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Para que se compreenda minimamente a incidência das regras processuais sobre a prova dos fatos é necessário distinguir alguns tipos de regras sobre a prova. Béltran assinala, no âmbito das regras jurídicas sobre a prova, três subconjuntos que se relacionam com os três sentidos distintos do termo prova67, conforme exposto no item 2.3.

O primeiro subconjunto compõe-se das regras que versam sobre a atividade probatória (prova-atividade), incluindo regras que estabelecem o início e o fim da fase probatória no processo, as formas da prova, a iniciativa, dentre outras. O segundo subconjunto compõe-se das normas sobre os meios de prova (prova-meio), as quais podem se relacionar à declaração dos meios admissíveis de forma geral ou específica, podem excluir um ou outro meio de prova ou defini-los. O terceiro subconjunto é composto pelas regras pertinentes ao resultado probatório (prova-resultado), estando subdividido em duas categorias, que correspondem aos dois sistemas mais importantes de valoração da prova: o da livre valoração e o da prova legal.

Antes de aplicar a norma legal ao caso concreto, o juiz deve determinar a ocorrência ou a não ocorrência dos fatos constitutivos do caso sob julgamento e, como não poderia deixar de ser, no contexto constitucional atual, a decisão a respeito dos fatos também deve ser pública, dizendo respeito, na concepção moderna de processo e de decisão judicial, às provas trazidas ao processo em condição de publicidade e de oposição entre as partes.68

Essa compreensão pressupõe que, através dos elementos de informação presentes no processo, acessíveis criticamente ao juiz e às partes, será possível uma aproximação da verdade dos fatos ocorridos. Conforme Accantino,

Esta concepción cognitivista de la prueba y del processo es requerida por la propia definición del poder judicial como una potestad de aplicación de normas generales a casos particulares, pues para que una decisión pueda justificarse como aplicación de una norma general, es necesario que haya ocurrido en efecto un hecho que presente las características o propriedades que la norma define.69

Neste ponto, deve-se informar que extrapola os limites do presente trabalho discorrer acerca das inúmeras e multifacetadas teorias acerca da verdade. Basta apenas, neste momento, informar que se segue o entendimento de que o objetivo institucional do processo é a averiguação da verdade, adotando-se o conceito de verdade como correspondência70. Conforme Taruffo71, “uma decisão é verdadeira quando corresponde aos eventos que realmente ocorreram na situação empírica que está na base da controvérsia judicial”.

O objetivo do processo, e especialmente da prova, segundo Trento72, é a resolução justa de disputas levadas ao judiciário. Dessa forma, o benefício jurisdicional será mais efetivo quanto mais próximo da verdade estiverem os fatos (enunciados fáticos) em disputa.

Beltrán73 justifica de forma cristalina o entendimento de que objetivo institucional do

processo é a averiguação da verdade: em sendo uma das funções principais do direito o

68 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 2015 p. 67. A autora faz a percuciente ressalva de que, para além das provas aportadas ao processo, devem ser consideradas também as generalizações empíricas comumente aceitas – máximas da experiência e conhecimentos científicos – os fatos notórios e as convenções probatórias celebradas entre as partes. 69 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 201, p. 67.

70 Cf TARSKI, A. The concept of truth in formalized languages, in Logic, Semantics, Metamathematics, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1983 e TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici, Milano: Giuffrè, 1992.

71 TARUFFO, Michele. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 28.

72 TRENTO, Simone. Algunos critérios para reformar los estândares de prueba en el proceso judicial. in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 2015 p. 167

direcionamento da conduta de seus destinatários, o legislador dita normas jurídicas prescritivas aos seus destinatários a fim de que estes realizem ou se abstenham de realizar determinadas condutas. Para conseguir motivar o cumprimento das prescrições, o legislador também determina uma ameaça de sanção, a qual, para ser efetiva, exige sistemas jurídicos com órgãos específicos – juízes e tribunais – cuja função principal é justamente a determinação da ocorrência dos fatos aos quais o direito vincula consequências jurídicas e a imposição da sanção legal. Dessa forma, resta claro que são as descrições dos fatos ocorridos que devem ser incorporadas ao raciocínio judicial para efeito de aplicação das normas.

Conforme Taruffo, a regulação legal do processo e das provas não constituem um obstáculo para que se determine a verdade dos fatos no processo, desde que se pressuponha de que se trata de uma verdade relativa e ligada ao contexto no qual é estabelecida. É importante observar que pode acontecer que as normas processuais de um determinado ordenamento jurídico atuem no sentido de dificultar no todo ou em parte a “descoberta” de uma verdade aceitável segundo critérios epistemológicos válidos em um contexto mais amplo, assim como pode ocorrer que as dificuldades não decorram das normas processuais, mas de ideias, ideologias que também “adentram no contexto” e condicionam o resultado do processo.74

Deve ficar claro que afirmar que algo é a finalidade de uma atividade não implica que não existam outras finalidades ou propósitos. Ademais, afirmar que a verdade seja o objetivo institucional do processo não significa que seja o objetivo das partes do processo, mas que é o objetivo da instituição da prova. A função da prova é fornecer ao julgador conhecimento “fundado empírica e racionalmente acerca dos fatos do caso e não compilar histórias relatadas por algumas pessoas acerca desses fatos.”75

Para a satisfação dessa função epistêmica do processo e para que a decisão sobre a questão de fato possa ser considerada justificada, é necessário que a valoração das provas seja feita com base em critérios de racionalidade epistêmica, pressupondo uma apreciação crítica de confiabilidade das provas com base nas quais se pretende que o Tribunal obtenha, de forma indireta, não só o conhecimento dos fatos objeto do processo, mas também a intensidade do “nexo inferencial” que permite vincular as provas aos fatos.

Há duas dificuldades decorrentes da noção de que as premissas fáticas que fundamentam a decisão judicial precisem ser verdadeiras para que a decisão judicial seja considerada justificada, ou seja, da noção de que é necessário que haja ocorrido um fato que

74 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 79.

apresente as características definidas pela norma para que uma decisão judicial possa justificar- se como aplicação de uma norma geral76. A primeira é relativa à possibilidade de que uma proposição fática tida como provada por um juiz ou tribunal seja descoberta como falsa após o encerramento do processo. A segunda é atribuir à motivação uma tarefa impossível de ser cumprida, a de justificar a verdade das proposições fáticas afirmadas na decisão.

A primeira dificuldade pode ser resolvida por meio da distinção entre justificação da decisão como norma individual e justificação da decisão como ato. Ainda que a norma individual imposta na decisão não esteja justificada por não estar fundada em premissas fáticas verdadeiras, “a adoção dessa decisão pode ser correta, por que o juiz atuou, ao estabelecer essas premissas, na forma requerida pelas normas processuais”. Porém, essa resposta não elimina a segunda dificuldade, pois, partindo de uma concepção cognitivista do processo e da prova, as normas processuais exigem que o juiz determine a verdade do ocorrido e exponha a motivação acerca das premissas fáticas aceitas, o que constituiria na justificação de sua verdade.

Conforme Accatino, atualmente se pode distinguir dois grandes modelos de regulação do processo e da decisão sobre os fatos, os quais, de diferentes formas, buscam garantir a racionalidade epistêmica na valoração das provas. O primeiro é predominante nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, combinando liberdade probatória, entendida como a ausência tanto de regras que limitem a admissibilidade de provas relevantes como de regras de valoração, com a exigência de motivação da decisão judicial. Essa exigência de motivação da decisão sobre os fatos significa que o juiz deve tornar público por que razão as proposições fáticas tidas ou não como provadas se conectam às provas. O segundo modelo predomina nos sistemas jurídicos da “common law”, vinculado à instituição do jurado, o qual não é submetido ao dever de justificar publicamente as decisões.77

A motivação da decisão a respeito dos fatos deve estabelecer uma conexão entre as provas e a conclusão das mesmas de acordo com uma racionalidade epistêmica, ou seja, que permita verificar se o juiz proferiu sua decisão minimizando o risco de erro, o que implica em aportar razões relacionadas à fiabilidade das provas, à solidez das inferências que ligam seu resultado com as proposições a serem provadas e à suficiência das provas para considerar a conclusão aceitável. Neste ponto, deve ser salientado que a questão da suficiência das provas

76 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 80.

77 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 201, pp. 67-68.

não está sujeita apenas a critérios epistêmicos, mas também a critérios jurídicos. Estes são estabelecidos através de estândares de prova, que podem fixar parâmetros de maior ou menor exigência sobre “a base de considerações relativas à distribuição justa do risco de erro entre as partes, nas distintas classes de processos.”78

Deixando de lado, por hora, as questões relacionadas às relações entre a verdade e a função do processo, especificamente o processo civil, há a dificuldade na definição do que seria “fato”. Nesse contexto, há a dificuldade referente à distinção entre as “questões de fato” e as “questões de direito’, que serão tratadas em capítulo próprio. Além disso, há a complexa questão acerca da conexão entre o fato e o direito no contexto da tomada da decisão judicial, pois o fato em litígio somente pode ser identificado de acordo com a norma jurídica usada como critério de decisão79.