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Um problema central acerca dos fatos consiste em compreender como pode ser identificado o fato que constitui o objeto da prova com relação ao contexto que determina a descrição apropriada do fato. No âmbito do processo, o contexto em função do qual se determina qual é a descrição apropriada do fato e, assim, como é definido o objeto da prova, é a decisão judicial. Nas palavras de Taruffo, “o que se assume é que, com efeito, a determinação do fato se situa no interior da decisão judicial e que a prova está dirigida à determinação do fato.”80 Daí decorre que o objeto apropriado da prova é o fato a ser determinado, o fato que é

objeto da decisão judicial.

A análise da veracidade ou da falsidade dos fatos realizada na decisão deve partir da determinação acerca de quais fatos se trata ou da construção das narrativas referentes aos fatos da causa.

Conforme Taruffo, um processo não envolve apenas uma narrativa, mas constitui uma situação complexa onde várias histórias são construídas e contadas por sujeitos diferentes, com pontos de vista diferentes e modos de contar diferentes, estando passível de erro, de

78 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 201, p. 70.

79 TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 16. 80 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 95

incompletude, de manipulações, de reconstruções incorretas, o que pode, em último caso, ensejar graves equívocos e erros substanciais na decisão final.81

No contexto processual, a narrativa dos fatos jamais pode ser algo pré-definido, pronto e acabado, devendo ser efetivamente construída por seus autores, por intermédio de atividades complexas. Dessa forma, chama-se a atenção para alguns dos aspectos mais importantes na construção das narrativas, distinguindo três “tipos de construção”82, embora as referidas

construções acabem por se interrelacionar na formulação das narrações fáticas: trata-se da construção de categorias, da construção linguística, semântica e lógica e da construção social ou institucional.

Com relação à construção de categorias, tem-se que a construção de narrativas funda- se na atividade de categorização, cuja consequência é a construção de narrativas diferentes quando se usam categorias diferentes. Utilize-se, para fins de clareza, o exemplo da categoria “lugar”. Uma coisa é afirmar que Fato 1 e Fato 2 ocorreram no mesmo lugar, outra coisa é afirmar que ocorreram a 1 (um) metro, 1 (um) quilômetro ou 10.000 (dez mil) quilômetros de distância um do outro. A variação das distâncias implica em narrativas completamente diferentes.83

Com relação à construção linguística, semântica e lógica, tem-se que a qualidade de uma narrativa está relacionada ao emprego correto da linguagem em que é formulada.

Utilizando a expressão de Twinnings que dá nome ao presente capítulo, os fatos devem, efetivamente, ser levados a sério84. Os fatos podem ser a causa determinante da vitória ou da derrota em uma causa, dependendo se a parte consegue ou não provar os fatos que constituem o fundamento da demanda. Muitos hard cases são difíceis porque os fatos são extremamente complexos e de difícil subsunção em uma regra jurídica. Ademais, os fatos são, no contexto processual, o ponto de referência no que diz respeito às provas e à sua produção.

Nesse contexto, aponta-se que dificilmente o tema da petição inicial é considerado em sua relação com o tema da fundamentação da decisão judicial, por mais que a fundamentação deva, por definição, levar em conta os fatos narrados no processo e seja a petição inicial justamente a peça inaugural, a narrativa primeira a partir da qual outras narrativas poderão ser

81 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 55.

82 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, pp. 73-84.

83 Não se pretende em nenhum momento adentrar no estudo das categorias, o exemplo é dado apenas para ilustrar o ponto principal sobre a construção de categorias, a de que empregos diversos das categorias conduzem necessariamente a narrativas diferentes. Cf TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 74-75.

construídas – sempre de alguma forma levando a primeira em consideração e a ela conectada – em um encadeamento de atos processuais que constituirão a grande narrativa do processo em si.85

A petição inicial é a construção de uma narrativa e, embora esteja, especialmente no contexto processual, sujeita à imprecisão, falhas e manipulações na reconstrução dos fatos narrados, não deixa de ser, no story-telling jurídico processual, uma espécie de “construção interpretativa de eventos”, fornecendo uma heurística, um método para descobrir aquilo que verdadeiramente aconteceu. Porém, uma boa narrativa não precisa ser verdadeira e um processo não inclui somente uma narrativa ou um story-telling, mas constitui uma situação complexa em que várias histórias são construídas e contadas por diferentes sujeitos, o que pode levar a erros substanciais na decisão final, constituindo o problema fundamental a escolha de uma narrativa que possa ser assumida como fundamento da decisão.

Dessume-se que os fatos podem ser separados dos aspectos jurídicos da controvérsia, mesmo que resulte bastante claro que as duas dimensões são intimamente interrelacionadas. É exatamente por serem interrelacionadas que devem ser concebidas como diferentes ou, pelo menos, como diferenciáveis. Isso implica que pode haver narrativas “de fato” e, assim, que os fatos podem ser determinados separando-os da dimensão jurídica controvérsia. Neste ponto, é importante esclarecer que não se está fazendo referência à dimensão material e empírica dos fatos, mas aos “enunciados de fato”, conforme já foi tratado no tópico 2.3.