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3. O ESPAÇO E O TEMPO COMO ORGANIZADORES DA MENTE 1 AO LONGO DO DESENVOLVIMENTO

3.1.1. A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA ESPAÇO E TEMPO

A psicanálise localiza no corpo o início do desenvolvimento mental, tomando-o como uma referência, uma espécie de coordenada central com o qual todos os outros espaços entram em relação; distância, proximidade, etc.. Mas este corpo não nunca é referido como tendo um interior no início em termos de espaço: é um corpo investido em superfície, onde decorrem o conjunto das sensações. Em termos de tempo já não se passa assim, na medida em que é na percepção da descontinuidade com regularidade, de um corpo em funcionamento, isto é, fisiologia. Estamos a falar de batimentos cardíacos, movimentos peristálticos (sistema digestivo), respiratórios, etc.. A primeira experiência de tempo tem origem no interior, mesmo que a noção de interior não exista, e que seja uma aquisição mais espacial.

86 Esta ideia parte de Freud, que em 1923 afirmou que o Ego é, “primeiro e acima de tudo, um ego corporal, não sendo simplesmente uma entidade de superfície, mas, ele próprio, a projecção de uma superfície”. Shilder (1935), Anzieu (2000) e Poland (1992), desenvolvem esta ideia do corpo como superfície; superfície que delimita o dentro e o fora (e um dentro, dentro do corpo), ou ainda como pele ou envelope psíquico (invólucro, contentor) na medida em que é o lugar onde o mundo interno e externo imprime os seus conflitos. Para Anzieu (2000) estas sensações estão na origem da delimitação do Eu e para Ogden (1986), estas sensações pré- simbólicas (ele considera que existem estruturas psicológicas profundas que pré- existem ao sujeito e que têm como função organizar as percepções); são o primeiro modo de organização da experiência que ele intitula de posição autística-contígua (coloca antes das posições de Melanie Klein, nas quais se baseia). Isto é feito pela conexão de dados sensoriais brutos que se irão constituir como superfícies confinadas, delimitadas. Para Ogden a experiência de contiguidade é nesta fase necessária, para impedir um derramamento no espaço infinito e sem forma. Golse (2002) também considera importante a unificação, que ele postula que é, em primeiro lugar, uma unificação do próprio corpo. Quer Anzieu, Ogden, e vários autores (muitos deles referidos por Priel (1997) referem um composto mãe bebé (Winnicott), ou uma fantasia de pele comum (Anzieu).

É também comum referir o corpo como o primeiro lugar da experiência da relação; alimentação, cuidados, o toque na pele do bebé, reconhecimento do ambiente, e assim por diante (Poland). Shilder (1935) salienta a interligação entre corpo, espaço e percepção, através das características do tamanho, o peso, a distância, as diferentes dimensões espaciais, a velocidade, o impacto e o movimento, partindo da visão de Freud. Para Shilder o espaço está ligado e é expressão imediata da situação libinal, sendo através do Id que a experiência de espaço é alterada, um espaço mágico, onde se desenrolam as relações com os objectos de investimento e conflitos. O corpo é um lugar de significantes primordiais, de acordo com Golse e Grotstein. O primeiro salienta a qualidade puramente somática no início, e o segundo a componente semiótica dos instintos enquanto lugar que une soma-psique. Para Harticollis (1972 e 74) o sentido do tempo constrói-se também a partir do Id. O tempo vivido é aqui de duração intemporal, mas associada a um processo passivo de

87 espera. Golse (2002), considera este “corpo” amorfo, sem delimitação, totalmente somático.

Para Meltzer (1975) o primeiro espaço é o unidimensional, em que espaço e tempo estão fundidos e são indistinguíveis. Não há separação nem distância; e luta-se contra o espaço e tempo, tal como o Homem Primitivo. Designa-o por um estado de mimetismo, sem mente – estado amental (Meltzer, 1975); apenas existem coisas na direcção a si próprio que gratificam ou frustram. Para Grotstein (2003) esta fase é adimensional (ou Dimensão nula), salientando a sua indiferenciação e simetria, porque qualquer ponto de impacto na superfície é sentido de modo igual em todo o corpo (simetricamente distribuído), que é como o feto e o recém-nascido sentem. A dimensão nula caracteriza um funcionamento mental concreto, sincrético, solipsista e narcísico, devido ao estado de fusão-confusão, num mundo onde continente e conteúdo são idênticos. Nesta dimensão e seguinte (unidimensional) manifestam-se as fixações traumáticas, que ele designa como uma detenção virtual da continuidade do ser e ainda, um estado de “O”. Além disso, como é um espaço sem distância nem delimitação, e por isso não há projecção. Em sintonia com a ideia de Blanco de estado simétrico “puro”.

Para Fenichel, o tempo é inicialmente experimentado através dos ritmos biológicos internos (respiração, pulsação), enquanto sensações cinestésicas, que ajudam a criança a diferenciar os intervalos de tempo (citado por Harticollis, 1974). Esta ideia é referida por muitos autores. Foi Hanns Sachs e Yates em 1935, que o associaram à alimentação e portanto à alternância entre satisfação-frustração, existente na fase oral. Depois destes últimos autores, vários autores foram-se encaminhando para a ideia mais frequente actualmente – o tempo derivado da alternância presença-ausência qualificada como satisfação-frustração, que muitos (Ogden, principalmente) fazem associar à pulsões de vida e morte (segundo concepção de Klein) e consequentemente de bom e mau objecto. Conforme as teorias atribuem maior importância à noção de expectativa (ligando tempo a futuro) vão-se construindo outras concepções. Erickson (1956, citado por Harticollis, 1974) refere que a experiência de ciclos temporais e de qualidades temporais são inerentes (fazem parte do corpo) e desenvolvem-se a partir dos primeiros problemas que a criança sofre na tensão crescente da satisfação das suas necessidades; o adiamento dessa satisfação, e uma unificação com o «objecto» é aquilo que promove a satisfação.

88 Salienta-se aqui a importância da contiguidade corporal (espacial) com o meio. Golse (2002) refere que após a unificação entre os elementos do corpo, esta relação criada vai ser reproduzida na relação com o objecto. Ele considera uma dupla ancoragem: no unificação do corpo e na interacção com o objecto, atribuindo ao bebé uma maior participação na constituição do seu próprio psiquismo.

Um outro analista (Gifford, 1960) associa à aprendizagem e adaptação aos padrões de vigília e de sono, sendo que é durante o período diurno que ele recebe a atenção e satisfação maternal. Arieti (1947, citado por Harticollis, 1974) encontra na capacidade de expectativa e antecipação dos factores determinantes para o desenvolvimento da ansiedade e capacidade de simbolização, respectivamente. A primeira (expectativa), refere-se à capacidade de antecipar acontecimentos quando está presente um determinado estimulo exterior e a segunda, refere-se a essa mesma capacidade, mas na ausência de estímulo exterior (directa ou indirectamente relacionado). Estes dois processos mentais são ontogeneticamente contíguos, sendo que o último advém do primeiro. Arieti (1947) diz que a expectativa se encontra em todos os animais, embora a antecipação é apenas característica do humano. Spitz irá mais tarde (1972, por Harticollis, 1974) referir que é a antecipação o processo psicológico que evolui do condicionamento da actividade reflexiva do recém-nascido e que formará a primeira ponte entre o somático neurofisiológico e a actividade psíquica.

E Rappaport em 1945 é referido no mesmo artigo ao acentuar a relação entre antecipação e a perspectiva de tempo, que é diferente do tempo enquanto ritmo sequência em si mesmo. Também Fenichel e Bóris (1994) salientam a ideia de que no início não há noção de tempo (duração, intervalo, velocidade e ritmo), embora o tempo seja experienciado, mas continua a não existir uma escala do tempo. Ele refere que é de forma inconsciente que se vão estabelecendo os ritmos. Para Meltzer (1976) este é o momento sem-tempo, em que vigoram a sensualidade e o princípio do prazer, que favorecem que a compulsão à repetição não seja consciencializada nem evocada como factor de consequência. São muitos os que postulam um estado inicial de contiguidade espacial e continuidade temporal. Mas Green (2005) considera que o primeiro tempo a aparecer está ainda antes da dominância do princípio de prazer/desprazer: sequências temporais compreendidas pelo ritmo, tonalidade, modalidade, repetições, etc., porque ele confere à pulsão (tal como Amaral Dias, a

89 função de ligação ao objecto). Além disso, ele diferencia entre excitação de origem pulsional que é um impulso constante interno, da excitação de origem externa (a sensação) a que nós podemos atribuir as qualidades de expansão e difusão, mas também de paragem. Para Green, as formas rítmicas, as pulsações, as continuidades pontuadas, etc, oferecem-nos um modelo para conceber quer a descontinuidade, quer a continuidade. E só após perceber a descontinuidade-continuidade é que se está apto à ligação primária, intrapsíquica e narcísica que implica a subordinação ao princípio do prazer que, sendo ele auto-erótico, implica a relação a um objecto. Para Priel (1997) o desenvolvimento de um sentido de tempo construído intersubjectivamente começa por uma fase também ela sem tempo, um ciclo de tempo de conjunção (composto mãe-bebé) em que os ritmos, o somatopsíquico são mutuamente acomodados. Este momento sem orientação temporal, sem intencionalidade ou movimento é proporcionada pela “mãe suficientemente boa” que faz coincidir as necessidades e a sua satisfação – o timming certo. Estas experiências de temporais pertencem ao processo de integração do Ego na infância e emergem do ambiente básico de sustentação, suporte, e apresentação constante do objecto. Os aspectos temporais tornam-se mais evidentes na relação mãe-bebé com as suas rotinas diárias no cuidado e atenção às mudanças muito rápidas do seu bebé. O sentimento de garantia materna e de continuidade (e dizemos nós de contiguidade) será aquilo que permite estar só e, após esta conquista, é gerado um espaço potencial e ainda a tripartição temporal.

A ideia mais comum para todos, é que o primeiro tempo a ser experienciado (nunca consciencializado) é derivado do corpo a funcionar por si mesmo. Diferente é a consideração de que este corpo pode ser tomado como atemporal e aespacial, ou em continuidade no tempo e contiguidade no espaço. É que quer a frustração, quer a satisfação são por vezes teorizadas como experiências promotoras de um lugar sem tempo nem espaço. Iremos neste trabalho considerar que a experiência de frustração como uma perda da contiguidade e continuidade, sentida na relação que entretanto ganhou intencionalidade, em sintonia com algumas das teorias que se apresentam a seguir, principalmente Harticollis (1974). A vivência aespacial e atemporal, será por consequência associada à frustração, após o bem estar da continuidade e contiguidade ser estabelecido com o objecto. Desta forma poderemos posteriormente

90 conceber uma organização da experiência unidimensional, o que não significa que seja a única visão possível deste problema, que precisa de mais investigação.

3.1.2. A PRIMEIRA APREENSÃO DE ESPAÇO E TEMPO: CONTORNAR