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Conforme Nagibe de Melo Jorge Neto, os problemas epistêmicos são independentes das normas jurídicas em vigor e a controvérsia fática se exauriria com o trânsito em julgado da decisão, enquanto a controvérsia jurídica perduraria para além do processo transitado em julgado, alcançando outros processos onde as mesmas normas sejam aplicadas, bem como na formação, na crítica e na modificação de precedentes.139

O autor salienta140 o que considera uma importante diferença entre as questões fáticas e as questões jurídicas, afirmando que as questões fáticas em geral não extravasam do âmbito processual, tornando-se definitivas com o trânsito em julgado. Com relação às questões “de direito”, estas são submetidas à argumentação interna, que ocorre no âmbito do processo, e à argumentação externa, que ocorre com toda a comunidade jurídica, fazendo com que as sucessivas decisões judiciais sobre a mesma matéria de algum modo definam ou modifiquem o direito em vigor.

Segundo Louis-Caporal, importa identificar as funções e a natureza da distinção entre fato e direito no processo civil. No que diz respeito às funções, a autora identifica duas principais, que convergem para a mesma finalidade: determinar a área de jurisdição do juiz, distribuindo os papéis sobre a matéria em litígio e delimitar o escopo do controle de cassação.141 Vê-se, que, normalmente, a divisão entre questões de fato e questões de direito é estudada sob o ângulo da competência dos juízes, se no âmbito do jurisdição ordinária ou extraordinária, superior.

A distinção permite, nesse contexto, determinar o papel do juiz em relação ao das partes, atribuindo o controle da questão contenciosa às partes quando factuais e ao juiz quando “legais”. Por outro lado, o julgamento das instâncias ordinárias é soberano quando a Corte Suprema142 não exerce sua função. O limite parece ser mais uma vez colocado pela distinção

139 NETO, Nagibe de Mello Jorge. Uma teoria da decisão judicial: fundamentação, legitimidade e justiça. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 44.

140 NETO, Nagibe de Mello Jorge. Uma teoria da decisão judicial: fundamentação, legitimidade e justiça. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 46.

141 LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 22.

142 No presente trabalho, optou-se por não utilizar a expressão “corte superior” para se referir às cortes de vértice, de acordo com a crítica realizada pelo processualista Daniel Mitidiero no sentido de que “cortes superiores” estariam ligadas mais a uma preocupação de efetuar o controle do acerto das decisões das cortes inferiores do que à preocupação inerente às “cortes supremas”, de estabelecer e atualizar precedentes. Essa é também a posição de Simone Trento. Cf MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013 e TRENTO, Simone. A medida da cognoscibilidade das questões concernentes à prova dos fatos em recurso especial e extraordinário: a assunção pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal do status de cortes de precedentes. Tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Paraná. 2016.

entre questão de fato e questão de direito: diz-se, convencionalmente, que o “controle de cassação” tem como objeto questões de direito e não questões de fato, distinguindo a Corte Suprema como uma “corte do direito”, que não pode lidar com fatos sob pena de perder, além de sua função, seu prestígio.

Além disso, conforme aponta Trento, seria inviável que as cortes supremas de um sistema judiciário em funcionamento, no contexto de um país com uma população consideravelmente alta, apreciassem cada questão relacionada aos fatos em cada processo, haja vista que a quantidade de trabalho a ser realizado tornaria quase impossível que a corte fosse capaz de conferir unidade à interpretação do ordenamento jurídico nas matérias de sua competência143, além das questões relacionadas à duração do processo e aos recursos financeiros necessários para tal desiderato.

As funções da distinção aparentam ser coerentes, podendo se cogitar que podem se fundir em uma só: delimitar o papel dos juízes de acordo com a instância, se tribunais “de mérito” ou se “corte suprema”. Porém, conforme Louis-Caporal, essa ideia simples acaba por revelar toda a inconsistência, pois, se em um primeiro momento entrega-se ao “juízo de mérito” (que no Brasil pode ser entendido como o juiz de primeiro grau e o Tribunal de segunda instância) o controle do direito, excluindo o fato (que caberia às partes), em um segundo momento esse poder é retirado em favor da corte suprema (no caso do Brasil, o Superior Tribunal de Justiça), deixando às instâncias ordinárias apenas o monopólio do fato, o qual, de acordo com a mesma distinção, pertenceria apenas às partes.144

Verifica-se que a função da distinção entre fato e direito é dupla,

elle ne limite pas la compétence du juge judiciaire en général mais d’une part elle restreint la liberté d’action du juge du fond au droit et d’autre part elle limite le juge de cassation au contrôle du droit. Nous démontrerons que ce double rôle ne peut être tenu que par deux distinctions différentes: la frontière qui confère l’apanage du droit au juge du fond ne saurait se confondre avec celle qui érige le juge de cassation en juge du droit sous peine de voir ressurgir l’incohérence préalablement dénoncée.145

143 TRENTO, Simone. A medida da cognoscibilidade das questões concernentes à prova dos fatos em recurso especial e extraordinário: a assunção pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal do status de cortes de precedentes. Tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Paraná. 2016, p. 13.

144 LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 24.

145 Em tradução livre: “ela (a distinção) não limita a competência do juiz em geral, mas por um lado restringe a liberdade de ação do juiz ‘de baixo’ ao direito e, por outro lado, limita o juiz da cassação ao controle do direito. Mostraremos que esse duplo papel só pode ser mantido por duas distinções diferentes: a fronteira que confere a prerrogativa do direito ao juiz ‘de baixo’ não pode ser confundida com a que estabelece o juiz de cassação como juiz ‘do direito’ sob pena de ver reaparecer a inconsistência relatada anteriormente.” LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 24

Assim, não se deve, segundo a autora, falar “da” distinção entre fato e direito, mas “das” distinções, para que não enseje a impressão de que a distinção é única e óbvia, quando, em realidade, é plural e complexa, aparecendo em pelo menos dois níveis. Deve-se analisar como a distinção cumpre sua função, sendo necessário inquirir sobre sua natureza.

Questionando acerca da existência de um critério que possibilite avaliar a natureza jurídica ou factual de determinada questão e identifica-la de acordo com a sua pertença ao fato à lei, a autora identifica a existência de duas “summa divisio”: tudo o que é direito compete ao juiz “de baixo”, e tudo o que é fato compete às partes; tudo o que é direito compete ao controle da corte suprema enquanto o que é fato compete ao poder soberano do julgador das instâncias ordinárias. Separa-se o fato da lei para atribuir um destino diferente a todos durante o julgamento.

O Código de Processo Civil parece enquadrar-se na lógica descrita, qualificando muitos elementos como sendo de fato ou de direito, meios mistos de fato e de direito, de direito ou puramente de direito, razões de fato ou de direito, questões de fato ou de direito, etc. Na própria atribuição dos papéis inerentes aos atores processuais, implica-se muitos princípios, como o princípio dispositivo em matéria de fato e o “iura novit curia” em matéria de direito.

Porém, conforme Louis-Caporal, a separação entre fato e direito não constitui um princípio146, mas é relacionada a alguns princípios, tal como o princípio dispositivo, estabelecendo máximas tais como “da mihi factum, dabo tibi jus”, que é convencionalmente traduzido como “dá-me o fato que te darei o direito” e o “iura novit curia”. Em sede de corte suprema, a distinção não estabelece princípios, mas regras concretas e disposições diretamente aplicáveis, como aquelas relacionadas à admissibilidade do Recurso Especial.

Os fundamentos estáveis da distinção entre fato e direito são descobertos especialmente na história e na teoria do direito, dando grande força à distinção, conferindo-lhe os atributos da historicidade, da universalidade, da evidência. Nesse sentido, é importante encontrar suas origens para, no dizer de Louis-Caporal, sabendo o que era, para descobrir melhor o que é.147

Tradicionalmente, na esteira de Pontes de Miranda148, estabelece-se, inicialmente,

a dicotomia entre fatos e fatos jurídicos, ou seja, entre o mundo dos fatos, que seria a parte do

146 LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 28.

147 “il convient de passer outre cette première impression afin d’en retrouver les origines et de connaître ce qu’elle a été, cela pour mieux découvrir ce qu’elle est.” LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 41.

mundo composta dos fatos não jurídicos e o mundo jurídico, que seria a parte do mundo formada apenas pelos fatos qualificados como jurídicos. Nesse sentido, conforme Mello149, o mundo jurídico constituiria a parte do mundo formada, exclusivamente, por atos jurídicos e onde se irradia a eficácia jurídica própria atribuída a cada um deles. Isso não significaria que o mundo jurídico seja separado de maneira estanque (ou, conforme será visto adiante, não é separado de forma alguma) do mundo em geral. Conforme Mello, “os fatos jurídicos coexistem e convivem com os fatos não juridicizados”.150 A questão central consistiria justamente em

reconhecer e identificar no “mundo geral dos fatos” o fato jurídico e distingui-lo dos fatos não jurídicos a fim de possibilitar a “boa aplicação do Direito.”151

Chiovenda já afirmava, nos idos da década de 1950, que

Llámanse hechos jurídicos los hechos de los cuales deriva la existencia, la modificación o la extinción de uma voluntad concreta de ley; y como tales se disntinguen de los simples hechos o motivos, los cuales sólo tienem importância para el Derecho um cuanto pueden servir para probar la existencia de um hecho jurídico.152

Conforme Carnelutti,

Toda norma jurídica representa un mandato hipotético: supone determinada situación (precisamente determinado conflicto de intereses) y manda respecto de ella. Para individualizarla, hace falta comprobar una situación idêntica a la situación supuesta y mandar de idêntico modo respecto a ella; el mandato hipotético se convierte así em mandato real. La comprobación de la identidade (o de la diferencia) de la situación supuesta por la norma y la situación supuesta en el pleito (‘causa’) es el fin del proceso y el objeto del juicio.153

Dessa forma, o juiz, ao julgar, deve suscitar três indagações: a) se os fatos se passaram da maneira como foi afirmado pelo autor da causa; b) quais as normas jurídicas disciplinam os fatos em tese ocorridos e c) quais as consequências determinadas por tais normas jurídicas, tendo a primeira indagação como objeto uma questão de fato e as demais indagações envolvendo questões de direito.

É devido a essa concepção a noção de que a atividade do juiz pode ser comparada a um silogismo, havendo a subsunção da premissa menor (os fatos) à premissa maior (a norma).154 Este é, por exemplo, o entendimento de Buzaid, que, ao diferenciar violação da lei

149 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 20.

150 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 21

151 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 22

152 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituciones de Derecho Procesal Civil, Volume I, Revista de Derecho Privado de Madrid, 1954, p. 6.

153 CARNELUTTI, Francesco. La Prueba Civil. 2ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1982. p. 4.

154 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. V. III. 2ª ed. acompanhada de notas pelo Prof. Enrico Tullio Liebman. São Paulo: Saraiva, 1965. pp. 301-304.

de falsa aplicação da lei, considera a sentença como um silogismo, consistindo a violação como erro da premissa maior e a falsa aplicação como um erro na conclusão.155

Pode-se afirmar que há uma espécie de fracionamento do fenômeno jurídico entre fato e direito, para fins de observação e estudo e para se admitir ou não o julgamento do recurso especial pelo STJ.156

Segundo trabalho de Henke, publicado originalmente em 1966, a indagação acerca do que constitui uma questão de direito reformável e uma questão de fato não reformável é um dos poucos problemas jurídicos que não foi atingido nem mesmo pelo transcurso de todo um século.157158

A distinção entre fato e direito está constantemente presente no raciocínio jurídico e sua importância, segundo Allen e Pardo, é superada apenas por seu mistério.159 Em considerações teóricas, as reflexões acerca da origem da lei e de suas funções levam o jurista a questionar a adaptação do direito aos fatos, o que constituiria um mito segundo alguns, e um imperativo, segundo opinião mais amplamente difundida.160 Acima de tudo, é de uma maneira mais técnica que o jurista interessa-se pela distinção entre fato e direito, opondo as situações “de fato”, às situações “legais” a fim de diferenciar as consequências, para determinar o modo de provar, para distinguir o erro de fato do erro da lei.

A referida categorização dicotômica justificar-se-ia pela sua essencialidade em relação à caracterização da juridicidade, perpassando metodologias, enfoques e abordagens no estudo do fenômeno jurídico.161 Em uma perspectiva filosófica, a teoria da tricomponencialidade da fenomenologia jurídica (fato, valor, norma) denotaria a existência de uma desequiparação ontológica entre factualidade e normatividade. Em uma perspectiva dogmática, a dicotomia tem usos nas mais diversas áreas do Direito, servindo como base para

155 BUZAID, Alfredo. Estudos de Direito. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1972. pp. 183-184.

156 YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Distinção entre Questão de fato e questão de direito: reexame e valoração da prova no recurso especial. Em Revista Dialética de Direito Processual, volume 43, São Paulo: Dialética, 2006.

157 HENKE, Horst-Eberhard. La cuestion de Hecho: el concepto indeterminado em el derecho civil y su casacionabilidad. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-América, 1979, p. 3. “La cuestión de los limites de la casación, o se ala que versa sobre cuándo una conclusión es uma ‘cuestion de derecho’ casacionable y cuándo una ‘cuestion de hecho’ no casacionable, es uno de los pocos problemas jurídicos em los cuales no ha podido hacer mella ni siquiera el transcurso de toda uma centúria”.

158 Adiante, serão devidamente expostas as causas que contribuíram para a erosão do critério de distinção entre fato e direito, porém, a observação de Henke é importante para assinalar o quão tradicional é a distinção e quanto a mesma permaneceu incólume ao longo do tempo.

159 ALLEN, Ronald J.; PARDO, Michael S. The Myth of the Law-Fact Distinction. Northwestern University Law Review, v. 97, n. 4, p. 1769-1807, 2003, p. 1769.

160 LOUIS-CAPORAL, Delphine. La distinction du fait et du droit en droit judiciaire privé. Tese de doutorado apresentada à Université Montpellier 1, 2014, p. 16.

161 PINTAÚDE, Gabriel. Controle e verificação do juízo de fato no julgamento singular, no apelacional e no revisional. Revista de Processo: RePro, v. 32, n. 149, jul. 2007, p. 71-72.

distinções doutrinárias como matéria de direito/matéria de fato, erro de fato/erro de direito, razões de fato/razões de direito, além de também ser útil para fins prático-procedimentais, como no caso da “matéria exclusivamente de direito” prevista na legislação processual, a alterar/dispensar a prática de atos processuais.162

Convencionalmente, questões de direito são aquelas que dizem respeito às regras e critérios aplicáveis, enquanto as questões de fato seriam aquelas que dizem respeito a transações ou eventos, ou, em outras palavras, quem fez o quê, onde, quando, como, por que, com qual motivo ou intenção.163

Verifica-se, dessa forma, que a distinção frequentemente estabelecida entre as questões de fato e as questões de direito pressupõe que haja duas espécies ontologicamente diferentes de questões: por um lado, as questões de fato, respondendo sobre “o que aconteceu” e, por outro, as questões de direito, respondendo a indagações tais como “quais são as regras aplicáveis à situação X” ou “a regra Y se aplica à situação X”.

Para Allen e Pardo164, o fato de que a determinação da lei envolve criações linguísticas feitas pelo homem, e não tipos naturais, não fornece uma distinção ontológica útil entre questões de direito e questões de fato, porque muitas descobertas de fatos envolvem exatamente a mesma coisa. Isso descartaria o argumento de que “lei” é de um tipo ontológico diferente de “fato”. O fato de que a lei possa ocasionalmente ser indeterminada não implica que existem outras leis no mundo e que o conhecimento delas seja factual - assim como alguns "fatos" podem, eventualmente, ser indeterminados, enquanto há outros fatos existentes e cognoscíveis no mundo. Os autores entendem, portanto, que, em todos os aspectos relevantes, "fato" e "lei" são equivalentes ontológicos e não tipos distintos.

Os autores165 propõem uma comparação para concluírem que os dois tipos de questões são fáticas: questões que tradicionalmente são consideradas como sendo “de fato” envolvem reconstruir algum segmento da realidade baseando-se em evidências; e questões tradicionalmente consideradas “de direito” envolvem realizar inferências a partir de “evidências” e tentar reconstruir algum segmento da realidade. Segundo Trento166, a diferença 162 PINTAÚDE, Gabriel. Controle e verificação do juízo de fato no julgamento singular, no apelacional e no revisional. Revista de Processo: RePro, v. 32, n. 149, jul. 2007, p. 73-74.

163 ALLEN, Ronald J.; PARDO, Michael S. The Myth of the Law-Fact Distinction. Northwestern University Law Review, v. 97, n. 4, p. 1769-1807, 2003, p. 1778.

164 ALLEN, Ronald J.; PARDO, Michael S. The Myth of the Law-Fact Distinction. Northwestern University Law Review, v. 97, n. 4, p. 1769-1807, 2003, p. 1796.

165 ALLEN, Ronald J.; PARDO, Michael S. The Myth of the Law-Fact Distinction. Northwestern University Law Review, v. 97, n. 4, p. 1769-1807, 2003, p. 1.792-1.793.

166 TRENTO, Simone. A medida da cognoscibilidade das questões concernentes à prova dos fatos em recurso especial e extraordinário: a assunção pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal do status de cortes de precedentes. Tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Paraná. 2016, p. 123.

é que as “evidências” usadas nas inferências feitas nas questões “de direito” são jurídicas, tais como a Constituição, as leis, a jurisprudência e outras fontes normativas, enquanto o segmento da realidade que se busca reconstruir na questão de direito diz respeito ao direito.

Por seu turno, Bove167 observa que, para a ocorrência de uma efetiva distinção lógica entre questão “de fato” e questão “de direito”, seria necessário existir uma dupla racionalização pelo juiz: uma percepção pré-jurídica da realidade e uma subsequente valoração jurídica. Porém, conforme aduz o autor, nem sempre há um duplo ato mental ao se afirmar a verificação de uma certa fattispecie legal e argumenta que mesmo Henke e Engisch, que sustentariam a distinção lógica entre questões de fato e de direito, vislumbraram hipóteses em que o fato é percebido e racionalizado diretamente através do conceito de direito, diante da ausência de conceitos pré-jurídicos suficientemente determinados para descrever o fato sem a comparação com a fattispecie legal.

Trento168, ao analisar de maneira crítica os argumentos de Bove, afirma que que se não há distinção lógica entre a questão de fato e a questão de direito nem quando faltam conceitos pré-jurídicos nem quando o conceito pré-jurídico é sinônimo do jurídico, isso significa que não resta situação alguma em que uma distinção lógica entre questão de fato e questão de direito seja possível. Conclui, assim, que não haveria distinção lógica entre questão de fato e questão de direito quando for o caso de se decidir uma questão no contexto jurídico, pois a decisão necessariamente dependerá de critérios jurídicos.

Diz-se, ainda, que as questões de direito envolveriam constituição, desconstituição, modificação ou interpretação de normas jurídicas, ao passo que as questões de fato tratariam do predicado fático no qual as decisões seriam baseadas.169