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2.6 Classificações dos fatos

2.6.3 Fatos principais, fatos secundários e fatos irrelevantes

Segundo Taruffo, uma distinção que merece especial atenção é a distinção entre fatos principais e fatos secundários. Os fatos principais, jurídicos, juridicamente relevantes ou constitutivos (e também extintivos, impeditivos ou modificativos) representam o pressuposto para a verificação dos efeitos jurídicos previstos pela norma, pois, conforme já exposto, o suposto de fato abstrato definido pela norma opera como um critério de seleção dos fatos relevantes para a aplicação da norma, dentro de um conjunto indefinido de circunstâncias. Os fatos secundários ou simples são diferentes nos fatos principais na medida em que não recebem nenhuma qualificação jurídica. Tais fatos só vêm a ter algum significado no processo caso se

95 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 19.

possa extrair deles algum argumento sobre a verdade ou a falsidade de um enunciado sobre um fato principal.96

Embora seja uma distinção útil para resolver alguns problemas, como aqueles relacionados à relevância dos meios de prova, Taruffo considera que é uma distinção que opera uma simplificação importante dos problemas que afetam a identificação do fato. No âmbito do processo, a distinção entre fatos principais e fatos secundários nem sempre é clara.

Em geral, o ponto de partida consiste na individualização de uma situação de fato que as partes, especialmente a parte autora, colocam na base da controvérsia. As alegações são constituídas por uma série mais ou menos ampla de enunciados referentes às circunstâncias de fato, pressupondo o conjunto desses enunciados uma situação de fato, selecionando, da situação de fato, alguns aspectos que as partes consideram relevantes. Apesar da generalidade e das eventuais lacunas que a individualização do fato pode apresentar, a individualização serve para que se conjecture a aplicabilidade de uma norma ao caso concreto, sendo que

Esto es lo que realizan las partes en sus alegaciones (haciendo eventualmente referencia a normas distintas) y lo que realiza el Juez en el momento en que - como suele decirse - determina el nomen iuris correcto a atribuir a la relación controvertida.97

Assim os dois tipos de fato são colocados em evidência, o primeiro tipo representado pelas circunstâncias do mundo material sobre as quais as alegações tratam e o segundo tipo representado pelo “suposto de fato” delineado pela norma que se conjectura como aplicável. Portanto, em um primeiro sentido, o “fato principal” equivale à conjectura98 de que, na situação

alegada, há circunstâncias potencialmente idôneas para produzir os efeitos previstos pela norma que está sendo utilizada como critério de seleção e de qualificação. Em um segundo sentido, o fato principal equivaleria à conjectura verificada, à situação que se obtém como resultado da decisão quando o fato está provado. Assim, nesse segundo sentido, o fato principal operaria como um pressuposto da decisão no direito.

Estabelecido, portanto, que o fato principal é uma hipótese de decisão a ser verificada mediante as provas, atente-se a outras circunstâncias que compõe a situação e que estão a ela vinculados. Porém, “essas circunstâncias não podem ser analiticamente predeterminadas, nem

96 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 119-120.

97 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 121.

98 Conforme esclarece o autor, trata-se de conjecturas acerca da situação de fato e da possível aplicação de uma norma a essa situação, pois os fatos concretos são apenas alegados, afirmados como verdadeiros, ainda que não tenham sido determinados como verdadeiros. As operações a respeito das quais se está a tratar no presente tópico são úteis exatamente para estabelecer quais fatos devem ser provados em juízo para que a controvérsia possa ser decidida segundo a norma específica.

são tampouco predetermináveis, já que nenhuma situação de fato pode ser descrita completamente”99. O fato principal pode funcionar como um critério de seleção sobre esse

conjunto indeterminado, podendo ocorrer que existem algumas circunstâncias que, caso determinadas como verdadeiras, possam ser empregadas como “premissas de inferências cuja conclusão verse sobre a existência ou inexistência do fato principal”100, ou seja, uma

circunstância de fato pode ser logicamente relevante para a determinação do fato principal, podendo ser utilizada como elemento para prova inferencial do fato principal. Esses são, precisamente, os fatos secundários.

Haveria ainda, nesse contexto, uma outra categoria de fatos, a dos “fatos irrelevantes”, que são aqueles que pertencem empírica ou historicamente à situação de fato controvertido, mas que resultam jurídica ou logicamente irrelevantes sob os critérios aplicados, pois não integram nenhum fato principal e não são úteis aos efeitos probatórios que caracterizam o fato secundário.101

Muitos fatores conceituais, cognoscitivos, perspectivas culturais, dentre outros, são consideradas circunstâncias irrelevantes mesmo que, na realidade, sejam indispensáveis para a reconstrução dos fatos. Esses fatores não figuram em primeiro plano porque não estão discussão, constituindo o “contexto implícito da reconstrução do fato”102. Conclui-se, assim,

que a noção de relevância ou de irrelevância são relativas e variáveis em relação à forma é definido o problema da determinação do fato no processo.

Por fim, deve-se salientar que essa classificação (suposto de fato abstrato – fato principal – fato secundário – fato irrelevante) deve ser entendida, uma vez que situa no contexto do processo, em sentido dinâmico.

99 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 122-123.

100 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 123.

101 Para Taruffo, a categoria dos “fatos irrelevantes” deve ser levada em consideração pelo menos para uma análise fática completa da controvérsia. Por outro lado, sua irrelevância seria estritamente relativa aos critérios de relevância utilizados na análise e na construção do caso, bastando imaginar a aplicação de uma norma diferente à mesma situação de fato para encontrar a possibilidade de que uma circunstância que era irrelevante passe a ser qualificada como “fato principal” ou desempenhe o papel de “fato secundário”. Assim, “en un cierto sentido, se puede decir entonces que el conjunto indeterminado y residual de las circunstancias irrelevantes es, en realidad, una especie de «reserva de hechos» potencialmente relevantes, a la que se puede recurrir (o que, en cualquier caso, entra en juego) en el momento en que se da un cambio en el criterio de relevancia, es decir, en la norma que se usa como sistema de referencia para el análisis del caso concreto.”. TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 124.

102 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 127.

3 DA (IN)SEPARABILIDADE DAS QUESTÕES DE FATO E DAS QUESTÕES DE DIREITO.

Para fins de melhor fundamentar a necessidade da construção de um modelo normativo específico para fundamentação do juízo de fato no Direito Brasileiro, é proveitoso revisitar noções importantes acerca da conhecida e clássica dicotomia estabelecida entre questões de fato e questões de direito.

Conforme Troper,

Fato e lei são dois conceitos que são habitualmente opostos um ao outro. Assim, o juiz lida com questões de fato e questões de direito separadamente; o administrador com legalidade e depois com a conveniência, o cientista com o que deveria acontecer ou o que realmente acontece. Essa oposição é às vezes apresentada como uma distinção lógica e às vezes como uma distinção ontológica entre Sein e Sollen.103

A distinção entre fato e lei é múltipla e tem lugar na maioria dos ramos do Direito, parecendo mesmo ser inerente a este. Dessa forma, não é possível, diante da necessidade de delimitar o presente trabalho, abranger todas as áreas do direito. Portanto, ainda que revisitando, por oportuno, alguns conceitos clássicos da Teoria Geral do Direito a respeito da temática, a distinção entre fato e direito será feita sempre na perspectiva da distinção entre questão de fato e questão de direito no contexto da recorribilidade da decisão judicial, o que diz respeito à fundamentação da decisão judicial, relacionando-se, por fim, à fundamentação do juízo de fato no âmbito do processo civil brasileiro.

A princípio a distinção parece não apresentar maiores dificuldades. Porém, trata-se de assunto complexo, com diversos desdobramentos e dificuldades. A expressão “distinção entre fato e direito” abrange tantos aspectos que não se pode deixar de buscar, na sua origem, não só os significados principais, mas os significados que interessam ao presente trabalho.

Nesse contexto, uma abordagem que leve em consideração aspectos históricos do tratamento destinado ao fato e ao direito traz contribuições importantes, mormente em sendo a questão da separação do fato e do direito um problema de teoria geral do Direito.104 Não se pretende, até pelas limitações e objetivos do presente trabalho, proceder-se à uma análise pormenorizada de todas as escolas do pensamento, mas apenas, conforme afirma Knijinik, no sentido de demonstrar como a lógica introduzida por determinadas escolas, tal como Escola da Exegese, não pode persistir. Portanto, pretende-se apenas perpassar, de maneira rápida e pontual, a forma como algumas das principais escolas enfrentaram a questão da separação (ou

103 TROPER, Michael. The Fact and the law.in NERHOT, Patrick (Editor) Law, interpretation and reality. Essays in Epistemology, Hermeneutics and Jurisprudence. Law and philosophy library, 1953.

104 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 53-57.

unidade) entre o fato e o direito, apontando fragilidades e influências relevantes ao presente trabalho.

Partindo da perspectiva da modernidade, notadamente do chamado paradigma cognitivista, analisando como a escola da exegese, a jurisprudência dos conceitos, a escola do direito livre e a jurisprudência dos interesses trataram a separação entre fato e direito, até as perspectivas trazidas pela hermenêutica filosófica, buscar-se-á assentar algumas premissas históricas relevantes, para, no tópico seguinte, analisar diferentes ideias mais atuais, desde as que defendem hodiernamente a absoluta inseparabilidade entre as questões de fato e as questões de direito até as que defendem a utilidade da distinção.

Tem-se como hipótese que o tratamento historicamente recebido pela questão de fato tem implicações sobre a atual crise/ausência de fundamentação do juízo sobre os fatos do processo. Para evidenciar tal aspecto, é necessário desenvolver a ideia em alguns níveis: um nível mais histórico, que perpasse as principais ideias de algumas escolas, um nível mais epistemológico, com um recorte sobre as ideias de alguns autores contemporâneos que enfrentaram o problema sob diferentes perspectivas (com diferentes abordagens sobre a forma de conhecimento do fato e do direito) até uma perspectiva que trate especificamente do direito probatório nos moldes delineados pelo Código de Processo Civil vigente em consonância com o modelo constitucional de processo.

3.1 Do paradigma cognitivista à hermenêutica filosófica. Da cisão entre fato e direito ao