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Processo e racionalidade: a necessidade de um modelo normativo para fundamentação do juízo de fato

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO

ANGÉLICA MOTA CABRAL

PROCESSO E RACIONALIDADE: A NECESSIDADE DE UM MODELO NORMATIVO PARA FUNDAMENTAÇÃO DO JUÍZO DE FATO

FORTALEZA 2020

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ANGÉLICA MOTA CABRAL

PROCESSO E RACIONALIDADE: A NECESSIDADE DE UM MODELO NORMATIVO PARA FUNDAMENTAÇÃO DO JUÍZO DE FATO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Ordem Jurídica Constitucional Orientadora: Profª. Dra. Juliana Cristine Diniz Campos

FORTALEZA 2020

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___________________________________________________________________________

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ANGÉLICA MOTA CABRAL

PROCESSO E RACIONALIDADE: A NECESSIDADE DE UM MODELO NORMATIVO PARA FUNDAMENTAÇÃO DO JUÍZO DE FATO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Direito. Área de concentração: Ordem Jurídica Constitucional. Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Profª. Dra. Juliana Cristine Diniz Campos (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará

_________________________________________ Prof. Dr. Juvêncio Vasconcelos Viana Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________

Prof. Dr. Nagibe de Melo Jorge Neto

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Para Niceia, Claudia e Rafael, a tríade de amor que me sustenta.

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AGRADECIMENTOS

A jornada do mestrado, apesar de demandar períodos de solidão e isolamento, não foi solitária. Pelo contrário, os últimos dois anos coincidiram com o aprendizado de que nada se faz sozinho e de que é importante saber quem está ao seu lado.

Agradeço a Deus, especialmente por constantemente ampliar e modificar em mim a compreensão do seu amor e da sua graça.

Agradeço à minha família, especialmente à minha avó e à minha mãe, que estão sempre ao meu lado, sendo fonte de força, estímulo, compreensão e muito amor. Ao meu pai, é um prazer enorme poder, efetivamente, agradecê-lo. Aos meus tios Júnior, Eduardo, Gláucia e Paulo e primos Deborah, Paulo Victor, Fernando e Lima Neto, vocês são parte de mim em tudo que eu fizer e sempre terei motivos para agradecê-los. À minha “nova” tia Luíza, que chegou à minha vida para mostrar que o amor multiplica e frutifica. Aos meus “novos” primos Miriam e Aluísio, por me mostrarem que os laços de sangue importam, mas o que importa mesmo é o sentimento de ter encontrado almas que compreendem a sua.

Agradeço aos meus amigos do “Our People”, Ellen, Pedro e Nathália, que, todos os dias, há anos, são sinônimo de amor, humor e amparo, que vibraram desde a aprovação na seleção até à finalização da dissertação e que acompanharam, mesmo em cidades diferentes do Brasil, todos os percalços dessa pequena jornada. Às minhas amigas Dani e Patrícia, que me apoiam em tudo, pela certeza de saber que vocês estão comigo. Ao meu querido amigo gaúcho Rafael Caselli, que tanto me ajudou fornecendo materiais e trocando ideias e que está escrevendo uma tese revolucionária para o processo civil brasileiro. Ao meu amigo Roberto Gouveia, presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, que, desde antes do meu ingresso no mestrado, estimulou meus estudos e pesquisas. Às minhas amigas Janaína Noleto, Micheline Forte e Paula Saleh, por compartilharem o amor pelo processo e por serem sempre fonte de inspiração.

Agradeço, de forma especial, ao meu marido Rafael, meu melhor amigo e o companheiro de vida mais incrível que eu poderia ter. Sem você, eu não teria passado incólume por todos os desafios dos últimos dois anos, que aconteceram em vários níveis da vida. Sem você, sem a sua alegria contagiante e genuína, o seu modo bonito de ver a vida e as pessoas, a sua calma, a sua praticidade ao resolver problemas, o seu abraço, o seu humor, a sua sabedoria em saber diferenciar os exatos momentos em que preciso de calmaria daqueles em que preciso de tempestade, eu não seria quem sou hoje e não tenho dúvidas de que seria bem menos feliz. Sua presença, desde a seleção do mestrado, passando por todas as etapas, foi absolutamente

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determinante e eu só posso te agradecer todos os dias por tudo, inclusive por esse sentimento de euforia e de esperança pelos anos que virão. Eu amo você.

Agradeço aos meus colegas de mestrado, o que faço na pessoa do Lucas Jereissati, que conheci ainda na fase de seleção e que se tornou um amigo querido.

Agradeço ao Professor Michele Taruffo, maior processualista que já tive o prazer de conhecer e que foi aquele que despertou o interesse pelo tema da dissertação. Seu conhecimento só é ultrapassado pela sua generosidade e sua simplicidade e sinto-me extremamente privilegiada pelas oportunidades de, enquanto simples mestranda, debater algumas ideias com a minha maior referência acadêmica.

Agradeço aos meus professores, especialmente à Professora Juliana Diniz, a quem pude acompanhar em duas disciplinas e que se tornou minha orientadora, ao Professor Juvêncio, referência absoluta em Direito Processual, ao Professor Gustavo Cabral, a quem admiro, desde a graduação, pelo seu comprometimento absoluto com a academia, ao Professor Hugo Segundo, cuja disciplina de Epistemologia faz parte de um capítulo muito especial do mestrado, pois não consigo imaginar forma melhor de ensinar Epistemologia senão fazendo os alunos amarem o aprender sobre aprender, à Professora Raquel Machado, que é inspiração no amor ao conhecimento.

Agradeço à minha orientadora Juliana Diniz e aos membros da banca Professor Juvêncio Vasconcelos e Professor Nagibe Melo. Fico extremamente lisonjeada por contar, na avaliação do presente trabalho, com profissionais que admiro em tantos níveis.

A todos os que compõem a minha amada Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, onde terminei minha graduação, termino agora o meu mestrado e para onde ainda desejo retornar em um futuro próximo.

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Nada pode atestar que o real é real, nada senão o sistema de ficção no qual ele desempenhará o papel de real.

Alain Badiou, O Século.

A virtude não é tão fácil como o vício, mas pode ser ajudada.

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RESUMO

A Constituição de 1988 impõe o dever de fundamentação das decisões judiciais, inclusive do convencimento do juiz sobre fatos relevantes. Apesar de o Código de Processo de Civil de 2015 ter trazido novas normas acerca da fundamentação da decisão judicial no que diz respeito às questões de direito, ainda não há, no ordenamento jurídico pátrio, parâmetros normativos que balizem devidamente a fundamentação do juízo de fato. Partindo dessa problemática, buscando uma maior racionalização da decisão judicial, o presente trabalho defende a necessidade de um modelo normativo para fundamentação do juízo de fato. Para tanto, analisa o estudo jurídico do fato, a diferenciação histórica entre questões de fato e questões de direito e sua possível superação no modelo de processo cooperativo, passando pela análise da teoria da argumentação e da teoria hermenêutica para defender, dentro da perspectiva do positivismo normativo, que a positivação de parâmetros para fundamentação do juízo de fato é a melhor forma de atender ao modelo constitucional de processo delineado pela Constituição de 1988.

Palavras-chave: decisão judicial; juízo de fato; fundamentação da decisão judicial; prova;

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ABSTRACT

The 1988 Constitution imposes a duty to substantiate court decisions, including the conviction of the judge about relevant facts. Although the 2015 Civil Procedure Code has brought new rules on the grounds of the judicial decision with regard to questions of law, there are still no normative parameters in the national legal system to properly substantiate the factual basis. Starting from this problematic, seeking a greater rationalization of the judicial decision, the present work defends the need for a normative model to ground the judgment about facts. To this end, it analyzes the legal study of fact, the historical differentiation between questions of fact and questions of law and their possible overcoming in the model of cooperative process, going through the analysis of argumentation theory and hermeneutic theory to defend, within the perspective of normative positivism, that the positivation of parameters to substantiate the judgment is the best way to insure the constitutional model of process outlined by the 1988 Constitution.

Keywords: procedural law; judicial decision about facts; legal reasoning; evidence; normative

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 12

2 “LEVANDO OS FATOS A SÉRIO” ... 19

2.1 O fato jurídico ... 21

2.2 O fato como objeto de estudo no âmbito do direito probatório ... 28

2.3 Fatos, enunciados de fato e meios de prova ... 31

2.4 Da relação entre prova, verdade e regras processuais ... 36

2.5 A narração dos fatos ... 40

2.6 Classificações dos fatos ... 42

2.6.1 Fatos brutos, fatos sociais e fatos institucionais ... 42

2.6.2 Fatos determinados valorativamente ... 43

2.6.3 Fatos principais, fatos secundários e fatos irrelevantes ... 45

3 DA (IN)SEPARABILIDADE DAS QUESTÕES DE FATO E DAS QUESTÕES DE DIREITO. ... 48

3.1 Do paradigma cognitivista à hermenêutica filosófica. Da cisão entre fato e direito ao círculo hermenêutico ... 49

3.2 Da função e da natureza da distinção ... 56

3.3 Fatos e direito: entre a superação e a funcionalidade da distinção ... 64

3.4 Ausência de parâmetros normativos para fundamentação do juízo de fato ... 71

4 DA NECESSIDADE DE UM MODELO NORMATIVO PARA FUNDAMENTAÇÃO DO JUÍZO DE FATO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO ... 79

4.1 O problema hermenêutico ... 81

4.2 A perspectiva lógico-argumentativa ... 86

4.3 Das contribuições da hermenêutica filosófica ... 91

4.4 Por que um modelo normativo para fundamentação do juízo de fato ... 99

4.5 Da crise de efetividade do art. 489 do CPC/2015, do livre convencimento motivado e da persuasão racional ... 107

4.6 A construção de um modelo epistemologicamente adequado ... 115

5 CONCLUSÃO ... 118

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1 INTRODUÇÃO

É amplamente reconhecido o papel primordial da fundamentação das decisões judiciais em um Estado Democrático de Direito, constituindo um dever constitucional imprescindível. É através da obrigatória fundamentação das decisões judiciais que diversos dos valores constitucionais relativos ao processo judicial podem alcançar sua realização concreta - como, por exemplo, o contraditório, o princípio da legalidade, a imparcialidade do juiz - sendo noção intrinsecamente atrelada ao devido processo legal.

A Constituição Federal de 1.988, em seu art. 93, IX1, impõe explicitamente o dever de fundamentação das decisões judiciais, delineando-o como verdadeira garantia constitucional. Nesse sentido, pode-se afirmar que assegurar a racionalidade das decisões é um objetivo crucial do Estado Democrático de Direito e o estabelecimento de critérios objetivos com base nos quais se possa avaliar se determinada decisão é ou não racional, se atende ou não ao comando veiculado na norma contida no art. 93, IX da CF, constitui um dos maiores desafios da ciência jurídica contemporânea.

Por um lado, a doutrina processual ainda apresenta bastante carência no sentido de apontar critérios de correção e de racionalidade, a fim de possibilitar uma avaliação minimamente satisfatória das decisões judiciais no que diz respeito à interpretação do texto legislativo.2 Por outro, talvez a revelar a insuficiência dos estudos da temática no contexto brasileiro, a legislação processual civil apresenta poucos critérios para fundamentação da decisão, praticamente sem tocar a fundamentação sobre os fatos e, os poucos critérios que apresenta têm caído no inocuidade, especialmente pela renitência dos Tribunais em abandonar o paradigma do livre convencimento motivado.

No estágio atual da legislação processual, especialmente com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a fundamentação da decisão judicial ganhou algum destaque, especificamente se tratando do chamado “juízo de direito”, é dizer, a fundamentação das questões eminentemente jurídicas.3

1 Art. 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) 2 PONTES, Fernando Demétrio de Sousa Pontes. Fundamentação das decisões judiciais e interpretação jurídica: estudo comparativo entre as contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer e do Modelo Toulmin de argumentação racional. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2017, p. 13.

3 Reconhece-se que o art. 489, §1, IV do CPC/2015, representou algum avanço no tratamento das questões de fato, pela previsão de nulidade, por vício de fundamentação, de decisão que não enfrentar os argumentos deduzidos no

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É de ampla sabença a relação entre normas e fatos, de um lado, e a relação entre atuação jurisdicional e normas, por outro, a tornar compreensível a noção de que o juiz, para chegar a uma decisão, deve definir a ocorrência ou a não ocorrência de certos fatos, sendo necessário determinar quais fatos seriam esses.

Neste ponto, surgem inúmeras problemáticas. Pode-se citar, no presente momento, duas principais. Uma diz respeito ao contexto de incerteza em que o processo se desenvolve, incerteza que é ainda mais acentuada quando o juiz é chamado a decidir sobre os fatos antes mesmo da chamada instrução probatória, tomando decisões com base no que a doutrina costuma chamar de “cognição sumária”. Porém, a incerteza nem de longe se dissipa pela mera ocorrência de instrução processual, quando o juiz, em tese, terá condições de tomar uma decisão calcado na chamada “cognição exauriente”. Pode-se afirmar que, durante todo o processo, a decisão judicial sobre os fatos é produzida em um contexto de incerteza, não se podendo alcançar um conhecimento infalível acerca das proposições sobre os fatos que são consideradas provadas. Porém, conforme aduz Béltran, a constatação de que o juiz se encontra em um contexto de incerteza na tomada de decisões não implica que as regras da racionalidade não sejam aplicáveis, nem que deva existir um conceito específico de prova jurídica distinto e independente da noção de prova usada nos outros âmbitos do conhecimento.4

Outra problemática diz respeito ao momento da ocorrência dos fatos. Sabe-se que os fatos não se incorporam nos procedimentos judiciais na sua realidade empírica ou material, pois, em geral, já ocorreram e pertencem, portanto, ao passado. Em geral, as dificuldades envolvidas na questão de os fatos encontrarem-se no passado no momento da decisão são lembradas pela literatura que trata da prova judicial, inclusive através da comparação do trabalho do juiz com o trabalho do historiador5. Porém, deve ser observado que, em muitas situações, o juiz não só terá que determinar (valorar a prova) a ocorrência de fatos que estão ocorrendo no presente, mas também terá que “prever” a ocorrência de fatos futuros.

processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Porém, conforme se pretende demonstrar, a previsão ainda é insuficiente a garantir uma decisão judicial devidamente fundamentada. Cf CPC/2015 art. 489. São elementos essenciais da sentença: (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.

4 FERRER BÉLTRAN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 26.

5 A comparação da atividade do juiz coma atividade do historiador é comum entre juristas, tendo sido apresentada pelo próprio Calamandrei (CALAMANDREI, Piero. Il giudice e lo storico. Rivista de Diritto Processuale Civile, vol. 16, n. 1, p. 105-128, Padova, 1939, p. 111-113), embora com algumas restrições. Para Taruffo, a comparação entre juiz e historiador é inócua, não sendo capaz de indicar procedimento algum para conhecer os fatos, nem características gerais dos objetos cognoscíveis, ou esclarecer o significado dos dados, em nada contribuindo para a análise do juízo de fato, por que não analisa a estrutura lógica do procedimento. (TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trad. Jordi Ferrer Béltran. Madrid: Editoral Trotta, 2002, p. 310-315.

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Há uma grande diversidade de situações a dificultar a adoção de um esquema único de análise para as relações entre fatos, normas e decisão judicial. Por isso mesmo, sempre existirão casos periféricos, mas não menos importantes, onde a determinação acerca de quais fatos devem ser levados em consideração pelo juiz, como condição necessária de sua atuação jurisdicional, não se enquadra em qualquer esquema primário que venha a ser adotado, mesmo por que o sistema do livre convencimento motivado é considerado insuficiente para a fundamentação da decisão em matéria de fato.

De toda forma, sabe-se que as normas estatais condicionam a sua incidência concreta à ocorrência de determinados fatos, descritos nas próprias normas. Assim, por exemplo, quando um juiz é convocado a declarar a existência ou não de um direito subjetivo, ou seja, naquelas situações em que a sua atuação jurisdicional consiste em proferir uma declaração nesse sentido, ele deve se posicionar sobre a ocorrência ou não dos chamados “fatos constitutivos do direito”6,

vale dizer, os fatos previstos na norma que assegura o direito subjetivo, como condição de sua incidência concreta.

Como se vê, em todas essas circunstâncias, é em razão da própria estrutura das normas jurídicas e do papel desempenhado por essas normas na função jurisdicional, que o juiz deve, como condição indispensável de sua atuação jurisdicional, formar um convencimento (formar deliberadamente uma crença) sobre a ocorrência ou não de determinados fatos, mais precisamente os fatos descritos na norma como condição da incidência concreta delas.

Esses fatos, que podem ser denominados fatos primariamente relevantes, são aqueles sobre cuja ocorrência o juiz deve formar um convencimento. Diz-se que estes fatos são primariamente relevantes porque há outros fatos sobre a ocorrência dos quais o juiz também deve formar convencimento, como etapa do processo lógico de formação de seu convencimento sobre fatos primariamente relevantes. Aos fatos deste segundo grupo, convém denominar fatos secundariamente relevantes.

Quando é racional ou não racional acreditar que um fato ocorreu ou não – são problemas que não são apenas jurídicos, pois se relacionam com a possibilidade de conhecimento dos fatos – e às condições em que se pode conhecer os fatos.

6 Note-se que em que pese o fato constitutivo ser uma condição necessária do direito subjetivo, não é suficiente para a existência do mesmo e a declaração de inexistência pode ser fundamentada sem que o juiz forme convicção alguma sobre os fatos constitutivos. O juiz pode admitir hipoteticamente como verdadeira a proposição descritiva do fato constitutivo sem formar uma crença sobre a mesma, portanto, apenas para argumentar que mesmo sendo verdadeira a proposição, a ocorrência daqueles fatos não justifica a declaração de existência do direito, em razão, por exemplo, da falta de subsunção destes fatos na previsão normativa. Por outro lado, o juiz pode se convencer da existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito. Na medida em que a noção de fatos primariamente relevantes também inclui estes fatos, embora torne o discurso um pouco mais complexo, este segundo caso não traz nenhuma exceção ao que se diz no texto.

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Guerra aponta que em, qualquer ordenamento jurídico e em qualquer tipo de processo judicial em que se faça necessária a prova judicial de fatos relevantes, o estudioso se depara com duas ordens de problemas.7 O autor denomina os problemas do primeiro grupo de problemas ético-normativos do direito probatório, uma vez que sua solução implica, grosso modo, uma interpretação e aplicação de normas relativas à prova judicial, as quais realizam escolhas fruto de opções ideológicas, sobre o que é lícito e/ou correto fazer. Mais precisamente, a solução destes problemas não diz tanto respeito ao que é racional acreditar, uma vez que tais problemas surgem, principalmente, na falta de elementos para a formação racional de uma crença judicial sobre determinado fato. Por isso mesmo, a solução deles se faz através de uma decisão de cunho acentuadamente ético, ou seja, uma decisão, em última análise, sobre o que é justo acreditar como tendo ocorrido. Já aos problemas do segundo grupo, o autor denominou de “problemas epistêmicos” relativos ao direito probatório, uma vez que sua solução implicaria, em última análise, na adoção de um modelo sobre o que é racional acreditar como tendo ocorrido.

Nessa ordem, vale observar que o CPC/2015 foi omisso ao não explicitar, em seu art. 489, entre as hipóteses em que uma decisão é de ser considerada como não fundamentada, a omissão do juiz quanto à indicação das “razões da formação de seu convencimento” quanto às questões de fato que tenha resolvido na mesma decisão – circunstância que, por si só, autoriza inferir que o rol dessas hipóteses é meramente exemplificativo.

Na medida em que o juízo de fato constitui parte importantíssima da decisão judicial, a ausência de fundamentação em relação aos mesmos constitui um descumprimento da norma constitucional que determina a fundamentação da decisão judicial, de onde se depreende que o convencimento judicial sobre os fatos primários deve ser fundamentado. Nenhuma decisão pode ter como fundamento uma premissa que não seja, por sua vez, fundamentada. Dessa forma, parte indispensável da fundamentação das decisões judiciais, cuja obrigatoriedade é imposta, como se sabe, no art. 93, IX, da CF, vem a ser aquela destinada a fundamentar o convencimento do juiz sobre os fatos relevantes, ou seja, a fundamentação do juízo de fato, constituindo este o ponto de interseção entre a teoria da decisão judicial e a teoria da prova judicial.

Por um lado, há uma lacuna normativa acerca de requisitos mínimos para fundamentação do juízo de fato, bem como um deficitário tratamento da temática na própria doutrina processual brasileira. Observa-se a existência de normas no ordenamento que, direta

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ou indiretamente, disciplinam, em algum aspecto, a formação do convencimento judicial. Estas normas compõem, assim, o que se pode denominar disciplina jurídica do convencimento judicial sobre fatos relevantes (o juízo de fato) e deveriam fornecer um modelo normativo de fundamentação do juízo de fato, mas se revelam insuficientes para tanto. Por exemplo, na disciplina jurídica do convencimento judicial não são explicitados critérios objetivos de valoração das provas. Da mesma forma, o problema do grau mínimo de confirmação de um determinado convencimento ou juízo de fato – o problema dos chamados standards probatórios –não recebe nenhum tratamento.

Tem-se como hipótese que a ausência de tratamento da temática diz relaciona-se, pelo menos em parte, à ausência de estudos e reflexões sobre os fatos jurídicos, em sua dimensão processual. Tratar sobre fatos no âmbito do Direito apresenta dificuldades de diversas ordens, sendo o fenômeno jurídico extremamente complexo, relacionando-se com a sociedade, com a cultura, com a economia, com a política, com a filosofia e com diversas outras áreas do conhecimento, tornando-se ainda mais complexo dentro do contexto da pós-modernidade, da globalização, do hiperconsumismo, do multiculturalismo.

Por essa razão, o presente trabalho busca, no primeiro capítulo, estabelecer premissas relevantes acerca do tratamento do fato jurídico, explicitando suas noções tradicionais e trazendo um aparato histórico acerca do surgimento da “questão de fato” enquanto questão invocada pelos Tribunais como não condizente com sua competência de uniformização do Direito. O segundo capítulo aborda, ainda, o fato como objeto de estudo, a importante relação – e diferenciação – entre fatos, enunciados de fato e meios de prova, no sentido de tentar esclarecer o que é, efetivamente, provado no processo e o conhecimento que é passível de apreensão pelo julgador, de acordo com as regras processuais, passando rapidamente pela relação entre prova e verdade. Enfatiza, ainda, a narração dos fatos, como dimensão a não ser olvidada, especialmente no campo do processo, onde a construção de narrativas é ponto central, e classificações dos fatos consideradas importantes por esclarecerem melhor os diversos tipos de fato e os correspondentes papéis que podem assumir no contexto da tomada da decisão judicial.

O terceiro capítulo se debruça sobre a (in)separabilidade das questões de fato e das questões de direito, revisitando noções sobre essa clássica dicotomia. Partindo da perspectiva da modernidade, notadamente do chamado paradigma cognitivista, analisando como a escola da exegese, a jurisprudência dos conceitos, a escola do direito livre e a jurisprudência dos interesses trataram a separação entre fato e direito, até as perspectivas trazidas pela hermenêutica filosófica, buscar-se-á assentar algumas premissas históricas relevantes, para, no

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tópico seguinte, analisar diferentes ideias mais atuais, desde as que defendem hodiernamente a absoluta inseparabilidade entre as questões de fato e as questões de direito até as que defendem a utilidade da distinção, tendo como hipótese que o tratamento historicamente recebido pela questão de fato tem implicações sobre a atual crise/ausência de fundamentação do juízo sobre os fatos do processo.

A partir das premissas assentadas pelos capítulos anteriores, o quarto capítulo se propõe a defender a positivação de um modelo para fundamentação do juízo de fato e, para tanto, apresenta conceitos gerais tanto da teoria da argumentação como da hermenêutica filosófica, a fim de estabelecer que, sem descartar as contribuições advindas das referidas ideias, as mesmas não contam com aparato suficiente para, por si só, garantir a fundamentação das decisões judicias sobre matéria de fato, especialmente por que suas maiores contribuições se dão tendo como base um texto legislativo, exigência do estado democrático de direito. O capítulo quatro busca, assim, fundado nas ideias do positivismo normativo, especialmente de Friedrich Schauer, defender que é imperativa a positivação de regras para fundamentação do juízo de fato. Ademais, demonstra a crise de efetividade do art. 489, §1º do CPC/2015, pela análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, afirmando que esta Corte Suprema não abandonou o paradigma do livre convencimento motivado, apesar de o CPC/2015 apontar para a superação desse paradigma em prol do modelo da persuasão racional.

O presente trabalho não se propõe à construção de um modelo, mas a defender a sua construção e a sua normatização. A importância da elaboração do referido modelo normativo diz respeito diretamente à realização de valores constitucionais processuais fundamentais, constituindo um conjunto de critérios que devem ser seguidos pelo juiz na formação de seu convencimento sobre os fatos relevantes. Este conjunto de critérios também serve, obviamente, para avaliar se decisão já tomada observou ou não este dever.

Aponta-se, ainda, para a necessidade de que o modelo normativo a ser adotado seja epistemologicamente adequado, devendo ser desenvolvido a partir do estudo das teorias de justificação epistêmica, superando-se, através do diálogo entre Direito e Epistemologia, as deficiências da disciplina jurídica do convencimento judicial sobre fatos relevantes.

Tem-se como hipótese que as teorias epistemológicas e a fragmentária disciplina jurídica do convencimento judicial, se postas em contato, tendem a um “equilíbrio reflexivo”: a partir da delineação da disciplina normativa relativa ao convencimento judicial, inclusive nos seus pontos falhos, e da revisão das principais teorias epistemológicas sobre a justificação epistêmica, é possível fazer uma apreciação dessas teorias, de modo a descartar aquelas que se revelem incompatíveis com a disciplina mencionada. As teorias remanescentes, por sua vez,

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permitem um significativo enriquecimento desta disciplina normativa e indicam os elementos posteriores do ordenamento jurídico, nomeadamente da ordem constitucional, que podem ser utilizados para construir um modelo mínimo de fundamentação do juízo de fato. Diante da insuficiência e da indispensabilidade tanto das normas jurídicas relativas à matéria, como das teorias epistemológicas pertinentes para fornecerem tal modelo, justifica-se que a construção deste modelo se dê através de um produtivo diálogo entre Direito e Epistemologia.

Dessa forma, este diálogo entre Direito e epistemologia permite, num primeiro momento, que as deficiências da disciplina jurídica do convencimento judicial sobre fatos relevantes sejam superadas. No entanto, disso resultaria um excesso de soluções, a ser devidamente eliminado com um exame das alternativas à luz de outros elementos do ordenamento jurídico, chegando-se a um modelo de fundamentação do convencimento judicial que leve na devida consideração os dados normativos e as teorias epistemológicas.

Um modelo normativo de fundamentação do juízo de fato vem a ser ferramenta indispensável ao adequado cumprimento de uma das mais relevantes normas constitucionais, a saber: aquela que impõe a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX). O correto atendimento desta exigência, repita-se, é imprescindível para que se possa, entre outras coisas, aferir o respeito a outros valores constitucionais fundamentais, tais como a legalidade, a imparcialidade do juiz, o contraditório e outros. Além disso, o modelo serve, sem dúvida, para incrementar a racionalidade das decisões judiciais em matéria probatória, por servir aos operadores jurídicos como instrumento da análise crítica de tais decisões e a consequente consolidação de uma cultura de elevada racionalidade judicial.

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2 “LEVANDO OS FATOS A SÉRIO”8

Tratar sobre fatos remete a uma noção de concretude, de vinculação ao “real”, à “realidade”, ao “empírico”, o que muitas vezes parece passar longe dos conceitos abstratos relacionados à processualística civil, com suas ficções jurídicas e sua realidade muitas vezes eminentemente “paralela”, erigida para funcionar dentro do contexto específico do processo judicial, o qual, a depender da escola processual seguida, tem finalidades tão diversas quanto gradativamente dissociadas do que se comumente denomina de “realidade dos fatos”.

A própria expressão “realidade dos fatos” é problemática, tendo em vista que requer o manejo de noções referentes à realidade, à verdade e dos próprios fatos em si, suscitando questões de ordem filosófica, epistemológica, científica, dentre outras.

Tratar sobre fatos no âmbito do Direito apresenta dificuldades próprias. O Direito já é, em si, um fenômeno extremamente complexo,9 relacionando-se com a sociedade, com a cultura, com a economia, com a política, com a filosofia e com diversas outras áreas do conhecimento, tornando-se ainda mais complexo dentro do contexto da pós-modernidade, da globalização, do hiperconsumismo, do multiculturalismo.10

O modo de percepção dos fatos pelo Direito certamente é afetado pelos fenômenos sociais, ainda que tais fenômenos não passem, de maneira instantânea, a integrar a esfera da juridicidade.11 No âmbito do processo civil brasileiro, ainda que a Constituição Federal e o Código de Processo Civil constituam um marco comum de aplicação em todo o território nacional, não há consenso sobre aspectos importantes do processo, não havendo unidade de pensamento pela doutrina brasileira, havendo várias escolas de processo.12

8 A expressão foi retirada do artigo de William Twinning “Taking facts seriously”, contido na obra Rethinking

Evidence: Exploratory Essays. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 14-34.

9 ZIPPELIUS, Reinhould. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 25, apud JOBIM, Marco Felix. Cultura, escolas e fases metodológicas do Processo. 3.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 21. Vale a pena transcrever o seguinte trecho: “O direito é uma estrutura complexa. E no entanto voltamos sempre e cedemos à tentação de ideias simplificadoras: segundo uns, o direito seria apenas um conjunto de regras factuais da convivência humana. Outros foram de opinião que seria um puro sistema de disposições normativas. Também em relação aos factores que determinam o conteúdo das normas jurídicas nos deparamos com tentativas inadequadas de simplificação. Foi assim que por vezes se quis derivar o direito, na sua riqueza conteudal, da natureza humana. Outros consideraram o direito como um produto das circunstâncias econômicas. Outros, por sua vez, viram no direito um resultado do ‘espírito do povo’ ou das mentalidades alguma vez dominantes.”

10 JOBIM, Marco Felix. Cultura, escolas e fases metodológicas do Processo. 3.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 22.

11 François Ost, em sua obra “O Tempo do Direito” trata sobre a diferença entre o tempo do Direito e o tempo da sociedade. O autor afirma que “o direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito. Ainda mais precisamente: o direito temporaliza, ao passo que o tempo institui.” OST, François. O tempo do Direito. Bauru: EDUSC, 2005, p. 13.

12 Pode-se citar, como algumas das escolas de maior destaque no processo brasileiro a Escola Paulista, a Escola da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, as Mineiras e a Norte e Nordeste. Cf JOBIM, Marco Felix. Cultura, escolas e fases metodológicas do Processo. 3.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 22.

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O fato como fenômeno jurídico não é comumente estudado sob a perspectiva da Constituição Federal, é dizer, dentro do modelo constitucional de processo estabelecido pela Constituição de 1988 que determina, dentre outros, o dever de fundamentação da decisão judicial. Vê-se, portanto, a complexidade do tema, ao tratar, desde o “fato”, sua incorporação pelo direito, sua correta identificação no âmbito do processo civil, à sua devida valoração e publicização das razões, na decisão, pelas quais o fato foi valorado da forma como foi, atendendo ao princípio constitucional da fundamentação da decisão judicial.

Tem-se que remete a Kant13 a noção de que a publicidade é um princípio fundamental

do direito, sustentando o filósofo que “sem publicidade não há justiça, pois a justiça não pode ser concebida de forma oculta, senão publicamente manifesta”.14 O contexto do século XVIII, de repúdio aos procedimentos inquisitivos, privilegiava a exigência de publicização dos fundamentos das sentenças.

Conforme Accatino15, na exigência de que as razões que justificam as decisões judiciais sejam públicas, estão entrelaçadas várias dimensões da noção moderna de publicidade, no sentido de que não só se requer que as razões de decidir sejam expostas de maneira aberta, no sentido de que não sejam secretas, mas também exige que as tais razões sejam reconhecíveis e controláveis pelas e pelos demais cidadãos como “razões comuns”, intersubjetivamente válidas.

O aspecto da “controlabilidade” ou da “sindicabilidade” das decisões judiciais tem conexão com a noção moderna de legitimação do poder do juiz através de sua sujeição à lei, representando a legislação o modo pelo qual as normas reconhecidas pelos cidadãos são estabelecidas em uma democracia, por intermédio dos representantes eleitos. Portanto, as razões públicas que o juiz deve explanar em suas decisões devem ser as razões da norma legal aplicável ao caso.

No presente capítulo, serão explanadas noções sobre o fato jurídico, explicitando o que é o fato, a importância de sua narração, algumas de suas classificações mais relevantes para os

13 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 2015, p. 65-66.

14 Conforme Daniela Accatino, no mesmo ano em que Kant identificava a publicidade como princípio fundamental do direito, qual seja, o de 1795, pela primeira vez surgiu, na legislação revolucionária francesa, uma exigência geral de motivação das sentenças, que requeria que os juízes tornassem públicas as razões que justificavam suas decisões.

15 ACCATINO, Daniela. La arquitetura de la motivación de las premisas fácticas de las sentencias judiciales, in Hechos, evidencia y estândares de prueba: ensayos de epistemologia jurídica. Andrés Páez, coordenador. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Filosofia, Ediciones Uniandes, 2015 p. 66.

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fins do presente trabalho, o que são enunciados fáticos, a relação entre fato, prova, verdade e regras processuais e a relação dos fatos com o conhecimento, salientando a importância da construção de um modelo que seja epistemologicamente adequado.

2.1 O fato jurídico

O termo “fato jurídico” não é unívoco na linguagem jurídica. Muitas discussões já surgiram em torno de sua definição. A enciclopédia jurídica italiana explica que há pelo menos dois sentidos diversos do termo que podem ser apontados: fato jurídico significando aquilo que uma norma jurídica correlaciona a um feito jurídico; e fato jurídico para significar o evento não identificado como “ato”, isto é, todos os fenômenos temporais não configurados como atividade humana voluntária.16

A doutrina afirma que os termos fato (real), suporte fático e fato jurídico exprimem conceitos distintos. Conforme Mello, entre o “fato em si mesmo” e o suporte fático há o elemento valorativo, que os qualifica de forma diferente, pois os “simples eventos da natureza” não entram na composição do suporte fático como “fato puro”, pois a norma jurídica toma o fato em certo sentido relacionando-o à vida humana em suas relações sociais17. Em outras palavras, os “fatos naturais” só interessam ao direito em função de sua referibilidade a algum valor protegido, constituindo a inviabilidade dessa relação uma impossibilidade de se considerar o fato juridicizável. Assim, o suporte fático seria um plus em relação ao fato “real”, passando este a ser qualificado, enriquecido pelas circunstâncias descritas na lei, integrando o fato o suporte fático, sendo, portanto, conceitos diferenciáveis.18

Com relação à distinção entre suporte fático e fato jurídico, tem-se que, em geral, o suporte fático é constituído por vários fatos, dentre os quais alguns são considerados relevantes e a eles a “norma jurídica dá entrada no mundo jurídico, através da incidência”. Os fatos “transportados” para o mundo jurídico por intermédio da incidência constituiriam o fato jurídico. Dessa forma, apenas parte do suporte fático adentra o mundo jurídico e compõe o fato jurídico.

16 MOTA, Angélica. Constituição, epistemologia e decisão judicial: a necessidade de construção de um modelo normativo de fundamentação do juízo de fato. Rev. de Teorias da Justiça, da Decisão e da Argumentação Jurídica. e-ISSN: 2525-9644. Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 71-87. Jul/Dez. 2018.

17 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 66.

18 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 69.

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O fato jurídico deve ser considerado conceitualmente como uma unidade, embora possa ser constituído por vários fatos. Por exemplo, o contrato, embora composto de dois negócios jurídicos unilaterais (a oferta e a aceitação), conta com unidade conceitual, devendo ser considerado como uma unidade. Conforme Mello, o fato jurídico subsiste à própria lei da qual resultou, podendo a lei deixar de existir sem que essa circunstância afete a existência do fato jurídico.19

Na definição de fato jurídico estima-se a relevância dos fatos “da vida” para a sociedade e, com base nessa relevância, são atribuídas as consequências que constituem a eficácia jurídica.

Ademais, a doutrina identifica chamado preceito (ou disposição)20, que constituiria a parte da norma jurídica em que são prescritos os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos, representando a disposição normativa sobre a eficácia jurídica.

A legislação representa uma espécie de valoração de fatos, tratando-os em função da importância que possuem para a sociedade. A regulação dos fatos está, portanto, na contingência da sua maior ou menor afetação às necessidades humanas e sociais.

Deve-se registrar a ressalva realizada por García Máynez21 que, ao criticar a forma como a doutrina alude ao fato (suporte fático, Tatbestand, supuesto de hecho, fattispecie), afirma que, muitas vezes, o “suporte fático” da norma jurídica consiste no “não ser”, no “não ter acontecido”, na “omissão”, de onde pareceria incoerente haver a referência a um fato onde não há qualquer fato. Assim, propõe a expressão “hipótese jurídica”, que acredita evitar o problema da referência ao “não ser”.

Porém, esse argumento, conforme Mello, peca por confundir causalidade natural com causalidade jurídica, desconsiderando um dado fundamental da juridicidade: o plano lógico em que se desenvolve o fenômeno jurídico. Isso significa que, na formulação dos preceitos jurídicos, os “fatos do mundo” são tomados em um sentido que não corresponde exatamente ao da natureza. Embora haja nessa ideia uma certa “arbitrariedade”, ela é admissível ante a necessidade de atender aos interesses da sociedade. Dessa forma, o “não acontecer” que possa

19 De acordo com o autor, o “fato jurídico, depois de criado, permanece no mundo jurídico independentemente de continuarem a existir os seus elementos constitutivos: norma e suporte fático. Com a perda da vigência da norma jurídica, o suporte fático deixa de ser suporte fática a partir daí, mas nem por isso o fato jurídico perde a sua qualidade (...) eventualmente, a norma jurídica pode desconstituir fato jurídico. As conquistas da humanidade, no entanto, criaram limites a essa possibilidade, fazendo inserir em Constituições a imunidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada à retroeficácia das leis.” MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 71.

20 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44.

21 MÁYNEZ, E. García. Introducción al estúdio del derecho, p. 170 apud MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 45.

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estar previsto como constituindo o suporte fático de uma dada norma, embora no “plano da natureza” configure um “não ser”, no “plano jurídico” representaria um dado fático “cuja verificação faz composto o suporte fático e nascido o fato jurídico correspondente.”22

Visualiza-se que as definições doutrinárias sobre fato, suporte fático e fato jurídico existem em função da referibilidade à legislação, ou seja, ao Direito. Desde o primeiro momento em que se lança o olhar sobre o fenômeno do fato no Direito, ainda que em precedência à instituição do processo, verifica-se que este fenômeno é intrinsecamente relacionado à legislação, existindo por intermédio dela, cuja noção imediata remete ao que se entende por questão de direito.

Uma teoria muito difundida acerca do fato jurídico é aquela preconizada por Pontes de Miranda. O autor afirma que a regra jurídica, enquanto proposição, prevê fatos de possível ocorrência no mundo. Dá-se o nome de suporte fático ao fato ou conjunto de fatos previstos abstratamente. Quando o que está previsto na norma acontece, no plano da experiência, dá-se a incidência, de modo que o fato passa a ser considerado jurídico. Composto o fato jurídico, surgem, no mundo jurídico, os efeitos previstos em abstrato na norma. Segundo Miranda,

Os elementos do suporte fático são pressupostos do fato jurídico; o fato jurídico é o que entra, do suporte fáctico, no mundo jurídico, mediante a incidência da regra jurídica sobre o suporte. Só de fatos jurídicos provêem a eficácia jurídica.23

A partir da ideia de fato jurídico como produto da incidência da norma jurídica sobre seu suporte fático, ocorreria a separação do mundo dos fatos do mundo jurídico.

Para além da clássica lição de Miranda, e das noções gerais acerca do que a doutrina entende como fato jurídico, são muitas as dificuldades e incertezas relacionadas à definição de fato no sentido tratado no presente trabalho, uma vez que, no contexto do processo judicial, os fatos relevantes, em geral, já ocorreram, estando no passando, procedendo, então, o julgador a uma espécie de “reconstrução” dos mesmos com base na prova disponível, de acordo com os critérios trazidos pelo ordenamento vigente. Outra dificuldade, que será explorada no capítulo seguinte, consiste em saber se existe uma questão de fato separada de uma questão de direito.

No presente momento, antes que se adentre nas problemáticas próprias referentes às problemática da dicotomia questão de fato x questão de direito, convém, partindo da indagação acerca do que consistiria essa separação clássica entre questão de fato e questão de direito - sendo que a própria definição da questão de fato é feita tradicionalmente em contraposição à

22 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 45.

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questão de direito – informar algumas bases históricas que ajudarão a compreender a forma como o “fato” atua no processo.

Conforme Henke24, uma terminologia tradicional arraigada no direito processual denomina questões de direito as conclusões recorríveis decorrentes da aplicação de normas jurídicas e questões de fato aquelas que dizem respeito à constatação do quadro fático, não sendo recorríveis.

A questão dos conceitos jurídicos indeterminados – os elementos legais cujo conteúdo só pode ser fixado com exatidão através da concreção judicial, tais como “contrário aos bons costumes”, “boa fé”, “equitativo”, “adequado” - pertence ao campo da questão de direito, dentro do entendimento de que é uma questão de interesse geral e, portanto, pode ser levada às cortes superiores, pois o conceito indeterminado serve para a tipificação de relações vitais, mantendo uma decisão judicial seu valor para outros casos. Assim, a recorribilidade de questões relacionadas a conceitos indeterminados depende das consequências do resultado da subsunção, ou seja, se a aplicação do conceito produz resultados de validade geral ou apenas individual. O ponto é que o conceito indeterminado, em que pese seja um componente de normas jurídicas, não basta para que seja, efetivamente, uma questão de direito recorrível.

Henke afirma, acerca da história da questão de fato, que esta remonta ao século XIX, quando foi invocada pelo Obertribunal da Prússia sobre falhas sobre recursos de nulidade deduzidos com fundamento no Decreto sobre os recursos de cassação e nulidade (Verordnung

über das Rechtsmittel der Revision und der Nichtigkeitsbeschwerde) do ano de 1833.

Afirmando que se tratava de uma “questão de fato”, o Obertribunal rechaçava os ataques dos recorrentes contra a aplicação de um conceito indeterminado a um caso singular, por considerar que “resolver questões de um caso singular” não era tarefa de sua incumbência, limitando seu controle a verificar se a instância inferior havia desconsiderado ou interpretado equivocamente de forma “radical” alguma norma jurídica.25 Passados alguns séculos, a jurisprudência continua

invocando a questão de fato.

O autor afirma, ainda, que os problemas que a questão de fato seguiu enfrentando advêm de uma falha fundamental da Corte Federal de Justiça - Bundesgerichtshof (BGH) - sobre a “cassacionalidade” do conceito indeterminado de “culpa grave”. Pela utilidade do exemplo, convém informar o caso resumidamente.

24 HENKE, Horst-Eberhard. La cuestion de Hecho: el concepto indeterminado em el derecho civil y su casacionabilidad. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-América, 1979, p. 1-2.

25 HENKE, Horst-Eberhard. La cuestion de Hecho: el concepto indeterminado em el derecho civil y su casacionabilidad. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-América, 1979, p. 3.

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O pleito versava sobre uma aquisição de um bem, feita de boa fé, por um alienante não autorizado. O tribunal de apelação havia negado validade in concreto à operação, fundando-se no fato de que a demandada havia negligenciado com “culpa grave” o direito de propriedade da demandante. Na cassação, a demandada sustentou que, caso observadas as circunstâncias do caso, seria equivocado falar-se em “culpa grave”. A demandada, temendo que o recurso não prosperasse, diante do fato de que os tribunais de cassação sempre haviam declarado que “culpa grave” era uma questão de fato, não recorrível, apresentou à corte um parecer que se pronunciava a favor da recorribilidade. Isto teria obrigado a Corte a se pronunciar sobre o problema da questão de fato, o que até então os tribunais de cassação haviam evitado completamente.

Porém, a manifestação do Tribunal foi muito vaga. A decisão buscou fundamentar por quê a subsunção sob o conceito de “culpa grave” deve ser classificada como questão de fato não recorrível, afirmando que o conceito de culpa grave, como tal, é um conceito de direito, porém a classificação de “grave” seria uma questão que teria que ser resolvida pelo juiz dos fatos. Não seria possível dar-lhe uma resposta uniforme, válida para todos os casos, devendo ser contestada caso a caso. Afirmou a decisão que o conceito de grave seria, assim, um conceito de fato e, portanto, uma questão de fato.

A análise dessa argumentação suscita duas questões. A primeira é como pode uma questão de direito tornar-se uma questão de fato. A segunda é se um tribunal de cassação tem que se abster de se manifestar quando a questão jurídica discutida só possa resolvida caso a caso.

Sobre a primeira indagação, vê-se que o Tribunal partiu do conceito jurídico de culpa grave e terminou tratando do conceito de fato e da questão de fato. Conforme Henke, essa metamorfose contradiz a distinção lógico-conceitual entre questão de direito e questão de fato. O conceito “natural” ou “conceito de fato” é uma noção pré-jurídica, sobre cujo conteúdo o legislador pode dispor. O conteúdo do conceito de direito, por sua vez, é guiado pela finalidade que o legislador persegue com a norma jurídica. Na aplicação do direito, os conceitos de fato e os conceitos de direito devem manter-se separados, por que a valoração jurídica de um quadro fático pressupõe que o juiz se ocupe previamente das exposições dos fatos feitas pelas partes.26

Assim, supondo que a Corte não quis estabelecer uma nova diferenciação lógica entre questão de fato e questão de direito, só podem ter sido razões prático-processuais que a fez tratar o conceito jurídico de culpa grave como um conceito de fato.

26 HENKE, Horst-Eberhard. La cuestion de Hecho: el concepto indeterminado em el derecho civil y su casacionabilidad. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-América, 1979, p. 6.

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Sobre a segunda indagação, ela pressupõe, com base no caso em comento, que só seriam recorríveis as questões das quais o “tribunal de cassação” pudesse extrair pautas para jugar uma questão jurídica de maneira uniforme. Henke questiona se é sustentável a argumentação de que as questões do caso singular são irrecorríveis devido à finalidade “uniformizadora” da cassação. O autor afirmou que, ao observar a jurisprudência, que a mesma Corte do exemplo submeteu sem nenhuma reserva outras sentenças proferidas pelas instâncias “dos fatos”, ainda que nestes casos estivessem em discussão somente “questões do caso singular”.

Saltando do exemplo histórico para a atualidade brasileira, a própria Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça27, ao negar seguimento a recursos especiais em que se busca revolver matéria “de fato”, estaria a revelar que o STJ se manifesta como uma corte que julga questões “de direito”. O STJ, porém, procede a uma diferenciação, de forma muitas vezes pouco clara, entre o revolvimento de matéria fática de qualificação jurídica dos fatos. No entanto, conforme aponta Schmitz28, essa diferenciação é realizada em apenas alguns dos casos, o que aumentaria o “espaço de manobra discricionária” do julgador.

É interessante, pelo caráter elucidativo do que se está a debater, reproduzir os exemplos citados pelo autor, que representam entendimentos exarados pelo Superior Tribunal de Justiça em circunstâncias diferentes.

Em um determinado caso, a tese da qualificação jurídica dos fatos foi utilizada para condenação em danos morais:

É possível a condenação por dano moral, no âmbito do recurso especial, quando o Tribunal a quo reconheceu a manifesta abusividade da cláusula que previu a exclusão de materiais ou próteses empregados no ato cirúrgico e determinou a cobertura de tais despesas, mas qualificou a situação como mero dissabor ou mero desacerto contratual, ao argumento de que o descontentamento da parte não gera violação de direitos da personalidade a ensejar dano moral, por que não se trata de revisão da matéria fática, mas de modificação da qualificação jurídica conferida ao caso concreto pelo acórdão recorrido, o que afasta o óbice da Súmula 7 do STJ.29

Porém, atente-se que em outros casos o mesmo argumento é utilizado justamente para impedir a análise do pedido de condenação por dano moral:

A alegação de que ‘trata-se de qualificação jurídica de fatos e não reexame destes’ não procede, uma vez que, para verificar a existência de nexo causal e critérios de razoabilidade e proporcionalidade, alegados no recurso especial, e chegar a conclusão diversa, para afastar a obrigatoriedade de indenizar por danos morais sofridos pelo agravado, necessariamente passaria pela análise de matéria fático-probatória, conforme disposto na decisão monocrática.30

27 “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”

28 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 146.

29 REsp 1190880/RS, 3.ª Turma, j. 19.05.2011, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.06.2011.

(27)

Para Schmitz31, trata-se de uma evidente artificialidade manipulativa, demonstrando

que o STJ pode simplesmente escolher julgar o que subjetivamente desejar julgar, gerando o risco de “cisão entre coisas incindíveis”: questões de fato e questões de direito.

Segundo Wroblevski, a oposição entre fato e direito é largamente aceita na doutrina, sendo oriunda das antigas tradições jurídicas que distinguiam as chamadas quaestiones iuris das quaestiones facti, presumindo uma série de institutos jurídicos, tais como a delimitação de competências entre o júri e o juiz e as competências procedimentais das cortes de cassação. Segundo o autor, a oposição em questão está longe de ser clara e o papel do fato na formação da decisão judicial depende dos vários tipos de fatos e da relação entre os fatos e o direito, que é determinada pela maneira pela qual os fatos são referidos pela “linguagem jurídica”.32

De uma maneira bastante geral, pode-se afirmar que a aplicação da norma consiste na determinação de consequências jurídicas para determinados fatos. O exemplo “padrão” do resultado do processo de aplicação da norma é uma decisão judicial determinado consequências jurídicas a um certo fato, fato este cuja existência é controversa entre as partes de um julgamento. O julgador, exercendo sua tarefa constitucionalmente prevista de aplicar a lei, produz uma decisão “evidencial” afirmando: “o fato F ocorreu no tempo T e no lugar L”, que o autor chama de “enunciado existencial”. Enunciados existenciais na forma de decisões de “evidência” (decisions of evidence) são elementos necessários para a justificação da decisão judicial. Isto torna os problemas acerca dos fatos no Direito extremamente relevantes para muitas considerações sobre a aplicação do direito e o processo de formação e de justificação da decisão judicial.

Conforme Taruffo, um fato jamais é uma entidade simples e homogênea, passível de ser definido de modo exaustivo através de um enunciado do tipo “x existe”; cada fato, portanto, pode ser narrado em uma infinita variedade de modos, dependendo das circunstâncias levadas em consideração e dos diferentes pontos de vista a partir dos quais o fato é descrito.33

O mesmo conjunto de acontecimentos pode ser descrito das mais diferentes maneiras, as quais podem ser verdadeiras ou falsas, boas ou ruins, concomitantemente boas e falsas ou concomitantemente verdadeiras e ruins. Além disso, não existe e não pode existir uma descrição absolutamente completa dos fatos, em que sejam indicadas todas as particularidades do

31 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 147.

32 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Facts in law. Archives for philosophy of law and social philosophy, vol. 59, n.º 2, 1973, pp. 161-178. Disponível em https://www.jstor.org/stable/23678631 acesso em 27/03/2019.

33 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 235.

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acontecimento a respeito do qual se trata, de modo que o julgador possa ter acesso que não deixe margem a equívocos.

Em um processo judicial, os fatos acerca dos quais se discute a ocorrência são identificados por intermédio de critérios jurídicos, critérios estes representados especialmente pelas normas aplicáveis para decidir a controvérsia. Em outras palavras, é o direito que define e que determina o que constitui um “fato” no processo.

Por outro lado, não existe uma noção elementar de “fato” que se possa aceitar, de forma indiscutível, como ponto de partida. Conforme Taruffo, ainda que se proceda à uma abstração momentânea do problema da qualificação jurídica, basta atentar para a vasta variabilidade e indeterminação dos “fenômenos do mundo real” para que se perceba que é muito difícil definir de um modo não superficial o que se entende por “fato”34. Ademais, o problema da qualificação jurídica dos fatos não pode ser ignorado, uma vez que é precisamente a dimensão jurídica do fato da causa que permite identificar o fato, distinguindo-o da ilimitada variabilidade e indeterminação da realidade.

Assim, do problema da definição do “fato” resulta o problema das formas pelas quais as normas jurídicas selecionam e determinam os fatos aptos a produzir consequências jurídicas. Como são muitas e distintas as formas pelas quais as normas configuram suas próprias premissas fáticas, Taruffo afirma que “não há nada mais discutível e causador de confusão que a ideia de que pode haver uma definição simples e unitária do que constitui um fato no âmbito do processo”.35 Não pode haver, portanto, uma definição simples e unitária do que representa o objeto da prova, sendo o “fato” enquanto “objeto da prova” uma noção muito variável e problemática.

2.2 O fato como objeto de estudo no âmbito do direito probatório

Visualiza-se, portanto, que são várias as problemáticas referentes aos fatos, à sua definição, à sua qualificação jurídica e à impossibilidade de seu acesso direto pelo julgador. Seria legítimo e até mesmo natural esperar que tais temas constituíssem objeto constante de estudos nas Faculdades de Direito e de inquietações acadêmicas.

Porém, o estudo da “evidência” foi historicamente bastante negligenciado pelos currículos das faculdades de Direito. Twinning afirma que foi amplamente reconhecido, pelo

34 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 92

35 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Tradução de Jordi Ferrer Béltran. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 93.

(29)

menos desde a época de Jerome Frank, que existe um desequilíbrio entre a quantidade de atenção dedicada a questões de direito contestadas nos tribunais superiores e o montante dedicado a questões de fato contestadas em julgamentos em primeira instância, em outros tribunais e em processos legais em geral.36

O autor afirma que Jerome Frank sugeriu que a quantidade de energia intelectual dedicada a um assunto varia inversamente à sua importância prática. Sua tese não se restringiu à educação jurídica, mas cobriu discurso jurídico em geral: pesquisa jurídica, literatura jurídica, debates sobre reforma da lei e as percepções da lei por advogados e suas suposições subjacentes a ela.37

Segundo Béltran, o interesse principal do jurista centrou-se na descrição e na sistematização das regras sobre a prova de cada sistema jurídico muito mais do que na prova mesmo e seus conceitos relacionados.38

De acordo com Twinning39 existem três argumentos principais contra a necessidade de que os estudos sistemáticos acerca dos fatos legais ocupem posição mais proeminente nos estudos jurídicos. Os principais argumentos podem ser divididos em três categorias: (a) o assunto já foi tratado adequadamente; (b) o assunto é importante, mas não é tratado extensivamente na maioria das escolas de direito, porque é desnecessário dedicar um tempo valioso às aulas; (c) em teoria, deve-se dedicar mais tempo a ele, mas há sérias dificuldades em fazê-lo.

Jerome Michael resumiu seu ponto de vista sobre o problema da seguinte forma que, pela clareza, merece ser transcrita:

...since legal controversy is conducted by means of words, you need some knowledge about the use of words as symbols, that is, some grammatical knowledge. Since issues of fact are constituted of contradictory propositions, are formed by the assertion and denial of propositions, and a retried by the proof and disproof of propositions, you need some knowledge of the nature of propositions and of the relationships which can obtain among them, and of the character of issues of fact and of proof and disproof, that is, some logical knowledge. Since the propositions which are material to legal controversy can never be proved to be true or false but only to be probable to some degree and since issues of fact are resolved by the calculation of the relative probabilities of the contradictory propositions of which they are composed, you need some knowledge of the distinction between truth or falsity and probability and of the logic of probability. Since propositions are actual or potential knowledge, since proof or disproof is an affair of knowledge, since, if they are truthful, the parties to legal controversy assert, and witnesses report, their knowledge, and since knowledge is of various sorts, you need some knowledge about knowledge, such, for instance, as knowledge of the distinction between direct or perceptual and indirect or inferential knowledge. Since there are intrinsic and essential differences between law and fact,

36 TWINNING, W. Rethinking Evidence. Exploratory Essays, 2ª ed. Cambridge, 2016, p. 15. 37 TWINNING, W. Rethinking Evidence. Exploratory Essays, 2ª ed. Cambridge, 2016, p. 16. 38 FERRER BÉLTRAN, Jordi. Prueba y verdade en el derecho. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 16. 39 TWINNING, W. Rethinking Evidence. Exploratory Essays, 2ª ed. Cambridge, 2016, pp. 16-18.

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