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Pagura (2003), apresenta dois modelos interpretativos que são, costumeiramente, desconhecidos por profissionais que não atuam na área. O primeiro modelo trata-se da interpretação consecutiva, que é aquela em que o intérprete escuta um longo trecho de discurso, toma notas e, após a conclusão de um trecho significativo ou do discurso inteiro, assume a palavra e repete todo o discurso na língua-alvo, normalmente a sua língua materna. O segundo é a interpretação simultânea, em que os intérpretes – sempre em duplas – trabalham isolados numa cabine com vidro, de forma a permitir a visão do orador e recebem o discurso por meio de fones de ouvido. Ao processar a mensagem, re-expressam-na na língua de chegada por meio de um microfone ligado a um sistema de som que leva sua fala até os ouvintes, por meio de fones de ouvido ou receptores semelhantes a rádios portáteis. Essa modalidade permite a tradução de uma mensagem em um número infinito de idiomas ao mesmo tempo, desde que o equipamento assim o permita.

Partindo da apresentação feita por Pagura (2003) e direcionando essa distinção à prática do TILSP, afirmamos que o modelo mais utilizado em um ato interpretativo que envolva a língua de sinais é a interpretação simultânea. No entanto, diferente do que acontece com os intérpretes de línguas orais que ficam escondidos fisicamente em uma cabine com fones de ouvido, o TILSP, geralmente, posiciona-se ao lado do locutor, no palco, no caso de uma interpretação de conferência, e realiza ali o ato interpretativo. Tanto este último fato mencionado como a recorrência de uma interpretação simultânea se dá devido à modalidade linguística da língua de sinais, gestual-visual-espacial, diferente das línguas

envolvidas na atuação de intérpretes de línguas orais, necessitando de uma exposição visual para o acesso do público a qual se interpreta.

Para Isham e Lane (1993), há poucas diferenças entre a atividade realizada entre os intérpretes de línguas orais e os intérpretes de língua de sinais. Os autores salientam que, talvez, a única diferença resida no fato de que os segundos transitem por modalidades linguísticas diferentes e, por esse motivo, existam implicações à atuação interpretativa, à operacionalização da interpretação.

Esta diferença pontuada por Isham e Lane (1993), da modalidade linguística, é crucial para a atuação do TILSP, isso porque a modalidade linguística das línguas envolvidas, da língua oral para a língua de sinais e vice e versa, é de outra natureza, instituindo, assim, uma atuação que envolve processo de ressignificação verbo- visual intermodal.

Quadros (2006), pontua essa diferença de modalidade mostrando que as línguas de sinais oferecem para a linguística um novo campo de investigação sobre a aquisição e desenvolvimento de línguas naturais, visto que há, nas línguas de sinais, propriedades de nível linguístico que, embora sejam parecidos com o das línguas orais, diferenciam-se no próprio processo enunciativo. A autora realiza uma revisão de literatura dos estudos referentes às descrições linguísticas da American

Sign Language e da Língua Brasileira de Sinais para pontuar os efeitos de modalidade entre as línguas faladas e as línguas sinalizadas:

Por um lado, existe uma preocupação em relação aos efeitos das diferenças na modalidade fazendo com que os estudos das línguas de sinais sejam extremamente relevantes. Por outro lado, as similaridades encontradas entre as línguas faladas e as línguas sinalizadas parecem indicar a existência de propriedades do sistema linguístico que transcendem a modalidade das línguas. Nesse sentido, o estudo das línguas de sinais tem apresentado elementos significativos para a confirmação dos princípios que regem as línguas humanas. (QUADROS, 2006, p. 175).

No tocante às atividades tradutórias e interpretativas, Segala (2010), ao falar do processo tradutório da língua de sinais para o português escrito e vice-versa, pontua a importância da diferenciação entre as modalidades linguísticas envolvidas nesse tipo de tradução, bem como da diferença entre a interpretação entre línguas

de sinais e línguas orais. O autor afirma que um processo de tradução entre línguas de diferentes modalidades não pode ser denominada, apenas, de tradução

interlingual, pois este termo já se refere a uma atividade de mediação entre línguas

diferentes, mas no caso em que os pares linguísticos são línguas de sinais e línguas orais, a mediação caracteriza-se por uma tradução intermodal.

Para Segala (2010), que baseia-se em Jakobson (1969), o processo tradutório e/ou interpretativo entre línguas sinalizadas para línguas orais auditivas em suas duas faces (oral e escrito) pode, ainda, ser denominada por tradução

intersemiótica, pois envolve dois sistemas de signos diferentes. O autor propõe,

então, que a tradução entre textos escritos em língua portuguesa e em libras, por exemplo, constitui-se em uma tradução intersemiótica.

Jakobson (1969), considera tradução intersemiótica quando há uma transmutação, tradução, entre um sistema verbal e um sistema não verbal como, por exemplo, de um texto para ícones, desenhos, fotos, pinturas, vídeo, etc. Embora o autor não faça referência às línguas de natureza gestual-visual-espacial, podemos considerar, juntamente com Segala (2010), que o processo de interpretação entre línguas sinalizadas e línguas faladas constitui-se em uma transmutação

intersemiótica, visto que os sistemas de signos envolvidos nesse processo são de

materialidades diferentes: verbal-oral11 e gestual-visual-espacial.

A questão da materialidade das línguas envolvidas é de extrema relevância para o processo e, possivelmente, modelos de interpretação. No que se refere à atuação de um intérprete de língua oral falada, sua atuação não é intermodal, mas somente interlingual, pois o processo interpretativo acontece na relação biunívoca dos pares linguísticos cuja materialidade constitui-se do verbal-oral-falado para o verbal-oral-falado. No caso da interpretação de/para a língua de sinais em que o par linguístico seja uma língua oral falada, a transposição, independente da esfera de

11 Pontuamos a especificidade da materialidade verbal-oral dessa relação, pois a língua escrita também faz parte da dimensão verbal de uma língua de modalidade oral-auditiva, visto que o “verbal”, no tocante à materialidade e não ao que, tradicionalmente, se atribui a esse termo, o status condicionante de língua, possui duas faces: o oral e o escrito (BRAIT, 2010). Ainda, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss (2010) verbal significa: expresso oralmente, falado, oral. Sendo assim, faz-se necessário pontuar que a transposição linguística, neste caso, se dá entre produção discursiva verbal-oral.

produção, será de uma materialidade verbal-oral-falada para uma materialidade verbal-oral-sinalizada, tornando, por recorrência, o ato interpretativo com línguas orais e línguas de sinais uma atividade interlingual de natureza verbo-visual.

Essa totalidade será considerada aqui uma

[...] enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, a linguagem verbal e a linguagem visual. Essa unidade significativa, essa enunciação, esse enunciado concreto, por sua vez, estará constituído a partir de determinada esfera ideológica, a qual possibilita e dinamiza sua existência, interferindo diretamente em suas formas de produção, circulação e recepção (BRAIT, 2010).

Constituídas indissoluvelmente a interligação verbo-visual do ato interpretativo enquanto enunciação é constitutiva da tarefa do profissional que media discursos entre línguas diferentes, e nesse caso, de modalidades diferentes. Essa diferença de modalidade produz discursos de diferentes consistências, textos de diferentes aspectos. Nesse sentido, adotamos como concepção de materialidade linguistica, de texto, a proposta de Brait (2010) que, partindo dos pressupostos bakhtinianos, o designa como semiótico-ideológico abrangendo a dimensão visual, verbal e verbo- visual da língua e das linguagens que a partir dela circulam como participantes da produção de um enunciado concreto:

Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido a partir dos mecanismos que o constituem, dos embates e das tensões que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos de expressão, das esferas em que circula e do fato de que o ostenta, necessariamente, a assinatura do sujeito, individual e coletivo, constituído por discursos históricos, sociais e culturais [...] (BRAIT, 2010, p. 195).

A língua de sinais, conforme já sinalizamos neste trabalho, possui sua enunciação produzida no espaço (QUADROS, KARNOPP, 2004). Enunciação que é constituída por signos linguísticos visuais, possíveis de serem analisados automamente, a partir de si mesmos, da menor à maior unidade, na inter-relação com os outros signos, conforme salienta a proposta saussureana de análise e

estudo da língua12. Dessa forma, a transposição de sua materialidade em um ato

tradutório (no sentido mais amplo do termo), vai além do enquadramento textual da

língua em uso e requer uma ressignificação dos sentidos, dos apontamentos do texto para dentro e para fora de si mesmo, implícitos no processo enunciativo da língua, em sua totalidade, que ultrapassam a transposição, apenas, lexical marcada pela relação sinal-palavra e palavra-sinal.

Essa (re) produção de sentidos é determinada, acima de tudo, pela esfera de produção discursiva desse ato de enunciação, pois “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 118). Nesse sentido, a interpretação da língua de sinais não será realizada, por exemplo, na esfera educacional da mesma forma que seria na esfera jurídica. Os sujeitos envolvidos, as coerções determinadas pelo gênero discursivo produzido nessas esferas e os próprios aspectos estilísticos da enunciação são diferentes. A fala de um juiz que, em um primeiro momento, seria o principal enunciador e que determina, por meio de sua autoridade, as outras manifestações enunciativas difere-se do estilo de enunciação utilizado por um professor em uma sala de aula, em uma relação direta com os enunciatários.

O próprio posicionamento físico desses enunciadores determina como um ato interpretativo em língua de sinais será executado. Um juiz não passa a audiência em pé, andando de um lado para o outro, escrevendo na lousa, dirigindo-se ao réu para saber se ele possui alguma dúvida ou corrigindo qualquer registro gráfico que ele, possivelmente, venha a fazer durante um julgamento. E, ao contrário, um professor também não senta em uma cadeira mais alta no meio da sala de aula e coloca um aluno a sua frente acompanhado de seu pai, no papel de um defensor, tal qual é um advogado, durante a aula, para defender seus déficits de aprendizagem. Nesse sentido, a interpretação da língua de sinais/língua portuguesa, a relação verbo-visual

12 Não queremos nos estender na discussão sobre o caráter linguístico da língua de sinais. Sua constituição enquanto língua natural já foi comprovada cientificamente. No entanto, vale recordar que foi em 1960 que as primeiras pesquisas, realizadas por Willian Stokoe nos Estados Unidos, comprovaram que a língua de sinais possui a mesma função, tanto simbólica quanto neurolinguística, além da complexidade das línguas orais (SACKS, 1998). Salientaremos, portanto, os aspectos de sua produção enunciativa para chegarmos, posteriormente, à dimensão discursiva que essa língua possibilita aos seus usuários, bem como ao processo de tradução/interpretação dela para outras línguas e vice-versa.

indissolúvel desse ato enunciativo, é determinada pela esfera de produção, recepção e circulação dos discursos interpretados.

No próximo capítulo, faremos uma leitura dos conceitos bakhtinianos de

enunciação, enunciado concreto, gêneros do discurso, texto, discurso e autoria

relacionando-os com práticas de interpretação das línguas de sinais pontuado as possíveis contribuições que essa teoria oferece para o estudo e análise dessa atividade, bem como para a leitura do corpus desta pesquisa.

CAPÍTULO 3

Contribuições do Círculo de Bakhtin para o estudo da interpretação da

língua de sinais

É instaurador de discursividade todo aquele cuja obra permite que outros pensem algo diferente dele. Dito de outra maneira: sua obra é condição de possibilidade para que determinados pensamentos se produzam, mas ao invés de serem pensamentos que repetem o que diz essa obra, ao contrário, trazem diferenças em relação a ela. Poderíamos então dizer que Bakhtin não é apenas um autor que não cansamos de repetir, mas é também fundador de discursividade.

Marília Amorim

Do início da dissertação até o presente momento buscamos descrever aspectos relevantes sobre o TILSP, tanto em termos históricos como de formação profissional. Durante o último capítulo começamos a costurar essas questões com a base teórica que fundamenta essa pesquisa: a teoria do Círculo de Bakhtin.

As especificidades do nosso objeto de estudo apontaram para o uso dessa teoria como coerente para responder às questões de pesquisa levantadas, não só por oferecer subsídios fundamentais para o estudo da linguagem em condições de uso, como também por indicar caminhos metodológicos que abarcam a totalidade e a especificidade do corpus escolhido para a pesquisa.

O construto teórico adotado como fundamentação dessa pesquisa, diferente do que costumeiramente se pensa, não foi elaborado apenas pelo filósofo Mikhail Bakhtin, mas caracteriza-se por um conjunto de reflexões sobre a língua, a linguagem e os discursos que emergem das situações concretas de produção, iniciado por ele, chamado pelos pesquisadores e comentadores de suas obras por pensamento bakhtiniano, e, segundo Brait e Campos (2009), estudiosas do legado teórico deixado pelo filósofo russo, foi desenvolvido em um constante diálogo com intelectuais, cientistas e artistas na Rússia no período de 1920 a 1970.

Esse grupo, chamado de Círculo de Bakhtin, congregou, em um turbulento período da Rússia czarista e em diferentes momentos histórico-geográficos dessa época, linguistas, filósofos, biólogos, musicistas e literários que explanavam,

refletiam, versavam e publicavam obras de cunho filosófico linguístico, deixando um legado teórico para diferentes leituras, explanações e aplicações nos estudos relacionados à língua, linguagem, discurso, poesia e literatura.

Brait (2008), afirma que Bakhtin, bem como os membros de seu Círculo, não propôs, formalmente, uma teoria de análise do discurso, do mesmo modo quando fazemos referência à Análise do Discurso Francesa, “entretanto, também não se pode negar que o pensamento bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para o estudo da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas como na diversidade de sua riqueza cotidiana” (p. 9).

Nesse sentido, faremos um diálogo, neste capítulo, com essa teoria relacionando-a com a prática de tradução e interpretação da língua de sinais na esfera televisiva, gênero jornalístico, adotando como diretrizes os conceitos de enunciação, enunciado concreto, gêneros do discurso, texto, discurso e autoria.