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A interpretação na esfera televisa demanda do profissional TILSP envolvimento para além do ato interpretativo em si. A sua atuação inicia-se anterior ao momento da gravação quando, em reunião com a equipe de jornalistas, produtores e editores, tem acesso ao material que será transmitido no programa.

Esse acesso prévio ao conteúdo a ser exibido no programa acontece (ou deveria acontecer) também quando o TILSP atua em outros gêneros discursivos

como no gênero conferência, por exemplo, em que, assim como os intérpretes de línguas orais, o acesso ao material do conferencista possibilitará ao TILSP “planejar” sua interpretação por meio do acesso a terminologias especificas da temática abordada pelo convidado, oferecendo a possibilidade de pesquisa prévia desses termos desconhecidos e o planejamento de estratégias discursivas para interpretá- las quando não houver um léxico correspondente em língua de sinais específico para aquele termo.

Essa habilidade de construir suas escolhas linguísticas, enunciativas e discursivas por meio do acesso prévio ao material referente à qual se interpreta é denominado por Aubert (1994) de competência referencial. Segundo o autor essa competência faz parte das habilidades necessárias que um tradutor/intérprete deve possuir para exercer a prática tradutória. Trata-se do desenvolvimento da capacidade de se buscar conhecer e familiarizar-se com os referentes dos diversos universos que podem ocorrer em uma tradução/interpretação.

No caso da atuação do TILSP na esfera televisiva a competência referencial é fundamental por dois principais fatores: 1) o público-alvo da interpretação nessa esfera é muito maior do que seria em uma sala de aula, em um curso, palestra ou conferência, logo a probabilidade de alcance de um erro da interpretação seria mais abrangente acarretando para o TILSP e para a produção audiovisual interpretada problemas futuros, inclusive de cunho institucional; e 2) pela simultaneidade envolvida no ato interpretativo nesta esfera. Em uma produção audiovisual transmitida ao vivo, por exemplo, a interpretação deve finalizar juntamente com a fala do locutor para que a sinalização não seja cortada pela vinheta de intervalo ou encerramento da produção interpretada. Nesse sentido, recursos de interpretação de língua de sinais como os de expansão e compressão mapeados e descritos por Lawrence (2007)21, por exemplo, devem ser previamente planejados.

21 Lawrence (2007) verificou que há enunciados em American Sign Language para as quais não é possível encontrar correspondências exatas no Inglês americano e vice-versa, exigindo do intérprete dessas línguas flexibilidade linguística para realizar expansões (expansion) e compressões (compression) discursivas, tanto na língua de sinais como na língua oral, para alcançar o sentido produzido nos discursos de língua fonte. Essa técnica é baseada nos estilos discursivos presentes na sinalização de surdos americanos nativos que utilizam esses recursos para expressar conceitos e ideias que ainda não estão lexicalizados. A autora mapeou sete tipos de expansões/compressões: 1) Contrasting Feature; 2) Feating; 3) Reiteration; 4) Explanaing by examples; 5) Usign 3-D Space; 6) Scaffolding, 7) Describe Then Do (LAWRENCE, 2007, p. 14). Essa técnica é utilizada por alguns formadores de intérpretes nos Estados Unidos e foi trazido para a formação de intérpretes no Brasil

Relataremos aqui como é construída a competência referencial de interpretação no Programa Sentidos. Consideramos relevante descrever como é realizado esse processo por ser ele de extrema importância para a interpretação nessa esfera, conforme já sinalizamos anteriormente, além de fazer parte da totalidade da produção escolhida como corpus desta pesquisa.

A primeira atividade realizada como parte da competência referencial antes da interpretação da língua de sinais do Programa Sentidos é o acesso ao texto dos enunciadores por meio de dois tipos de material escrito. O primeiro é chamado de espelho (anexo 1). Por meio deste material o TILSP22 tem conhecimento das matérias que serão exibidas no programa a ser interpretado, obtendo um primeiro conhecimento dos assuntos que serão abordados, podendo acessar seu conhecimento prévio sobre tais assuntos e saber se as reportagens que serão exibidas trazem temas que fazem parte de sua bagagem cultural, repertório linguístico e de seu conhecimento de mundo.

O segundo material é chamado de script (anexo 2). Nesse material está transcrito todo o texto verbal do apresentador, dos entrevistados e dos off’s, que são os áudios gravados pelo repórter, sem a sua aparição, sobre as imagens da reportagem. A partir deste texto o intérprete tem o primeiro acesso ao discurso da língua fonte, possibilitando-lhe o mapeamento de terminologias desconhecidas e de enunciados em que será necessário utilizar recursos e estratégias interpretativas, como os tipos de expansão ou compressão, por exemplo, e também ao de nomes de pessoas, de empresas e outras instituições que demandará o uso da soletração em alfabeto datilológico.

Após o primeiro acesso, propriamente dito, ao texto do programa a ser interpretado, o segundo acesso acontece por meio da sua versão audiovisual finalizada com as reportagens, com os elementos visuais, verbo-visuais e áudios. O TILSP assiste toda a produção, desde as cabeças das reportagens, que pelo intérprete americano Aaron Rudner (Mestre em Linguística pela Gallaudet University e Doutorando em Linguística pela PUC-RJ, intérprete há mais de 30 anos nos Estados Unidos) que realiza formação desses profissionais, também, na América Latina.

22 Embora o intérprete do Programa Sentidos seja o autor desta pesquisa, nos referiremos ao sujeito do discurso presente na interpretação, sempre em terceira pessoa, mais especificamente como TILSP e/ou intérprete. Essa escolha está fundamentada teoricamente no pensamento bakhtiniano, descrito no capítulo seguinte e na metodologia.

correspondem a uma pequena introdução do que será exibido no programa, até o seu encerramento. Nessa primeira visualização do Programa o TILSP percebe os elementos da totalidade que podem influenciar na interpretação para a língua de sinais, como o posicionamento dos entrevistadores e dos entrevistados, as artes, que são as edições com textos, que denominaremos como elementos verbo- visuais23, assim como também é informado pelo editor de possíveis trechos que serão legendados pelo fato da fala de algum entrevistado não estar clara, devido o grande número de pessoas com deficiência que aparecem no programa com problemas de fluência na linguagem oral.

Finalizado a segunda etapa da competência referencial para a gravação do Programa, o passo seguinte é a própria interpretação que acontece no estúdio da instituição financiadora da produção.

Nas primeiras experiências de gravação do programa o processo de construção da competência referencial não era realizado dificultando, em alguns momentos, o desempenho no ato interpretativo, visto que havia momentos em que os locutores enunciavam termos que não faziam parte do repertório linguístico do TILSP, obrigando-o a criar, na execução da interpretação, estratégias discursivas de último momento para transmitir ao telespectador surdo o sentido dos discursos ali produzidos.

O acesso prévio à totalidade do programa também abriu a possibilidade de uma maior liberdade de transmissão do sentido do discurso, desprendido da forma da língua fonte, dando ao TILSP a possibilidade de transitar com maior naturalidade na língua alvo. A simultaneidade da interpretação nessa esfera e a urgência e preocupação de estar colado na fala dos locutores do programa, em alguns momentos, obriga o TILSP a prender-se a forma linguística da língua fonte e a realizar não uma interpretação, propriamente dito, mas um português sinalizado distanciando-se da discursividade presente da própria língua de sinais.

Existem, além desses aspectos supracitados, outros fatores que interferem na construção e execução da interpretação televisiva da língua de sinais, pois “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado

23 Na análise do corpus esses aspectos pontuados serão melhor percebidos por meio da transcrição dos elementos linguísticos e extralinguísticos.

pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116).

Na interpretação da língua de sinais na esfera televisiva, no ato interpretativo, isto é, na realização da enunciação, a situação social mais imediata é caracterizada pela interação do TILSP com o público-alvo de sua interpretação, que no momento da captação da imagem, não acontece com um auditório presente, empírico, tal como é na interpretação em outras esferas. O interlocutor do TILSP nesta esfera, no momento da interpretação, é “corporificado” na câmera que captura sua imagem. Embora não haja no estúdio telespectadores surdos assistindo sua interpretação, o TILSP deve estar consciente que seu público é real e muito maior do que ele pode imaginar. Sua produção discursiva, sua enunciação, é direcionada a um auditório social, pois “[...] não existe interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116).

Bakhtin/Volochínov (2009), pontua que uma enunciação sempre está direcionada a alguém, ela é produto de interação de dois sujeitos organizados socialmente e “[...] mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social a qual pertence o locutor” (p. 116). O TILSP, quando interpreta para uma câmera, está, na verdade, diante de um público de telespectadores surdos que buscam na produção audiovisual interpretada o que as pessoas ouvintes também procuram quando se posicionam diante de uma programação televisiva, que é saber de notícias, conhecer os últimos fatos ocorridos na política, economia, entreter-se com uma programação diferenciada, etc.

Se “a palavra dirige-se a um interlocutor” e “[...] ela é função da pessoa desse interlocutor [...]” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116), o TILSP é o enunciador responsável pela construção da ponte discursiva entre o enunciador da programação televisiva e o interlocutor a qual se dirige a palavra por ele enunciada. Nesse caso o interlocutor não possui acesso natural à palavra desse enunciador por ser ela produzida em outra língua que é acessada, em termos neurossensoriais, por outras vias havendo a necessidade de uma mediação, de uma construção dialógica, e é o TILSP o sujeito que possui esse “poder” de mediação entre os sentidos que circulam nos discursos produzidos nessas diferentes línguas.

Passaremos, a partir do capítulo seguinte, à metodologia da pesquisa explicitando os procedimentos utilizados para descrição e transcrição do corpus para, posteriormente, encaminharmo-nos para a análise dos dados.

CAPÍTULO 5

A construção verbo-visual do Programa Sentidos

Pode-se, no entanto, dizer que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou desacordo de alguma coisa. Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fosse indiferentes uns aos outros, encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto.

Bakhtin/Volochínov

Neste capítulo explicitaremos os procedimentos metodológicos para descrição e análise do corpus. Primeiramente, serão explicitados os critérios de escolha do corpus para em seguida apresentarmos a proposta metodológica de enfrentamento, descrição e análise a partir dos conceitos bakhtinianos de exotopia e cronotopo, para, posteriormente, apresentarmos os instrumentos utilizados para transcrição dos elementos linguísticos e extralinguísticos, considerando a totalidade verbo-visual constituinte do corpus escolhido. Neste capítulo também realizaremos a análise do corpus por meio das categorias sintaxe e léxico concernindo a totalidade verbo- visual na construção desses elementos durante a interpretação da libras no gênero jornalístico, esfera televisiva.