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Em termos amplos, a função dos meios de prova no processo civil pode ser definida sem maiores dificuldades nos sistemas processuais. De maneira mais ou menos clara, os meios de prova conectam-se aos fatos em litígio através de uma relação instrumental: meio de prova é qualquer elemento que possa ser utilizado para estabelecer a verdade dos fatos da causa, a função principal da prova é oferecer ao julgador informação confiável acerca da verdade dos fatos em litígio. Segundo Taruffo,

44 STRECK, Lênio. Lições críticas de hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 18. 45 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do direito no século XXI: diretrizes curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 34-35 apud JOBIM, Marco Félix. Cultura, escolas e fases metodólogicas do processo. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 65.

46 Não se afirma, com isso, que primeiro deve haver a positivação de critérios desconhecidos e jamais estudados para, após e com a positivação, fomentar o estudo. O que se acredita é que, com a positivação de critérios mínimos, decorrentes do próprio modelo constitucional de processo, a temática passará a ser mais estudada e os critérios ampliados, melhorados e aprofundados.

Tem-se que a ideia básica é que um litígio surge a partir de certos fatos e sobre esses se baseia; que esses são fatos são disputados pelas partes; que tal disputa deve ser resolvida pelo tribunal, e que a solução da controvérsia sobre os fatos é alcançada quando o tribunal estabelece a verdade sobre os fatos que motivaram a disputa.47 Relembre-se que os fatos não se incorporam nos procedimentos judiciais na sua realidade empírica ou material, pois, em geral, os fatos já ocorreram e pertencem, portanto, ao passado. Consequentemente, salvo alguns elementos circunstanciais, os fatos não podem ser percebidos pelo juiz, devendo ser reconstruídos pelo julgador com base na prova disponível. Fatos, então, são tomados em consideração de uma forma muito peculiar, isto é, na forma de enunciados acerca do que ocorreu faticamente, de forma que, quando se fala em verdade de um fato, na realidade fala-se da verdade de um enunciado acerca desse fato. 48

Isso quer dizer que, no início de um procedimento, os fatos se apresentam na forma de enunciados de fato caracterizados pelo que Taruffo chama de “status epistêmico da incerteza”49.

Portanto, decidir sobre fatos significa ultrapassar tal “status” e resolver a incerteza, determinando, a partir dos meios de prova, se os enunciados iniciais se provaram verdadeiros ou falsos. Produzidas todas as provas admissíveis, chega-se no momento do procedimento de proferir a decisão acerca dos enunciados de fato, resolvendo-se a incerteza e estabelecendo o que foi considerado verdadeiro.

Conforme Béltran, uma boa forma de aproximação do estudo e da análise da noção de prova é indagar o que é decidido ou feito quando são formulados enunciados do tipo “Está provado que João matou Pedro” ou “está provado que Maria ligou para Paulo às cinco da tarde”. Assim, denomina-se aos enunciados que possuem a forma de “Está provado que p” de enunciados probatórios.50 Deve-se esclarecer que, embora a terminologia possa parecer confusa, não se deve entender que os enunciados probatórios são enunciados que provam, da mesma forma que os enunciados interpretativos interpretam. Chama-se de enunciados probatórios os enunciados que declaram provadas proposições sobre os fatos51.

Béltran indica dois aspectos distintos dos enunciados probatórios: a força e o sentido52. O sentido diz respeito ao que é dito ao se emitir um enunciado e a força relaciona-se com aquilo que se faz ao emiti-lo. Interessante observar que esses dois aspectos dos enunciados probatórios relacionam-se com aquilo que, na filosofia da linguagem, é chamado de dimensão locucionária

47 TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 15 48 TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 19 49 TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 129 50 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 19. 51 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 19 52 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 19-53.

e dimensão ilocucionária53, referindo-se, respectivamente, ao sentido e à força de um enunciado.

Dessa forma, é possível destacar duas possíveis fontes de interferência na comunicação linguística. No caso do sentido, o problema advém da incompreensão, por parte do destinatário da mensagem, acerca do que está sendo dito. No caso da força, o problema é produzido, ainda que o sentido esteja claro, por não restar claro o que se quis fazer ao se dizer o que se disse, isto é, qual ato verbal foi realizado pelo emissor da mensagem: a formulação de uma pergunta? Uma ordem? Uma descrição? Um pedido?54

Há pelo menos três formas pelas quais pode ser concebida a força de um enunciado “está provado que p”, atribuindo-lhe força constitutiva, normativa ou descritiva. Béltran defende a força descritiva do enunciado probatório, aduzindo que, ao expressar proposições descritivas acerca da ocorrência de um determinado fato em realidade externa ao processo, possibilita-se que o enunciado seja passível de verdade ou de falsidade.

Destaca-se, assim, que se afirma a ocorrência de um fato a partir de uma realidade externa ao processo. Essa afirmação é negada pela distinção classicamente realizada entre verdade processual e verdade material55, que afirma que apenas a verdade processual importa para a determinação dos fatos provados no processo. Essa ideia de que existe uma verdade processual específica e distinta é rechaçada por Taruffo, que afirma que

parece insostenible la idea de una verdad judicial que sea completamente «distinta» y autónoma de la verdad tout court por el solo hecho de que es determinada en el proceso y por medio de las pruebas; la existencia de reglas jurídicas y de límites de distinta naturaleza sirve, como máximo, para excluir la posibilidad de obtener verdades absolutas, pero no es suficiente para diferenciar totalmente la verdad que se establece en el proceso de aquella de la que se habla fuera del mismo.56

Nesse sentido, também é importante destacar que a atribuição de força descritiva aos enunciados probatórios não supõe necessariamente a assimilação incontestável entre prova e verdade.57

Para se falar sobre o sentido dos enunciados probatórios, é importante, primeiramente, destacar-se a polissemia da palavra prova, esboçando os três principais sentidos em que, em geral, a expressão “prova” é utilizada: para designar o ato de provar, ou seja, a atividade

53 CARRIÓ, G. Notas sobre derecho y lenguaje. 4.ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 17. 54 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 20 55 CARNELUTTI, Francesco. La prova civile, 2ª edição, Roma: Edizioni dell’Ateneo, pp. 29-30.

56 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 24-25.

57 Segundo Béltran, para se negar a correspondência entre prova e verdade, basta admitir que faz sentido afirmar que o fato F não foi provado no processo, ainda que o enunciado que afirma sua ocorrência seja verdadeiro. BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 27.

probatória; para designar o meio de prova propriamente dito (prova testemunhal, prova documental, etc) e para designar o resultado dos atos ou meios de prova que foram produzidos na busca do convencimento judicial.58

Guerra utiliza as expressões prova-atividade, prova-meio e prova-resultado para designar essas três noções probatórias básicas e chama a atenção para o fato de que a doutrina processual, em geral, define, ao menos em parte, o tipo de atividade e o tipo de meio em função do tipo de resultado que “prova” também designa, concluindo que a noção de prova como resultado é prioritária em relação às demais, sendo indispensável uma definição clara desta noção.59

Béltran, por seu turno, afirma que se pode falar de um resultado probatório de um meio específico de prova e indagar-se, por exemplo, em que medida a declaração de uma testemunha prova a hipótese levantada. Ademais, utiliza-se também o termo prova como resultado da atividade probatória, ou seja, como o resultado obtido a partir da valoração conjunta de todos os elementos probatórios, de todos os meios de prova utilizados. O autor denomina de “prova como resultado parcial” o primeiro dos sentidos e “prova como resultado conjunto” o segundo.60 Assim, pode-se identificar que o enunciado “está provado que P” é utilizado para fazer referência ao resultado conjunto da atividade probatória desenvolvida a favor (ou contra) a conclusão.

Estabelecidas essas premissas, pode-se avançar para o esclarecimento do problema do sentido dos enunciados probatórios, com a advertência, feita por Béltran, de que não é possível identificar um único e homogêneo sentido, destacando três principais, que podem ser resumidas da seguinte forma: enunciado probatório como sinônimo de “verdade”, enunciado probatório como sinônimo de “declaração judicial” e enunciado probatório como sinônimo de “elementos suficientes de juízo”.61

Em suma, não se pode aceitar nem a primeira (enunciado probatório como sinônimo de “verdade”) nem a segunda (enunciado probatório como sinônimo de “declaração judicial”) acepção. Isso se dá por quê, em primeiro lugar, afirmar que algo está provado equivale a predicar aquilo que se considera provado o valor de verdade, então, considerando a primeira acepção, não haveria diferença entre a noção de prova e a noção de verdade.

58 DIDIER Jr. Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 14.ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2019, pp. 50-51.

59 GUERRA, Marcelo Lima. Prova e justificação da convicção judicial sobre fatos relevantes in MACHADO, Hugo de de Brito (coordenador). A prova em questões tributárias. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 361-371. 60 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 29. 61 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 29-38.

Essa noção não pode ser utilizada processualmente, haja vista que, no âmbito do processo judicial, pode-se considerar provada uma hipótese ainda quando não há elementos probatórios a seu favor, com a condição de que a proposição ou hipótese seja verdadeira.62

A noção de enunciado probatório como sinônimo de “declaração judicial” significa que uma proposição acerca de um fato é considerada provada apenas por ter sido incorporada à motivação do juiz como premissa fática, ou seja, que o juiz declarou a ocorrência do fato em questão. Segundo Carnelutti, um dos maiores representantes deste posicionamento, dizer que um fato está provado é equivalente a dizer que este fato foi estabelecido formalmente pelo juiz.63 Porém, adota-se, no presente trabalho, o entendimento de que essa noção não pode

subsistir. Um dos principais problemas da ideia é que a suposição de uma infalibilidade do juiz. A falibilidade da decisão judicial a respeito dos fatos relaciona-se com dois aspectos que não devem ser confudidos:

Em un primer sentido, puede hablarse de una decisión judicial errónea en relación con los hechos probados por la falta de concordancia entre los hechos que así se declaran y los hechos realmente acaecidos. En un segundo sentido, en cambio, una decisión judicial puede ser errónea por no haber respetado las reglas procesales que eventualmente regulen su adopción o su contenido. Está claro que una Concepción de la prueba como la que sostienen los autores presentados en este apartado supone la infalibilidad del juez en el primero de los sentidos, pero no en el segundo.64

Por fim, chega-se à noção de que o sentido dos enunciados probatórios diz respeito à suficiência de elementos de juízo em favor do fato a ser provado. Nessa concepção, a prova de uma proposição relaciona-se aos elementos de juízo disponíveis que corroborem a hipótese sobre os fatos que aquela expressa. Não se pode afirmar, de forma absoluta, que uma proposição está provada senão unicamente com relação a um determinado conjunto de elementos de juízo.65

Dessa forma, pode-se afirmar que “está provado que p” é um enunciado incompleto, haja vista que deve necessariamente relacionar-se com um conjunto de elementos de juízo devidamente identificado, conjunto este que deverá estar delimitado pelos meios de prova admitidos e praticado no processo judicial. Béltran define “elemento de juízo” como sendo qualquer enunciado fático descritivo do qual se possa obter direta ou indiretamente inferências para a corroboração ou refutação da hipótese principal do caso.66

De acordo com essa concepção, o enunciado probatório será verdadeiro quando disponha de elementos de juízo suficientes a favor do fato probando e falso quando não haja

62 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 30. 63 CARNELUTTI, Francesco. La prova civile, 2.ª ed., Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1947 apud BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 32.

64 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 33. 65 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 35. 66 BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prueba y verdad en el derecho. 2ª edición. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 35.

elementos de juízo a seu favor ou estes sejam insuficientes, tudo com independência da verdade ou da falsidade da proposição.

Chegar a essa demonstração dos fatos pode ter diferentes graus de complexidade, variando de acordo com as características específicas de cada caso concreto, com a instrução processual realizada, ou seja, com os meios de prova utilizados, a quantidade e a qualidade e, sem dúvida, com a natureza dos fatos que necessitam de determinação. De fato, embora possam existir casos simples, a maior parte dos considerados casos difíceis são assim considerados porque as questões de fato a eles relacionadas são difíceis de resolver, contando com provas complexas e/ou incertas.

Em se estabelecendo que em razão da estrutura das normas jurídicas e da vinculação à lei que marca a atuação jurisdicional, o juiz deve se convencer acerca da ocorrência ou não de certos fatos, é imperioso reconhecer que tal convencimento do juiz acerca de fatos relevantes constituirá, necessariamente, um dos fundamentos da própria decisão judicial que o juiz é chamado a proferir. Tomando o exemplo da declaração judicial sobre existência ou não de certo direito subjetivo, pois a ocorrência ou não do fato constitutivo é determinante para a decisão sobre a existência do direito, esta decisão deverá ser fundamentada, entre outras coisas, no convencimento do juiz sobre isso. Assim, a decisão sobre a existência do direito deverá ter como fundamento a convicção do juiz sobre a ocorrência do fato constitutivo.