte a segurança na vida.

Para Arlow (1986) a própria identidade implica que o self ou o objecto seja a mesma entidade em diferentes momentos do tempo, independentemente das transformações que podem ter lugar nos intervalos (Arlow, 1986). Assim, o próprio estabelecimento da continuidade identitária remete para um processo simultaneamente sequencial (ao longo do tempo) e atemporal (constante e ou sempre presente ou fora do tempo). E é, segundo Arlow, o estabelecimento desta continuidade que confere estabilidade e sentido ao self. No fundo é o estabelecimento de continuidade (subjectivo) na descontinuidade (objectiva). Mais uma vez se fala de dois conceitos derivados, cuja definição é complementar entre si (continente-conteúdo), continuidade-descontinuidade.

76 Mas a ideia mais contemporânea e frequente é que o tempo é um apreensão derivada da alternância entre presença-ausência. Comum a todos é o lugar de satisfação-frustração que é inevitavelmente um lugar de presença-ausência de alguém que satisfaz ou frustra, “saiba” o bebé ou seu cuidador disso ou não. A problemática da presença-ausência está assim totalmente relacionada ao tempo, tempo enquanto tempo real e presente, o tempo da apresentação ou da manifestação – realização -, ou tempo irreal, virtual, não presente, não actual do pensamente. É neste jogo de presença-ausência que se estabelece, para Bion a possibilidade de representar mentalmente o tempo.

Bion, em 1958 (publicado em 1992, Cogitations) associa tolerância à frustração a temporalidade (sendo temporalidade a consciência do tempo). Esta tolerância pertenceria à parte não psicótica da mente que obriga também à capacidade de tolerar a culpa e depressão, esta duas consideradas enquanto processos responsáveis pela causalidade, o que psiquicamente é concebível através da noção de consequência, responsabilidade (pela sequenciação). Ora Bion postula a existência de expectativas vazias, de que algo satisfaça e é pelo entrar em contacto com uma realidade correspondente a esta expectativa, que desencadeia frustração ou satisfação. Bion (1967 e outros) refere que a união de uma expectativa, pensamento vazio, ou conhecimento a priori, a um objecto que se lhe aproxime, produz uma concepção mental, uma percepção da realização, inevitavelmente ligada a uma satisfação e que irá, pela sua equilibrada frequência constituir uma base para o desenvolvimento dos pensamentos e do aparelho de pensar.

Mas sempre que a pré-concepção em vez de entrar em contacto com a realidade física, entrar em contacto com o não objecto, não-coisa, com a não- percepção desse objecto, o produto mental é uma realização negativa, isto é, uma vivência de não-objecto ou ainda; um “objecto ausente” que se torna “presente” na mente, pela representação. Em Bion objecto necessitado (esperado) é sempre tomado como um objecto mau e por isso a frustração obriga a mente a procurar alívio. Pode encontrar o alívio de duas formas, que dependem da capacidade de tolerância à frustração. Pode encontrá-lo colocando um pensamento no lugar do objecto ausente ficando assim mais tolerável a frustração – por um processo de transformação – ou, o objecto ausente, o não-objecto, ou com o aumento da frustração, torna-se um objecto-mau não distinguido da coisa-em-si que seria à partida o referente. Este

77 “não-objecto tornado mau” (tomado uma coisa concreta e não como um protopensamento), aumenta a frustração e o sujeito é obrigado a tomar medidas para não percepcionar a realização e assim fugir da frustração: evacuação. À medida que predomina a intolerância à frustração realizam-se ataques destrutivos ao objecto mau. Bion refere ainda que evacuar um objecto mau é equivalente a obter satisfação de um objecto bom e assim o ataque acaba por se generalizar a todos os pensamentos (pois todas as não-coisas – pensamentos - são objectos maus) e impede a construção de um aparelho de pensar.

Ora esta teoria não elimina a importância da procura da continuidade temporal, derivada da descontinuidade; o que não continua em acção realizada continua em símbolo pensado, só que a continuidade passa a ser entre o que se espera que acontece e o acontecimento em si (ou sua ausência), originado no externo, do outro e daqui o tempo e mente parecem estar intrinsecamente ligados. A importância que é dada ao hiato da frustração é aqui paradigmática e retoma a ideia do tempo como duração da filosofia. Na sua obra “Transformações” (1965) ele refere mesmo que, além de se tornar um não-objecto transformado em pensamento, pode-se tornar- se em mais do que isso, pode tornar-se um “ponto de vista (vértice da projecção), caso “espaço” seja usado como elemento insaturado” (citado por Bion, 1965), e assim generalizar a experiência a todas as outras. Para Bóris (1994) o tempo de um bebé é dominado pelo seio, na medida em que quer a satisfação quer a frustração são vividas como uma experiência de um tempo sem fim. O seio torna-se assim tanto um símbolo, um símbolo de algo funesto e abominável, como uma coisa-em-si. Aliás, esta ideia é desenvolvida a partir da sua conceptualização de seio, que considera uma categoria vazia (sentido kantiano), isto é, ele pode ser preenchido de acordo com a forma dos conteúdos projectados nele, mas não promove definição nem dimensão, tal como um saco não faz muito mais do que isso, adoptar a forma daquilo que lhe é inserido. A sua “função” é assim de prover experiências.

Para Bóris (1994) os símbolos, que são formados através do estabelecimento de uma relação de semelhança ou proximidade entre x e y, de tal modo que perante y, é possível sustentar a presença de x (na ausência de x), tem de ter uma outra componente: têm que ser, eles próprios simbolizáveis. No exemplo do autor, o azul pode simbolizar lago, céu, gelo, jacinto, isto é, todos os sentidos podem ser abarcados. O símbolo assim formado fornece um corolário que ajuda a criar uma

78 forma de pensar e falar de uma experiência no futuro ou no passado, isto é, quando está ausente. Para o autor, as “experiências são criaturas a nascer, que precisam de realização”, o que é proporcionada pelos encontros, conceito talvez semelhante ao dos acontecimentos para Matte-Blanco e para a física.

Ora para Bóris (1994) o tempo é de muito difícil realização, principalmente para uma criança que o tenta conquistar, sem o tomar em consideração, isto é, “forçando” um imediatismo, pois a duração (ou a espera) é-lhe terrível. Bóris (1994) não o referiu mas parece-nos fácil concluir aqui que a experiência de espaço é de mais fácil realização do que a do tempo. É que quando se nasce, nasce-se num corpo e um corpo é facilmente sentido como área, como espaço, como lugar. Para Sachs (citado por Harnik, ) “o tempo é o representante da necessidade real” relacionando-o à primeira fome. Harticollis considera num artigo de 1972, que o sentido de tempo determina e é determinado pela transformação dos afectos primitivos (os afectos subjacentes à governação do princípio do prazer/desprazer) em afectos específicos como a ansiedade, depressão, aborrecimento, júbilo, etc..

As origens do tempo, constituídas não numa mente isolada, mas da díade mãe-bebé, tomadas como uma relação intersubjectiva, começam em 1960 (segundo Priel, 1997), com origem nas concepções teóricas winnicottianas e em estudos experimentais. Estas concepções salientam a importância do outro na constituição da consciência de tempo. Mas na teoria geral continente-conteúdo de Bion, está implícita a importância do outro, embora Bion não considere tanto o tempo em si mesmo, um tempo real.