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Além da versão lógico-argumentativa, a teoria cética ou formalista conta com a perspectiva da hermenêutica filosófica, que estuda a filosófica em conexão com a arte da intepretação jurídica.261

Cumpre salientar, desde logo, que não constitui o objetivo do presente trabalho a abordagens de todas as visões a respeito da hermenêutica filosófica ou a adoção das ideias de um único autor ou de uma determinada escola de pensamento hermenêutico, mas, examinar, de uma maneira geral, os aportes trazidos pela hermenêutica filosófica para, ao final, justificar por que a adoção dos mecanismos por ela trazidos não são suficientes para a justificação do juízo de fato.

Streck diferencia a hermenêutica da teoria da argumentação, afirmando que, enquanto a teoria da argumentação compreende os princípios apenas como mandados de otimização, entendendo-os, portanto, como abertura interpretativa, implicando, necessariamente, a ampla participação da subjetividade do intérprete, a hermenêutica partiria da tese de que os princípios introduzem o mundo prático no direito, “fechando” a interpretação, ou seja, diminuindo o espaço da discricionariedade do intérprete. Nesse sentido, o autor entende que a hermenêutica “salta na frente” para dizer que, primeiro, são incindíveis os atos de interpretação e aplicação (com o que se supera o método) e, segundo, que não há diferença estrutural entre hard cases e

easy cases.262

A compreensão da “reviravolta” (linguistic turn) tem como premissa dois teoremas fundamentais do pensamento hermenêutico: a diferença ontológica e o círculo hermenêutico.

A diferença ontológica é baseada na máxima heideggeriana de que ser é sempre o ser de um ente e o ente apenas pode ocorrer no seu ser.263 De acordo com Ferreira, é a partir da diferença ontológica que se compreende a diferenciação entre texto e norma sendo esta circunstância “determinante para as possibilidades de superação da discricionariedade judicial.” A diferença ontológica deixa claro que não há identidade entre texto e norma, de onde decorre que a norma, como sentido do ser do ente texto, não é independente deste.264

261 LANES, Julio Cesar Goulart. Fato e Direito no Processo Civil Cooperativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 104-105.

262 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 235.

263 STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude. Estrutura e movimento na interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001, p. 280-281.

264 FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 76-77.

Streck afirma que

é preciso notar que o homem só compreende o ser na medida em que pergunta pelo

ente. Vejamos o nosso caso: colocamos em movimento uma reflexão sobre o processo

na perspectiva de que, ao final, possamos dizer algo sobre o seu ser (uma definição sobre o processo começaria com: o processo é...). Mas ninguém negaria que o processo se trata de um ente. Um ente que é interrogado em seu ser, pois toda pergunta pelo processo depende disso: o que é processo? Como é processo? Assim, embora o

ser e o ente se deem numa unidade que é a compreensão de que o homem (ser-aí) tem

do ser, há entre eles uma diferença. Esta diferença Heidegger chama de diferença

ontológica e se dá pelo fato de que todo ente só é no seu ser. Em outras palavras, a

pergunta se dirige para o ente, na perspectiva de o compreendermos em seu ser.265

Já o círculo hermenêutico consiste “num elemento estrutural da compreensão que expressa a interdependência que existe entre texto e contexto, entre fato e norma, entre sujeito e objeto, entre passado e presente, etc.”.266

Conforme Ferreira, o círculo hermenêutico e a diferença ontológica operam em perfeita sintonia, considerando que, a partir da deferência ao que diz o texto, chega-se a uma norma (sentido) que, por sua vez, é diferente do texto, mas é dele dependente e, pelo movimento do círculo hermenêutico, o sujeito (intérprete) e o objeto (texto) “fundem seus horizontes em sua historicidade”.267

Streck afirma que, com a diferença ontológica, há a superação do paradigma da filosofia da consciência, compreendendo que não há espaço para dualismos metafísicos, não há um sujeito separado de um objeto: ser e ente não são idênticos, mas também não estão cindidos. Seria a diferença ontológica que constituiria justamente a diferença entre a hermenêutica e as demais teoria discursivo-procedimentais.268 Seria precisamente na aplicação da diferença ontológica ao direito que se superaria qualquer pretensão objetivista, pela qual a norma estaria contida no texto, e qualquer pretensão subjetivista, em que o texto perde importância na medida em que há discricionariedade do intérprete em atribuir norma ao texto a partir de um conjunto de valores.

Streck aponta importantes pontos de convergência entre a hermenêutica filosófica e a proposta interpretativa do direito de Dworkin, que vão desde o repudio da distinção entre

265 STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 272-273.

266 FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 75.

267 FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 78.

268 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 220.

conhecer, interpretar e aplicar, até o combate à discricionariedade (neste ponto, a convergência se dá entre Gadamer, Dworkin e Habermas).269

Pode-se enumerar, com base nas ideias de André Coelho, três características fundamentais para a tradição hermenêutica: inescapabilidade da linguagem e da interpretação, renúncia à atitude normativa e rejeição do método.

Com relação à inescapabilidade da linguagem e da interpretação, tem-se que todo integrante da tradição hermenêutica rejeita a ideia de acesso não linguístico ou não interpretativo às coisas no mundo. O acesso do indivíduo ao mundo é, inevitavelmente, mediado pela linguagem e pela interpretação. Não existiriam fatos brutos ou objetos não interpretados, pois a própria constatação de fatos ou de objetos é produto de uma operação interpretativa. Conforme Coelho, “isto contrapõe a tradição hermenêutica a toda forma de empirismo, positivismo, naturalismo ou variantes que proponham o primado de um nível ontológico externo à linguagem.”270

Ademais, quanto à renúncia à atitude normativa, o filósofo hermenêutico não se coloca na posição de juiz, mas na posição de intérprete, “encarregado de reconstruir a racionalidade interna da história a que pertence e mostrar que a única crítica pertinente a uma tradição é a que se faz a partir de seus próprios elementos, no processo de reapropriação e renovação que seus integrantes tomam nas mãos.”271

Em relação à rejeição do método, Coelho afirma que todo integrante da tradição hermenêutica renuncia à recomendação de um método particular de interpretação, acreditando que uma compreensão adequada da tarefa interpretativa revele que ela é incompatível com qualquer metodologia pré-fixada, pois

A interpretação não é uma tarefa que se deixe definir na forma de padrões e regras a serem aplicados universal e incondicionalmente, nem pode ser repetida por qualquer um obtendo-se os mesmos resultados, porque demanda um tipo especial de experiência e sabedoria prática.272

269 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 117. Deve ser ressaltado que, conforme o próprio Streck, a referida confluência entre os pensamentos de Gadamer e Dworkin não é unânime na teoria do direito. Porém, Streck entende que “a principal confluência das teses gadamerianas e dworkinianas reside na concepção de superação do esquema sujeito-objeto e o modo como tal circunstância se coloca no âmbito da applicatio jurídica”

270 COELHO, André Luiz Sousa. Dworkin e Gadamer: qual conexão? Peri - Revista Acadêmica dos Pós- Graduandos em Filosofia da UFSC, 2014, p. 27. Disponível em

https://www.academia.edu/6695724/Dworkin_e_Gadamer_-_Qual_Conex%C3%A3o acesso em 05/01/2020. 271 COELHO, André Luiz Sousa. Dworkin e Gadamer: qual conexão? Peri - Revista Acadêmica dos Pós- Graduandos em Filosofia da UFSC, 2014, p. 28. Disponível em

https://www.academia.edu/6695724/Dworkin_e_Gadamer_-_Qual_Conex%C3%A3o acesso em 05/01/2020. 272 COELHO, André Luiz Sousa. Dworkin e Gadamer: qual conexão? Peri - Revista Acadêmica dos Pós- Graduandos em Filosofia da UFSC, 2014, p. 30. Disponível em

Verifica-se que o problema da indeterminação do Direito tem enorme relevância não só na solução dos casos difíceis, mas está presente, em maior ou menor grau, em todo ato de aplicação do Direito.273 A indeterminação possibilita a disputa interpretativa e alguma forma de controle sobre a decisão judicial, ainda que o referido controle limite-se, conforme afirma Kelsen, no estabelecimento da moldura normativa.

Habermas afirma que a visão hermenêutica contrapôs a visão convencional que compreendia a decisão jurídica como uma subsunção do caso sob uma regra correspondente.274

Conforme Campos, a característica marcante da quebra de paradigma representada pela reviravolta linguístico-pragmática é que o cerne da reflexão filosófica deixa de ser o sujeito e passa a ser a linguagem, tendo resultado no reconhecimento da intersubjetividade como elemento indispensável à razão, a qual passa a ser definida como razão discursiva ou comunicativa, na proposta de autores como Habermas e Apel.275

Portanto, a razão é marcada pela linguagem, que pressupõe interação. Essa transformação no paradigma da racionalidade não é de forma alguma alheia à teoria do direito:

Também a ordem jurídica é entendida como uma construção que se dá no âmbito da linguagem. Não só a norma é originada de um embate discursivo internalizado pelo poder legislativo, como a decisão sobre o “justo”, o “correto”, o “conforme” é tomada no âmbito de uma interação comunicativa simbolizada pelo processo. Por esse motivo, o ato de criar o direito não pode ser um ato de exclusão, mas um movimento inclusivo que reconheça a existência de tantos argumentos quanto são os potenciais argumentantes. O processo (...) existe como meio para que se alcance a melhor razão, o melhor argumento nos conflitos acerca da interpretação das normas. Trata-se, assim, de uma organização em procedimento fundada na ideia de comunicação. Em outros termos, a institucionalização da razão comunicativa no âmbito do estado pela ação do Direito.276

O giro linguístico é resultado das rupturas provocadas por Wittgenstein e Heidegger, que demonstraram a impossibilidade de se fundamentar a razão.277 Conforme Ferreira, “o giro linguístico traz para o centro das indagações acerca do fenômeno jurídico a questão da linguagem”, assumindo esta a posição central, a condição de possibilidade, não sendo mais um terceiro elemento colocado entre o sujeito e objeto.278

273 Kelsen, Hart e Dworkin concordam que direito muitas vezes afigura-se indeterminado, mas apenas Hart concede que o Direito também pode mostrar-se incompleto.

274 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, vol.1, p. 247.

275 CAMPOS, Juliana Cristine Diniz. O povo é inconstitucional: poder constituinte e democracia deliberativa.1ª edição. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2016, p. 91-92.

276 CAMPOS, Juliana Cristine Diniz. O povo é inconstitucional: poder constituinte e democracia deliberativa.1ª edição. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2016, p. 93.

277 STRECK, Lênio, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 100.

278 FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 74.

É certo que são muitas as contribuições existentes, partindo desde a tradição de Schleiermacher e Dilthey, levada adiante por Betti, que se ocupa com a “estruturação de uma teoria geral do modo como as objetivações da experiência humana podem ser interpretadas” até os seguidores de Heidegger, que compreendem a hermenêutica como “uma exploração filosófica das características e dos requisitos necessários a toda compreensão”279. Esta última

linha é a que mais se relaciona com o que se intenciona tratar no presente trabalho, tendo seu representante maior em Gadamer, o qual direcionou seu pensamento à questão filosófica do que é a interpretação em si mesma, pregando a ausência de um método para a compreensão.

A filosofia hermenêutica firma-se no conceito central da pré-compreensão e na estrutura circular do compreender. Conforme Heidegger, toda busca tem sua direção definida a partir daquilo que é buscado.280

Gadamer é um dos filósofos mais citados do país, sendo sua teoria hermenêutica considerada como uma das bases para solucionar a questão da fundamentação da decisão judicial.281

O ponto de partida de Gadamer em sua proposta dentro da tradição hermenêutica é considerar o homem como ser finito e histórico. O homem encontra limitação temporal, contando com um início e um fim. Conforme Pontes, Gadamer não trata a limitação temporal como uma limitação ao compreender, afirmando que a historicidade humana é pressuposto da própria compreensão, haja vista que a forma de compreender é decorrente da própria história daquele que compreende, que forjou os pré-conceitos no sujeito, não sendo uma opção deste formar seus pré-conceitos e sua historicidade, mas uma questão determinista de formação destes em virtude do tempo e do contexto em que está inserido.282

Dessa maneira, Gadamer intenta explicitar a superação da subjetividade, estabelecendo uma relação entre a compreensão feita pelo sujeito e os efeitos da sua historicidade na compreensão, sendo esta condição inafastável do próprio ser, influenciando qualquer que seja o resultado dessa compreensão. Gadamer defende, então, o caráter circular da compreensão, a qual se manifesta primeiramente por uma pré-compreensão, influenciada

279 LANES, Julio Cesar Goulart. Fato e Direito no Processo Civil Cooperativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 104-105.

280 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Ed. Unicamp, 2012, p. 41.

281 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 38.

282 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 39.

pela visão de mundo do intérprete – a qual sempre será influenciada pela nova experiência do intérprete ocasionada quando este entra em contato com o novo objeto – percorrendo caminhos de mão-dupla em direção aos pré-conceitos e, novamente até o objeto, até a formação de uma convicção.283

A tese central de Gadamer, conforme Oliveira, é no sentido de que a compreensão não se trata da “transposição para o mundo interior do autor e uma recriação de suas vivências, mas um entender-se a respeito da ‘coisa’”, sendo linguagem o meio pelo qual é possível o entendimento dos sujeitos sobre os objetos em questão.

De acordo com Pontes,

a maneira de como se deparar com a historicidade e finitude do intérprete deve mirar que a interpretação de texto não pode ser completamente resultado da subjetividade criada por uma experiência de mundo, nem tem como ser algo completamente objetivo, em que esses fatores sejam irrelevantes para uma conclusão da atividade interpretativa. A nova experiência e o objeto de interpretação deve também causar alteração nos pré-conceitos e pré-juízos daquele que realiza a atividade, sob pena de impossibilitar uma compreensão adequada.284

Betti irá defender a aplicação das ideias de Gadamer ao Direito, entendendo que Gadamer defende que sua hermenêutica filosófica seja uma fenomenologia da interpretação, “ou seja, uma teoria descritiva de interpretação focada no ‘ser’, e que, por consequência, se aplicaria ao Direito”.285

Conforme Manfredo de Oliveira, “a hermenêutica desvela a mediação histórica tanto no objeto a compreensão como da própria situacionalidade do que compreende”286. Assim, tem-

se que somente é possível teorizar sobre a compreensão quando a historicidade é tomada como pressuposto.287

283 OLIVEIRA, Manfredo A. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 229 apud PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 39.

284 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 43.

285 BETTI, E. L'ermeneutica storica e la storicità dell'intendere. Annali della Facoltà di Giurisprudenza - UniBari. v. 16, p. 1-28, 1961 apud PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 44.

286 OLIVEIRA, Manfredo. A reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 231.

287 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 40.

De acordo com Pontes, as ideias de Gadamer foram importantes para o desenvolvimento de uma cultura hermenêutica na tradição jurídica alemã. Enquanto Betti fundamentou sua teoria da interpretação focando na objetividade, autonomia e adequação à interpretação, as teorias hermenêuticas alemãs continuaram seguindo as linhas gadamerianas, “propondo uma teoria da estruturação do processo interpretativo com bases no não- cognitivismo”.288

Embora não tão trabalhado pela doutrina hermenêutica no Brasil, um dos principais nomes nessa corrente foi Josef Esser, que direcionou mais o enfoque de sua teoria ao Direito, defendendo que a hermenêutica gadameriana daria as bases teóricas para a estruturação de uma nova metodologia jurídica, levando em consideração a “inafastável discricionariedade judicial” e desenvolvendo uma “teoria da estrutura do processo interpretativo como um processo intelectual na mente de juristas e juízes, centrada na pré-compreensão e nos círculos hermenêuticos”.289

A teoria de Esser serviu como base para Arthur Kaufmann aprimorar a hermenêutica jurídica, sustentando que a hermenêutica não é um método, mas uma filosofia da interpretação jurídica. A versão atual da hermenêutica tratada por Kaufmann conta com um enfoque específico no âmbito do Direito e, para os fins do presente trabalho, deve ser salientado que o referido autor entende que as interpretações do texto legislativo, assim como as interpretações para a caracterização dos fatos tidos como verdadeiros, não devem ser consideradas como absolutas, mas como relativas, pois são obtidas por intermédio de processos que envolvem desafios tais como os chamados círculos hermenêuticos.290

Para Pontes, esse atual da discussão hermenêutica derrubaria qualquer afirmação no sentido de haver alguma incompatibilidade entre a hermenêutica e algumas teorias da argumentação jurídica cujos ensinamentos repousem sobre uma tradição diferente da hermenêutica.291

288 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 45.

289 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 45.

290 KAUFMANN, Arthur. La comprensión hermenéutica del método jurídico. In: OLLERO, A.; SANTOS, J.A (Eds). Hermenéutica y Derecho. Granada: Comares, 2007, p. 91-111, p. 104.

291 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 45-46.

Diante das propostas da hermenêutica filosófica, verifica-se que a compreensão, a interpretação e a aplicação ocorrem em um único movimento. Tem-se, portanto, que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e a sua aplicação a um caso concreto não contempla atos separados. É, sem dúvida, relevante à compreensão de um texto que seja conhecido o sentido de cada palavra utilizada, sequências de palavras e frases e, mais especificamente, a circularidade hermenêutica empreendida entre o contexto fático e o elemento de previsão da norma. Conforme Engisch, o intérprete deve adotar um ir e vir do olhar entre a norma e o fato.292

São muitos os impactos que a hermenêutica filosófica no raciocínio jurídico em matéria de fatos, havendo uma produção doutrinária293 que se propõe à reformulação da noção de prova como demonstração “com impacto significativo na compreensão jurídica da investigação em matéria de fato”294.

Em que pese o juiz ainda contar com papel relevante na inquirição sobre a prova, não mais demanda, segundo esse paradigma, o próprio convencimento ou métodos definitivos de identificação da verdade. A construção dos juízos de fato é feita com base “em enunciados propositivos capazes de serem confirmados pela experiência empírica, contextualizado por elementos disponíveis, de maneira gradativa, aproximando-se idealmente da verdade”.