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3.4 ELISÃO TRIBUTÁRIA E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

3.4.1 Da eficácia positiva da capacidade contributiva

274 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 344.

275 BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2016. p. 92.

276 MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e norma antielisiva: completabilidade e sistema tributário. São Paulo: Noeses, 2014. p. 86-87.

277 MALERBI, Diva Prestes Marcondes. Elisão Tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p.

42-44.

Marco Aurélio Greco trouxe novo panorama acerca do princípio da capacidade contributiva na sua proposta teórica sobre os limites à prática da elisão tributária, em sua importante obra sobre o tema do planejamento tributário. Para o jurista, na primeira fase do debate sobre a elisão, havia o entendimento a respeito do predomínio da liberdade do contribuinte para agir antes da ocorrência do fato jurídico tributário e através de atos lícitos, salvo se realizasse simulação, hipótese que configuraria fuga ilícita ao dever tributário. Na segunda fase do debate, ainda há a concepção acerca da liberdade de agir dos contribuintes antes da verificação do fato jurídico tributário e por meio de atos lícitos, todavia, reconhece-se que o planejamento tributário pode ser contaminado não apenas com a prática de simulação, mas também com outras patologias, como o abuso do direito e a fraude à lei. Na terceira fase do debate, o autor entende que por mais que os atos elisivos do contribuinte sejam lícitos e não possuam qualquer patologia, não terá a liberdade para agir da maneira que bem deseja, pois sua conduta deverá ser examinada a partir do enfoque da capacidade contributiva e sua suposta eficácia positiva.278

Essa constatação, segundo Marco Aurélio Greco, nasce da discussão a respeito da eficácia jurídica do princípio da capacidade contributiva e da identificação dos seus destinatários. Para o autor, a capacidade contributiva, temperada com o princípio da solidariedade social, elimina o predomínio da liberdade do contribuinte. O valor liberdade deve ser conjugado e interpretado em harmonia com o valor solidariedade no debate a respeito dos planejamentos tributários.279 Com a mudança de perfil do Estado, também no âmbito da tributação, as normas constitucionais deixam de ser apenas limitações à atividade de imposição do tributo pelo Estado e de proteção do patrimônio dos indivíduos, para então ser vistas como instrumentos de viabilização de custeio do próprio Estado. Assim, a capacidade contributiva passa a ser princípio geral do sistema e desdobramento no campo tributário da solidariedade social, como contraponto à liberdade pura e individual, para o objetivo fundamental de construir uma sociedade justa. Esse cenário, então, teria acarretado implicações substanciais na eficácia jurídica e na dimensão de peso do princípio.280

Segundo Marco Aurélio Greco, a capacidade contributiva é princípio informador do sistema jurídico tributário e diretriz positiva, tendo aplicação antes

278 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 325.

279 Ibidem, p. 325-326.

280 Ibidem, p. 328,333.

mesmo que o princípio da igualdade tributária, que, por sua vez, apresenta-se apenas como uma limitação negativa ao exercício do poder de tributar. O sistema tributário ordena-se com base na capacidade contributiva, devendo na sua implementação serem criados impostos em respeito à igualdade. Nessa nova conformação, primeiro deve-se perquirir a capacidade contributiva para que a tributação se justifique, e, então, se buscar a concretização da igualdade tributária.281

A capacidade contributiva possui função estruturante do sistema, dentro do qual a legalidade apenas surge como condicionante ou limitador da ação da Administração Tributária. Em outras palavras, Marco Aurélio Greco compreende que a legalidade não é a razão fundamental da tributação, em que pese ser indispensável à sua realização e esteja também assegurada na Constituição Federal.282 Quanto ao destinatário do princípio da capacidade contributiva, inicialmente o autor reconhece que é dirigido ao legislador, de modo que a lei ao instituir o tributo deverá atender à capacidade contributiva. Ademais, afirma que o art. 145,§1º da Constituição Federal, ao dispor que os “impostos” serão graduados segundo a capacidade econômica e não a

“lei” que será graduada de acordo com ela, compreende que o dispositivo está prevendo uma qualidade que deve revestir o “imposto” (instituto) e não uma competência para a lei veicular uma regra tributária específica.283

Nessa linha, para além da capacidade contributiva ter uma eficácia negativa, no sentido de que a lei instituidora do tributo que não atender o princípio estará violando a Constituição Federal, o autor reconhece também que o princípio dirige-se ao aplicador da lei tributária, funcionando como um critério para a interpretação da lei, de modo a assegurar sua maior eficácia possível. Assim, teria a capacidade contributiva eficácia positiva na aplicação da lei, de modo a iluminar o seu alcance. Isto é, deve ser alcançada sempre quando for detectada, funcionando como um vetor de intepretação da lei. Não se pode interpretar a lei apenas com base no desenho formal (legalidade formal), mas examinar a realidade concreta a partir da capacidade contributiva.284 Explica o autor:

281 O autor, contudo, reconhece que essa estruturação não afasta a igualdade genérica, consagrada no art.

5º da CF/1988, que espraia seus efeitos por toda a Constituição e o ordenamento jurídico. Ibidem, p. 336.

282 O autor não ignora a importância da legalidade para a tributação e que esta deve ter a máxima eficácia possível. Contudo, busca realçar que a legalidade não é razão fundamental da tributação, mas um elemento que é indispensável à tributação. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4. ed.

São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 340-343.

283 Ibidem, p. 344-345.

284 Ibidem, p. 345.

Quando digo que a capacidade contributiva vai iluminar a interpretação significa que ao interpretar determinado artigo da lei, não devo fazê-lo isoladamente, nem apenas como elemento que está conectado dentro de um conjunto formal. É preciso verificar qual manifestação de capacidade contributiva ele quer alcançar. A pergunta a fazer é se a previsão legal está qualificando o nome do contrato ou o perfil do contrato. Assim, da perspectiva da capacidade contributiva, quando a lei estiver se referindo a compra e venda pode ser que ela não esteja se referindo ao nome “compra e venda”, mas ao tipo de manifestação de capacidade contributiva que se dá através da compra e venda.

Note-se como muda a intepretação. Uma coisa é interpretar o texto no sentido de que foi alcançado o contrato de compra e venda, outra coisa é ser alcançada a manifestação de capacidade contributiva que advém do contrato de compra e venda.285

Assim, o princípio constitucional da capacidade contributiva teria eficácia positiva para o fim de possibilitar a aplicação de uma norma geral inclusiva para fins de tributação, em caso de distorções e manipulações abusivas pelo contribuinte que acarretam a neutralização do atingimento da capacidade contributiva.286

Por partes. Estamos com Charles William Mcnaughton quando afirma que a graduação referida no dispositivo constitucional não é aplicável ao imposto (instituto) em si, mas à lei que o instituiu. Como dispõe o art. 150, I, da Constituição Federal, não se pode instituir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça, assim como não se pode conceber graduação progressiva da carga tributária sem previsão legal. O próprio §1º do art. 145 da Constituição Federal, na segunda parte do seu comando, dispõe que a capacidade contributiva deve ser concretizada nos termos da lei e em respeito às garantias individuais.287

Ademais, importante a lembrança, como trabalhado no primeiro capítulo, de que não se pode alterar as definições, o sentido e o alcance dos conceitos, institutos e formas de Direito Privado utilizados pela Constituição Federal para definição das competências impositivas. A proposta de Marco Aurélio Greco de que a competência tributária alcança a capacidade contributiva típica revelada na lei ao invés do negócio jurídico tipificado, choca com a inteligência do art. 110 do CTN. Tendo por “capacidade contributiva que deve ser detectada” a intensidade de riqueza revelada na concretização de um negócio típico, esta se identifica por mensuração e não por qualificação. A Constituição prevê precisamente, de modo qualitativo, quais são os signos presuntivos de riqueza aptos a desencadear a atividade impositiva do Estado. Buscar uma

285 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 346.

286 Ibidem, p. 352-353.

287 MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e norma antielisiva: completabilidade e sistema tributário. São Paulo: Noeses, 2014. p. 88-89.

“capacidade contributiva que se releva no negócio jurídico” é uma noção obscura e psicológica estranha à manifestação da riqueza como critério discriminatório em favor da isonomia.288

Alberto Xavier aponta essa incongruência na tese da eficácia positiva da capacidade contributiva. Se a premissa é a de que há uma eficácia positiva da capacidade contributiva que alcança todas e quaisquer manifestações idênticas de capacidade contributiva, previstas ou não em lei, os fins ou meios utilizados pelos particulares não podem importar:

Se a eficácia positiva da capacidade contributiva só se manifesta se o particular praticou um ato com o fim exclusivo de não pagar ou pagar menos imposto, a capacidade contributiva deixa de desempenhar uma função objetiva e igualitária, exclusivamente baseada na manifestação de riqueza, para funcionar como um fator inigualitário e discriminatório em função de um critério psicológico, de todo em estranho à premissa em que tese se assenta.289

O fundamento deixa de ser a capacidade contributiva e passa a ser o motivo, tributando apenas aqueles que desejaram elidir a tributação, transformando o tributo em sanção pela prática de ato ilícito com fundamento nos motivos individuais do particular.

Ademais, explica o mestre português que não há qualquer restrição extrínseca ou intrínseca à garantia da legalidade e da tipicidade. A doutrina que defende, por exemplo, a possibilidade de aplicação da teoria do abuso do direito para fins de requalificação dos esquemas elisivos dos contribuintes, ancora-se na ideia que há limites imanentes de natureza constitucional para o direito ou liberdade de auto-organização e contratação dos particulares, que não pode ser absoluto. Busca-se na capacidade contributiva e na igualdade essa limitação, como defendido por Marco Aurélio Greco. Todavia, Xavier afirma que esses princípios são comandos endereçados ao legislador e funcionam como garantias ao cidadão para sua proteção, e não como limites à sua liberdade.290

Descabe a possibilidade da capacidade contributiva, em pretensa eficácia positiva, poder fazer cessar a aplicação da tipicidade, expandindo-se para além do tipo, e alcançando qualquer manifestação de capacidade contributiva até onde for detectada, em caso de um exercício abusivo da liberdade de contratar. O princípio da capacidade

288 MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e norma antielisiva: completabilidade e sistema tributário. São Paulo: Noeses, 2014. p. 90-94.

289 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2002. p. 134.

290 Ibidem, p. 121-122.

contributiva é expressão da igualdade na criação da lei e não da igualdade perante a lei.

É um comando constitucional que se dirige ao legislador para que se confira tratamento igualitário às idênticas manifestações de capacidade contributiva, por meio de lei. A igualdade é uma garantia do cidadão e não um direito do Estado, pelo que não pode ser invocada pra exigir tributação não prevista em lei.291

Segundo Xavier, a igualdade e a capacidade contributiva encerram uma função negativa ou proibitiva e vedam ao Legislativo uma tributação alheia à capacidade contributiva, assim como uma tributação discriminatória e arbitrária entre contribuintes em situação equivalente. Estes princípios não teriam função positiva de ordenar o legislador à tributação de toda e qualquer manifestação de capacidade contributiva. Não possuem ambos os princípios “vocação totalizante” da globalidade do universo de manifestações econômicas, pois existem limitações constitucionais a serem observadas que são a legalidade, a tipicidade e a segurança jurídica. Há um catálogo de fatos econômicos tributáveis, haja vista a tipicidade discriminar as situações tipificadas e não tipificadas, correspondendo a uma enumeração taxativa.292

Caso a capacidade contributiva tivesse eficácia positiva, isto é, fosse fundamento autônomo, direto e imediato de tributação, independente da lei, para além da lei ou por sobre a lei, a tipicidade estaria rompida pela consequente formulação da norma em termos de implicação extensiva: o fato típico seria suficiente para fundar a tributação, mas deixar de ser necessário, pois que fatos extratípicos reveladores de equivalente capacidade contributiva poderiam ensejar a constituição da obrigação tributária.293

Os princípios da igualdade e da capacidade contributiva são mediatizados pela legalidade. Não podem os órgãos de aplicação do Direito do Poder Executivo e do Poder Judiciário substituir-se ao legislador, para, sob o pretexto de concretizar esses princípios, possibilitarem o emprego da analogia para fins de tributação. O Estado não possui direitos subjetivos, mas competências atribuídas por lei, conforme determina a Constituição Federal. O exercício de um direito pelos particulares é lícito ou ilícito, se ofende ou não os limites da lei. Mas não pode ser visualizado como ilícito por colisão intencional e danosa com um pretenso direito subjetivo do Estado para ir além do que a lei define.294

291 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2002. p. 127.

292 Ibidem, p. 129.

293 Ibidem, p. 131.

294 Ibidem, p. 132-133.

Quando o Sistema Constitucional Tributário, que é fortemente analítico e rígido, delimita competências tributárias, busca impedir conflitos mediante a estipulação de materialidades diversas aos entes políticos. Todo o esforço do legislador constitucional se perde quando o aplicador não observa os conceitos inseridos no texto constitucional e se guia pela verificação da anormalidade, atipicidade e intenção do contribuinte. 295 As materialidades dos impostos devem exprimir uma parcela de capacidade contributiva que deve orientar a interpretação do aplicador. Nesse ponto, concordamos com Marco Aurélio Greco. Contudo, a capacidade contributiva, apesar de condição necessária, não é condição suficiente unicamente para desencadear a tributação, devendo ser respeitada a estrita legalidade e o princípio da especificação conceitual.

Em mesmo sentido, Paulo Ayres Barreto defende que a capacidade contributiva não autoriza o aplicador a alcançar mais do que a lei prevê. A capacidade contributiva não tem mero efeito programático, mas, por outro lado, não significa que possui a eficácia positiva pretendida por Marco Aurélio Greco no sentido de que é possível ao aplicador ir além do limite legal para, em prol da concretização da capacidade contributiva, atingir o que a lei não estabeleceu expressamente. Não é princípio que se sobrepõe de forma isolada, e deve ser aplicado e interpretado em conjunto com os demais princípios que limitam e regem a tributação.296

Não se configura também a capacidade contributiva limite à liberdade de atuação do cidadão que esteja amparado na lei. O legislador, ao efetuar as discriminações na lei para atendimento da capacidade contributiva, limita a atuação do Poder Executivo como aplicador da lei. A eficácia do princípio se dá mediante a atuação do legislador, que pode ser contestada judicialmente. Para que se reconheça maior eficácia possível do princípio aludido, não se pode ir além das fronteiras que a lei estabeleceu. Desde o seu processo de elaboração, a lei já está iluminada por esse princípio, podendo abranger, a depender da atuação do legislador em conformidade com os ditames constitucionais, um campo maior ou menor de situações econômicas tributáveis. Por isso, sob o pretexto de concretizar a capacidade contributiva, não se pode desconsiderar normas de mesmo patamar hierárquico que também impõem limites

295 MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e norma antielisiva: completabilidade e sistema tributário. São Paulo: Noeses, 2014. p. 94-95.

296 BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2016. p. 95-96.

contundentes à tributação. Ao Poder Executivo resta a aplicação dos fatores legalmente estabelecidos.297

Cesar A. Guimarães Pereira admite o vínculo existente entre o recolhimento de tributos e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam, de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Essa relação permite conciliar o sentido garantístico da legalidade e da capacidade contributiva com suas feições solidarísticas.

Nesse sentido, legalidade e capacidade contributiva deixam de ser apenas normas de bloqueio e passam a ser instrumentos vinculados às normas constitucionais de programa. Contudo, o autor assevera que é preciso também reconhecer o peso que assumem os princípios da legalidade e da segurança jurídica em nosso ordenamento pátrio.298

São importantes as ideias lançadas por Marco Aurélio Greco de que a legalidade e a capacidade contributiva não podem ser compreendidas apenas como normas de bloqueio, nos moldes dos valores protegidos pelo Estado de Direito Liberal.

Mas isso não leva às mesmas conclusões do autor no que diz respeito à possibilidade de desconsideração dos esquemas elisivos com base em uma pretensa eficácia positiva da capacidade contributiva. Ainda que a ordem constitucional deva ser reinterpretada à luz dos arts 1º e 3º da Constituição da República, não se pode superar o princípio da legalidade e tributária.299 É importante o sopesamento dos princípios da legalidade e da capacidade contributiva, sem que dessa conjugação resulte em violação a qualquer um desses princípios. O reconhecimento de que não houve concretização da capacidade contributiva pela norma legal ou em razão da omissão legislativa não pode autorizar a violação do princípio da legalidade.300