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Por que um modelo normativo para fundamentação do juízo de fato

Remetendo ao título da obra de Dworkin de levar os direitos a sério e ao título do artigo de Twinnings de levar os fatos a sério, neste tópico, propõe-se “levar o texto a sério”.

Partindo dos pressupostos de que textos não são meros enunciados linguísticos, de que texto é evento, não produzindo “realidades virtuais”, de que textos não são “conceitos metafísicos que não digam respeito a algo, firma-se que os textos são importantes para o direito, de que não há norma sem texto, mesmo que o texto não seja, no dizer de Streck, “plenipotenciário”, há de existir texto e, diante das ideias desenvolvidas nos capítulos antecedentes, defende-se que é preciso texto que oriente a fundamentação do juízo de fato no direito brasileiro.

Muito se fala acerca da vagueza e da indeterminação do Direito, sendo suscitados problemas referentes à deficiência na fundamentação da decisão judicial especialmente em duas hipóteses: lacunas e antinomias. Ou seja, a justificação da decisão judicial resta prejudicada ora pela ausência de normas jurídicas a regular o caso ora pelo excesso delas, o que Vilajosana297 e Ródenas298 chamam de subdeterminação e sobredeterminação do Direito.

Porém, o objeto do presente trabalho não trata desse tipo de problemática, ou melhor, apesar de tratar de um determinado tipo de lacuna, não se trata da deficiência da fundamentação por ausência de norma jurídica a regular o caso concreto em exame, mas da ausência de normas

296 COSTA, Eduardo José da Fonseca. Uma arqueologia das ciências dogmáticas do processo. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (org.). Reconstruindo a teoria geral do processo. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 57-58.

297 VILAJOSANA, Josef M. Identificación y justificación del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2007.

298 RÓDENAS, Ángeles. Los interstícios del derecho. Indeterminacion, validez y positivismo jurídico. Madrid, Marcial Pons, 2012.

jurídicas a regular a própria fundamentação da decisão judicial em si, tratando de uma espécie de meta-normatividade.

Não se trata de compreender, aqui, se o Direito é pleno (tese da plenitude do Direito)299 ou vago, no sentido da regulação dos comportamentos. Trata-se de compreender os parâmetros do que Kelsen chamaria da interpretação autêntica do Direito, das normas direcionadas aos agentes estatais

Sem dúvida, a discricionariedade judicial está atrelada às situações de lacunas e de antinomias, quando o juiz “criar”, inovar no Direito, criando norma não prevista ou quando o juiz invocar norma (existente) a aplicar em um determinado caso, quando, em tese, haveria razões para aplicação de outra(s) norma(s). Porém, a discricionariedade pode ser tratada também considerando a normatização do comportamento do julgador ao decidir um determinado caso (normas que devem balizar a decisão judicial a ser produzida), porém, essas normas, como todas as outras, podem deter algum grau de indeterminabilidade, constituindo um desafio à positivação de parâmetros de racionalidade.

A disposição geral do CPC/15 referente ao fato de que não se considerará fundamentada decisão que não aprecie fundamentado que, por si só, seria apto a infirmar a conclusão adotada, diz respeito mais diretamente à ausência de valoração daquela determinada prova (enunciado probatório). Porém, não abarca a atividade do juiz que desenvolvida desde o saneamento do processo, com a fixação dos pontos controvertidos, tampouco diz respeito à produção da prova. Sabe-se que a ausência de avaliação de algum ponto só poderá ser aferível, por óbvio, quando a decisão judicial for conhecida, mas o que mais se busca para um efetivo modelo de fundamentação do juízo de fato é que ele forneça critérios para o momento em que juiz efetivamente valora uma determinada prova, considera ou não considera determinados enunciados probatórios, a fim de deixar claro por qual razão aquela conclusão adotada, ainda que não tenha havido qualquer omissão a respeito de nenhuma questão suscitada.

Mesmo os adeptos da teoria da argumentação admitem que o “juízo de ponderação” implica uma considerável margem de discricionariedade, sendo inevitável indagar qual a distância entre “margem de discricionariedade” até a arbitrariedade interpretativa, ou, no dizer de Streck, do decisionismo:300

Com isso quero dizer que, se o modelo de direito sustentado por regras está superado, o discurso exegético-positivista, ainda dominante no plano da dogmática jurídica praticada cotidianamente, representa um retrocesso, porque, de um lado, continua a

299 A plenitude do Direito estaria fundada num princípio de ordem lógica de acordo com o qual todos os comportamentos que não estão proibidos por determinado sistema, estão por ele permitidos. (Ferreira, p. 81, 2018) 300 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 234

sustentar discursos objetivistas, identificando texto e sentido do texto (norma); e, de outro, assenta-se nas (diversas) teorias subjetivistas, a partir de uma axiologia que submete o texto à subjetividade assujeitadora do intérprete, transformando o processo interpretativo em uma subsunção dualística do fato à norma, como se fato e direito fossem coisas cindíveis e os textos (jurídicos) fossem meros enunciados linguísticos. Esse sincretismo é inaceitável.301

A abordagem defendida no presente trabalho é no sentido de que o modelo normativo pode garantir maior legitimidade democrática, uma acepção de legitimidade procedimental correlacionada à obediência ao devido processo legislativo e ao princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais, uma “legitimidade moral qualificada pelas noções de intersubjetividade, conversação não distorcida e institucionalidade”.302

Nesse sentido, entende-se que uma abordagem de cunho positivista é a mais adequada à defesa de um modelo legal para fundamentação da decisão judicial. Entende-se que a contribuição mais consentânea à finalidade do presente trabalho é aquela oriunda do positivismo normativo, entendido este como um positivismo que inicia com um argumento moral em defesa de sua própria concepção de juridicidade303.

Para o positivismo normativo, “inicia-se com uma descrição normativa da missão do direito” e depois “argumenta-se que esta missão não pode ser realizada a não ser que regras, comandos, normas, editos ou planos sejam reconhecidos como direito com base em critérios não-morais”.304

Conforme Waldron,

A pretensão dos positivistas normativos é de que os valores associados ao direito – a juridicidade e o estado de direito, em um sentido amplo – podem ser melhor alcançados se a operação ordinária de tal sistema não exigir que as pessoas realizem valorações morais para se saber o que o direito é.305

O positivismo normativo não aceita claramente uma dicotomia entre “teoria do direito” e “teoria da decisão jurídica”, entendendo que faz parte da teoria do direito explicar não só

301 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 66

302 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 22.

303 BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. O que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos -Eletrônica, Vol. 20 -N.1 – Jan-abr 2015, p. 323. 304 WALDRON, Jeremy. Planning for Legality (Review Essay). Michigan Law Review, vol. 109, 2011, p. 883, 894 apud BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. O que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos -Eletrônica, Vol. 20 -N.1 – Jan-abr 2015, p. 323.

305 WALDRON, Jeremy. Normative (or ethical) positivism. In: COLEMAN, Jules (Ed.) Hart’s Postscript: essays on the postscript to “The Concept of Law”. Oxfor: OUP, 2001, p. 421.

como a argumentação jurídica é realizada, mas também como ela deve se realizar, passando a influir no raciocínio jurídico e a constituir uma postura interpretativa diante do direito.306

Dentro do pensamento positivista, chama a atenção, para os fins do presente trabalho, as ideias de Frederick Schauer.

Para Schauer, a tarefa do positivista consiste na capacidade de diferenciar o direito de outras esferas normativas e mostrar como essa diferenciação impacta a forma pela qual os juízes, advogados e outros operadores do direito argumentam e tomam decisões.307

Schauer adota uma postura positivista de cunho hartiano, defendendo que o conceito de direito pode ser melhor compreendido invocando-se a noção de regra de reconhecimento. Para o autor, a dificuldade consiste justamente em saber, dentro de um contexto constituído por regras e normas diversas, quais contam como efetivamente jurídicas. E a resposta para essa pergunta conceitual é que o direito não é necessariamente uma questão de regras, mas pode ser, passando a questão empírica acerca de quando e com que intensidade o direito se apresenta em determinado lugar a questão mais interessante para Schauer.308

Sem nos determos em uma explicação pormenorizada das ideias de Schauer, basta firmar que ele entender que seguir uma regra significa conferir autoridade ao seu texto, sua generalização ou predicado fático, em detrimento das razões de substância que seriam invocadas na ausência da regra. Respeitar a regra também significa respeitar sua institucionalidade, sem que se retorne ao âmbito de uma argumentação prática que seria utilizada na ausência da institucionalidade.

Conforme Struchiner, as razões mais frequentemente invocadas a favor de uma argumentação jurídica baseada em regras e, assim, fundada em razões de autoridade, estão relacionadas à busca de certeza, segurança e previsibilidade, gerando mais estabilidade. Além disso, as regras são capazes de gerar mais eficiência, pois as decisões baseadas em regras poupam custos, tempo e dinheiro.309

306 BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. O que resta do positivismo jurídico depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos -Eletrônica, Vol. 20 -N.1 – Jan-abr 2015, p. 325. 307 STRUCHINER, Noel. O(s) positivismo(s) de Frederick Schauer. In TORRANO, Bruno. OMMATI, José Emilio Medauar (coordenadores). O positivismo jurídico no século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 184.

308 STRUCHINER, Noel. O(s) positivismo(s) de Frederick Schauer. In TORRANO, Bruno. OMMATI, José Emilio Medauar (coordenadores). O positivismo jurídico no século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 198

309 Uma decisão judicial não fundamentada ou deficientemente fundamentada pode gerar, além da multiplicação dos custos do processo pelo aumento da duração processual e pena necessidade de refazer atos processuais que já ocorreram (instrução probatória, novas audiências, perícias, etc), o abarrotamento do Judiciário. E quando processos duram mais tempo, há, como consequência, mais processos em curso, o que sobrecarrega os julgadores, o que, por sua vez, faz com que estes disponham de menos tempo para julgar as causas, o que, por fim, pode gerar

Torrano traz uma abordagem positivista muito relevante ao que está sendo tratado. O autor denomina sua construção teórica de positivismo ético (ou normativo) moderado. Ético porque, em um primeiro momento, respeita as fontes jurídico-sociais, a objetividade, a institucionalidade, a autoridade do direito para, em um segundo momento, prescreve a aplicação, pelo magistrado, daquilo que pode ser “objetivamente determinado como algo juridicamente vinculante mesmo em face de discordâncias pessoais acerca do mérito da norma em questão.” Seria moderado por que não ignora a existência de uma dimensão subjetiva da interpretação e a existência de lacunas ou limites normativos intencionais ou não intencionais, “nem que as relações de confiança internas ao sistema jurídico são, de alguma forma, simples, unívocas ou previsíveis em favor de uma única ideologia ou de um único método interpretativo.”310311

É importante observar que o referido positivismo ético, apesar de enfatizar “a primazia do texto jurídico construído após os debates públicos procedimentalmente balizados”, não ignora, com isso, a existência de uma “discricionariedade guiada” do aplicador do direito, os limites da linguagem, da interpretação e da argumentação racional, a vontade política do legislador que, muitas vezes, confere maior discricionaridade aos magistrados, utilizando, muitas vezes, de técnicas de positivação que relacionam-se à baixa densidade normativa312, etc. Conforme Shapiro, “o ponto de vista jurídico pretende representar o ponto de vista moral. Ele afirma que normas do sistema jurídico são moralmente legítimas e vinculantes”.313

Shapiro afirma que a teoria metainterpretativa de Dworkin

é enormemente exigente e requer elevada habilidade intelectual e caráter ético para que possa ser aplicada com sucesso. A não ser que os designers de um sistema legal manifestem extrema confiança na competência e caráter dos membros de sua própria comunidade, tomar uma análise filosófica como raciocínio metainterpretativo deve ser considerado uma prática juridicamente perigosa.314

Conforme Torrano, a excessiva abstração das ideias de Dworkin acerca da interpretação realizada pelos magistrados são o resultado de uma série de premissas otimistas,

novas decisão sem fundamentação ou mal fundamentadas (ainda que por outras razões), em um círculo vicioso que afeta tanto a prestação jurisdicional efetiva quanto o erário.

310 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 25.

311 O autor afirma ainda, ao explicitar as razões pelas quais utilizou o termo “moderado” para denominar sua construção teórica, que o termo se relacionada com a atribuição de valor moral ao fato de que Constituição de 1988 não acompanhou a “radicalidade teórica do positivismo ético proposto, no estrangeiro, por Jeremy Waldron”, prevendo explicitamente alguns pré-compromissos constitucionais. TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 25-26. 312 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 26.

313 SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 280. 314 SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 329.

fundamentadas em uma filosofia liberal, conferindo aos magistrados certos deveres fundamentais a priori relacionados à justificação moral das decisões por eles proferidas.315

Uma visão mais realista acerca das limitações humanas e das limitações da linguagem leva em consideração uma noção de que qualquer interpretação jurídica é permeada por uma dimensão de limitação institucional e por uma dimensão de apreciação subjetiva, o que Torrano316 denomina de dimensão conservadora e dimensão inovadora ou construtiva, respectivamente.

A opção do legislador em conferir aos juízes maior ou menor grau de discricionariedade leva em consideração a “competência média” dos julgadores para resolução de certos problemas, dependendo da matéria tratada. Em geral, quanto maior for a confiança atribuída aos juízes para dizer qual o direito aplicável ao caso, maior a discricionariedade.317 No âmbito do processo civil, especialmente no que diz respeito à valoração probatória e à fundamentação da decisão judicial, as normas aplicáveis nesse sentido contém o que se chama de “baixa densidade normativa”318, contando com alto grau de abstração, deixando grande

margem de discricionariedade.

Sobre a questão da confiança acima referida, Shapiro afirma que “aos intérpretes, na interpretação, deve ser dada a medida de discricionariedade que lhes é atribuída pela economia da confiança do sistema”319. Ocorre que os sistemas jurídicos depositam confiança

de maneira desigual e a verdade da interpretação jurídica, conforme Shapiro, é sempre relativa à quantidade de confiança que foi atribuída a determinado ator jurídico:

Não existe nada como a interpretação correta de um texto jurídico. (...) Um texto é interpretado corretamente apenas em relação a um dado autor e ao seu lugar particular dentro do sistema de economia da confiança.320

Para Shapiro321, existe uma seletividade extragrupal, que se refere à “diversidade qualitativa” em relação à confiança atribuída a subgrupos distintos de intérpretes (como por exemplo, a diferença de confiança atribuída ao juiz, que pode até mesmo declarar a

315 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 360.

316 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 369.

317 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 375.

318 Conforme Torrano, “a promulgação de uma lei infraconstitucional denota uma vontade de densificação ou detalhamento de preceitos gerais contidos na Constituição”, daí a constatação sustentada no presente trabalho no sentido de que há baixa densidade normativa no que diz respeito à fundamentação do juízo de fato no Brasil. Cf TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 378.

319 SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 338. 320 SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 358. 321 SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 358.

inconstitucionalidade de uma norma no caso concreto e a confiança atribuída a um auditor fiscal, mais restrito ao princípio da legalidade) e uma seletividade intragrupal, que diz respeito ao desequilíbrio de confiança depositada em relação a um mesmo subgrupo de intérpretes (por exemplo, tem-se que a confiança atribuído a um magistrado de um Tribunal Supremo é sensivelmente maior do que aquela atribuída ao magistrado de primeiro grau, que tem sua discricionaridade reduzida pela normatividade dos julgamentos proferidos nas instâncias superiores, que podem até mesmo, no caso do STF, editar súmulas vinculantes).

A distinção entre a referida seletividade demonstra a existência de juízos absolutos e de juízos relativos de confiança.322

Nesse sentido, a relação entre confiança e desconfiança demonstra que a proposta do positivismo normativo não adere à tese de que Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é, pois, se assim o fosse, a discussão referente ao ativismo judicial perderia em muito seu sentido. Conforme Torrano323, trata-se de uma tese ontológica circular, pois se a verdade das proposições normativas proferidas pelos magistrados dependessem do simples fato de elas terem sido proferidas pelos magistrados, não haveria espaço para que os juízes cometessem erros jurídicos e, caso os juízes não pudessem cometer erros jurídicos, não haveria base alguma para censurá-los quando decidissem contra a lei ou contra a Constituição.

Porém, as decisões judiciais podem conter erros até mesmo após executadas, sendo que o acerto ou o erro da decisão apenas é viabilizado pelo reconhecimento de que há normas pré-existentes que estabelecem critérios para a aferição da correção ou incorreção das interpretações realizadas pelos juízes.

Em relação especificamente ao contexto brasileiro, Torrano afirma:

Contextos democráticos como o brasileiro, caracterizados pela existência de discordâncias principiológicas infindáveis, em termos de competição, e não de concorrência, sobre questões cruciais para a prosperidade comunitária, pressupõem que (i) o Poder encarregado de resolver esses conflitos seja aquele destinado a internalizar institucionalmente as visões de mundo substancialmente controversas (ou seja, o Legislativo) e que a metodologia interpretativa adequada seja estabelecida a partir da análise da economia da confiança (economy of trust) admitida pelo sistema jurídico.324325

322 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 373.

323 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 384.

324 TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 361.

325 Torrano prossegue afirmando que, à luz do positivismo normativo, nem sempre o magistrado está obrigado a justificar moralmente, em termos de princípios morais, aquilo que decide, pois “nossos pactos político- democráticos podem, em determinadas áreas do direito, simplesmente ignorar ou rejeitar qualquer noção de integridade e coerência do direito, privilegiando uma interpretação baseada em política e consequências” cf TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico, pós-positivismo e pragmatismo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 361.

Não pode ser desconsiderado que, via de regra, os juízes não possuem formação específica que os habilite a formular raciocínios de cunho moral de forma filosoficamente fundamentada, devendo uma teoria da decisão judicial levar a sério a capacidade média dos magistrados, dando atenção ao que é empiricamente aferível ao invés de simplesmente debater “como os juízes devem decidir” do ponto de vista filosófico e extremamente controverso. A situação piora ainda mais quando há a junção de teorias, tais como a de Dworkin com a de Gadamer ou de Heidegger, ensejando uma propensão de certos teóricos do direito a “negar, segundo suas próprias convicções pessoais ou grupais, juridicidade a normas que, no plano dos fatos, notoriamente passaram nos testes procedimentais de validade jurídica.”326

A interpretação deve começar pelos textos legais que já contam com elementos semânticos mínimos que não podem ser ignorados pelo julgador e, ainda, deve ser “passível de enquadramento dentro do planejamento jurídico desenhado pelo constituinte.”327

Se toda a aplicação do direito parte do texto, sendo toda atividade interpretativa iniciada com a análise de signos linguísticos que formam os textos legais, por qual razão, no que diz respeito à fundamentação do juízo de fato, essa atividade é praticamente desprovida de parâmetros normatizados? Mesmo a inovação trazida pelo art. 489 do CPC/15 é vista com desconfiança e, muitas vezes, com desprezo pelos julgadores, que consideram negativa a positivação de requisitos mínimos para a fundamentação da decisão judicial mesmo a nível de fundamentação do juízo “de direito”, conforme tratado no tópico seguinte.

É certo que a construção de um modelo normativo não implica em total eliminação da discricionariedade, a qual pode existir em maior ou menor grau dependendo da densidade