• Nenhum resultado encontrado

Uma das discussões centrais na pesquisa, formação e prática de tradutores e intérpretes está, justamente, na diferença das atividades de tradução e interpretação. Nesse sentido, queremos ser coerentes com essa tendência e apresentar considerações teóricas sobre as possíveis diferenças entre essas duas atividades, além de justificar as escolhas variantes, neste trabalho, do uso de termos como tradutor/intérprete, intérprete e tradutor, bem como ato tradutório e ato interpretativo.

Na busca por essas diferenças conceituais e consideravelmente importantes, recorremos a alguns autores da área da tradução e interpretação que pontuam de maneira incisiva a diferença, não apenas terminológica limitando-se a diferenciação

lexical, mas aprofundam-se marcando-a na prática e na realização dessas atividades. No entanto, antes de convocar as vozes teóricas dos estudos tradutológicos que perseguem essa diferença, queremos apresentar os traços de semelhanças nos atos de traduzir e interpretar que determinam, dentre outros aspectos, a realização de uma atividade de mediação entre línguas.

O pano de fundo que institui a semelhança nessas atividades pode ser, inicialmente, desvelado na origem etimológica da palavra tradução. Segundo o Dicionário de Radicais Clássicos – Dialética da Língua Portuguesa de Alcebíades Fernandes Junior, o radical TRA, proveniente de TRAH e TRAIN, originários do grego e do latim, significa puxar, adestrar, conduzir uma veste, enquanto DUÇ, também vindo do latim, significa tirar, guiar, conduzir. O radical TRA permanece nas línguas de origem e influência latina: francês – TRAduction, italiano – TRAduzione e inglês TRAnslation. Nesse sentido, a tradução é um ato de puxar, conduzir de um determinado lugar a outro com uma nova veste.

No cerne do significado etimológico aplicado ao ato, a prática de interpretação de línguas também está vestida desse sentido, visto que se caracteriza pelo ato de trazer de um lado a outro colocando no discurso mobilizado uma nova veste, uma nova forma linguística, mas mantendo a sua interioridade (se é que assim pode ser pontuado), o sentido. Portanto, é possível afirmar que a interpretação também é um ato tradutório, pois “[...] todo ato de tradução é tanto tradução como interpretação, porque traduzir é sempre interpretar e porque sempre que se interpreta se traduz” (SOBRAL, 2008, p. 88).

Mesmo havendo essa congruência semântica entre tradução e interpretação, podemos questionar o motivo da diferenciação entre traduzir e interpretar, ainda que assumamos que as duas atividades são caracterizadas pela mediação realizada entre diferentes línguas, cujos destinatários são interlocutores que desconhecem (ou conhecem insuficientemente) a língua fonte do discurso a qual se pretende ter acesso e, por isso, necessitam de uma mediação linguística-enunciativa-discursiva.

Para responder a esse questionamento passaremos, a partir de então, a convocar as vozes teóricas dos Estudos da Tradução e Interpretação que anunciamos no início deste capítulo. Conforme foi explicitado, assumimos neste trabalho que a interpretação de uma língua à outra também caracteriza-se por uma

atividade tradutória independente da sua modalidade linguística. Todavia, assumimos, também, em ressonância com as concepções apresentadas a seguir, que traduzir e interpretar são atividades diferentes caracterizadas, primordialmente, pelas esferas de produção em que são realizadas.

Alguns teóricos e pesquisadores dos Estudos da Tradução nos mostram que a tradução é uma atividade ligada à transposição escrita de uma língua à outra, enquanto a interpretação é caracterizada por uma transposição oral, em tempo real, face a face, entre línguas (PAGURA, 2003, RONAI, 1987).

Sobral (2008), salienta que os estudiosos dos processos tradutórios costumam realizar uma distinção entre traduzir, que refere-se à pratica de tradução de textos escritos, interpretar para designar a tradução de textos orais e em língua de sinais, verter para designar a todo tipo de tradução da primeira língua do tradutor para uma segunda língua e para realizar adaptações explícitas de letras de canções e poemas, e transcriar para traduções de textos literários. Para o autor, a exploração sistemática de diferentes terminologias para referir-se ao ato de “[...] mobilizar um texto por meio de outro discurso” (p. 70) são iniciativas para destacar diferentes aspectos de um mesmo processo.

Para Cokely (1992), existem diferenças cruciais entre as atividades dos tradutores e dos intérpretes. O autor salienta que uma das diferenças entre os modelos tradutórios e os modelos interpretativos está no fato de que o intérprete, por exemplo, está limitado a um “espaço-tempo” específico, pois sua atuação depende totalmente da fala e, por consequência, do ritmo e entoação do orador, enquanto o tradutor possui um “espaço-tempo” diferenciado, mais expandido, em que é possível recorrer a outras referências para a tradução, refazê-la, refiná-la, se necessário, após possíveis releituras do material traduzido, sendo esta uma ação recursiva.

No mesmo trajeto, explorando a interpretação como uma ação diferenciada da tradução, Pagura (2003) chama atenção para as motivações da constante confusão que se faz entre essas atividades. Para o autor, essa fusão terminológica deu-se, no Brasil, com a Lei da Reforma do Ensino, 5.692/71, que institui a formação de “tradutores-intérpretes” como uma das inúmeras possibilidades dos cursos profissionalizantes a serem instituídos no ensino de segundo grau (atual Ensino Médio).

No tocante à tradução/interpretação da língua de sinais brasileira existem, ainda, alguns questionamentos quanto ao uso correto da terminologia. Assim como na Lei mencionada por Pagura (2003), o termo “tradutor e intérprete” também foi instituído legalmente para a atividade do profissional que media enunciativo- discusivamente situações de interação que envolve a língua de sinais brasileira e a língua portuguesa. O decreto 5.626/05, que regulamenta a lei de Libras, 10.436/02, determina a formação de tradutores e intérpretes de libras – língua portuguesa para atuar na mediação de comunicação entre surdos e ouvintes.

A libras, atualmente, possui um sistema de escrita em construção, o Sign Writing8 (Escrita de Sinais). No entanto esse sistema não tem sido adotado como forma de comunicação em provas, avaliações e registros oficiais9, por não ser

reconhecida amplamente pela comunidade surda. A lei de libras, 10.436/02, acentua em um parágrafo único que “a Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. Nesse caso, o termo tradutor intérprete, refere-se a possíveis situações em que a língua portuguesa escrita estará envolvida no processo tradutório. Russo (2009), salienta que:

[...] em alguns momentos, os intérpretes de língua de sinais também atuam como um tradutor, já que o par linguístico da LIBRAS é a língua portuguesa, uma língua grafa. Um exemplo de uma situação é quando um surdo produz um determinado discurso em LIBRAS, registra-o em vídeo e repassa-o para que o agora tradutor de língua

8 O Sign Writing foi criado na Dinamarca em 1974, a princípio, para registrar passos de dança e logo despertou o interesse de pesquisadores de língua de sinais, por possibilitar a representação gráfica de movimentos corporais e espaciais (STUMPF, 2008). Segundo Silva e Nogueira (2010) o Sign Writing tem sido estudado como forma gráfica de escrita de línguas de sinais no mundo e existem atualmente no Brasil pesquisas concluídas em que o resumo da dissertação foi produzido em língua portuguesa e escrita de sinais, além de outras pesquisas voltadas para essa temática (STUMPF, 2008; 2008; SILVA, 2009; GOMES, 2009). Esse sistema de representação gráfica ainda não é reconhecido amplamente pela comunidade surda como uma escrita da libras. No entanto, os pesquisadores da área a utilizam como a forma escrita oficial dessa língua. Em 2010, foi publicado pela primeira vez no periódico Cadernos de Tradução do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, com conceito A2 na avaliação Qualis- CAPES, um artigo em Sign Writing: “Tradução e interpretação da Língua Brasileira de Sinais: Formação e Pesquisa” (QUADROS, STUMPF, 2010) disponível em:

http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/15714/14228.

9 A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem oferecido aos alunos surdos dos cursos de graduação e pós-graduação a possibilidade de produzirem seus materiais bibliográficos em libras, tanto na modalidade escrita (escrita de sinais) como na modalidade sinalizada em que o registro é realizado por meio de filmagem, além da língua portuguesa escrita.

de sinais faça a tradução para o português escrito. Nesse momento, o intérprete de língua de sinais assume uma outra função, a de traduzir, ou seja, de verter um texto de modalidade visuo-gestual para um outro texto de modalidade escrita (p. 24).

Existem outras situações em que a modalidade escrita da língua portuguesa será o par linguistico da libras. A esfera jurídica, por exemplo, em uma situação de interpretação, quando houver um surdo que não sabe se comunicar pela língua portuguesa escrita e, por determinação do juiz, for necessário algum registro gráfico de seu depoimento, o intérprete assumirá a função de tradutor, pois a transposição, nesse caso, será da língua de sinais para a língua escrita10.

Alguns pesquisadores e autores atuais têm escolhido utilizar apenas interpretação de libras para a atividade realizada e intérprete de libras para o sujeito que realiza essa ação, justificando que a tradução não está ligada, diretamente, a sua função, como é o caso de Lacerda (2009), que analisa a atuação do Intérprete de Libras em atuação na educação infantil e no ensino fundamental. A autora reconhece a função tradutória de uma atividade interpretativa, mas, baseando-se em autores dos Estudos da Tradução, descreve as diferenças entre essas duas ações.

Baseando-nos na discussão realizada até aqui, neste trabalho, realizamos escolhas específicas para referirmos à atuação do profissional que media enunciativo-discursivamente a comunicação entre surdos e ouvintes. Utilizaremos o termo tradutor/intérprete de libras/português (TILSP) para a referência ao sujeito que realiza essa função, em sintonia com as atuais publicações da área que utilizam essa terminologia, com a lei que institui a formação desses profissionais e, também, por abranger as possibilidades (poucas, mas reais) de atuação desse profissional em situações que a língua escrita estará envolvida, além de referir-se ao caráter tradutório da interpretação, tal como pontua Sobral (2008).

Em relação à atividade, ao evento da prática de transpor um texto a outro, será utilizado o termo interpretação ou ato interpretativo com referência a

10 Atualmente tem sido realizada a avaliação e formação de tradutores e intérpretes surdos que realizam a tradução da língua de sinais para o português escrito e vice-versa. O exame PROLIBRAS, que acontece anualmente para aprovação e certificação de tradutores intérpretes e professores de libras, realizou, em 2009 em 2010, a avaliação de surdos tradutores. O II Congresso Brasileiro de Pesquisas em Tradução e Interpretação da Língua de Sinais também contou com a atuação de intérpretes surdos que realizaram a interpretação de outras línguas de sinais, como a American Sign Language, para a libras.

predominância de tradução de textos sinalizados e orais na interação discursiva entre surdos e ouvintes.

A partir deste momento, depois de assumirmos que o TILSP realiza, predominantemente, atividades de interpretação de uma língua à outra (COKELY, 1992), ampliaremos e focaremos a discussão e definição do ato interpretativo.

2.2. Interpretação da língua de sinais: atividade interlinguística de natureza