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O conceito de gêneros do discurso presente no pensamento bakhtiniano foi elaborado por três membros do Círculo: Pavel N. Medvedev (1891-1938), Valentin N. Voloshinov (1895-1936) e Mikhail Bakhtin (1895-1975). Esses três intelectuais compuseram uma obra que se articula, se completa e se costura dialogicamente na definição desse conceito. Para falar de gênero do discurso dentro da arquitetônica do pensamento bakhtiniano é necessário percorrer a trajetória conceitual e teórica elaborada por esses três teóricos.

O interesse do Círculo, em principio, era abordar e investigar o discurso literário. No entanto, Brait (2003) aponta que já em 1926, na obra Discurso na arte e discurso na vida, se evidencia uma característica marcante em toda a obra de Bakhtin e de seu Círculo que é “[...] proceder a observações do discurso não artístico, cotidiano, para, em seguida, voltar às especificidades do discurso literário e/ou poético” (p. 127). Segundo a autora esse procedimento, que percorre o discurso literário e cotidiano abordando a linguagem como um todo, colabora não só para os estudos literários, mas também para os estudos linguísticos, enunciativos e discursivos.

O conceito de gênero do discurso no pensamento bakhtiniano, segundo Machado (2005) é concebido como um conceito plural, pois se reporta às formações combinatórias da linguagem em suas dimensões verbal e extraverbal. Além disso, articula formas discursivas criadoras de linguagem, de visões de mundo e de sistema de valores configurados por pontos de vista determinados.

Seguiremos esse movimento dialógico construído pelo Círculo de Bakhtin, perseguindo essa pluralidade constitutiva da obra bakhtiniana, para compreendermos a tradução/interpretação a partir da óptica dos gêneros do discurso, abordando a totalidade desses atos enunciativos, conforme pontuamos no tópico anterior, considerando não apenas a abstração linguística envolvida nessas enunciações, mas seus apontamentos discursivos para dentro e para fora de si mesmo, produzindo e reproduzindo os sentidos envolvidos em uma mediação enunciativo-discursiva.

Bajtin/Medevdev (1994), buscando a especificidade do gênero literário, define o gênero como a forma tipificada da totalidade de uma obra, de um enunciado, substancial, concluída e solucionada. Trata-se de uma totalidade temática, orientada pela realidade circundante, marcada por um tempo e um espaço. Segundo os autores é o gênero que dá forma a uma obra, isto é, a um enunciado concreto, seus elementos estruturais só podem ser compreendidos em conjunto e na relação com o gênero.

A totalidade do enunciado está duplamente orientada para a realidade: o primeiro sentido dessa orientação é determinado por um espaço e um tempo real, ligada, especificamente, à esfera de produção ideológica. Essa primeira orientação é direcionada à vida, aos ouvintes e receptores de determinada obra e está diretamente ligada às condições de execução e percepção e implica na existência de um auditório, na reação de determinados receptores, isto porque entre o receptor e o autor se estabelece uma determinada inter-relação, pois a obra ocupa o seu lugar na vida cotidiana. É nessa orientação que a obra participa do cotidiano a partir do ouvido, executado, lido em determinado tempo, lugar e circunstância (BAJTIN/MEDVEDEV, 1994).

A segunda orientação do gênero está direcionada para sua interioridade, ou seja, para as coerções que são instituídas a partir de si na relação com o tempo e com o espaço em que é produzido. Sua forma, sua estrutura, seu estilo e seu conteúdo temático são determinados pelo contexto de produção, de sua realização.

A partir da dupla orientação do gênero com a realidade, Bajtin/Medvedev (1994) abordam o conteúdo temático dessa totalidade afirmando que o tema não pode ser instituído pelos aspectos linguísticos, pela estrutura da língua, somente, pois o tema sempre transcende a língua. O tema não está centrado no significado das palavras e das orações, mas só se constitui com sua ajuda, assim com a ajuda de todos os elementos verbais (semânticos, lexicais, sintáticos, etc.) da língua. Para os autores o tema de uma obra, de um enunciado concreto, só é definido enquanto ato sócio histórico determinado, sendo, portanto, inseparável na realização concreta e real na vida. O conteúdo temático é inseparável da sua orientação inicial, ele é determinado pela sua realidade circundante, é indivisível, inseparável, das circunstâncias de lugar e de tempo.

Bajtin/Medvedev (1994) afirmam, então, que a dupla orientação do gênero (do exterior – espaço, tempo, auditório, receptor – e interior – tema, estrutura, aspectos linguísticos) é um todo indissolúvel, inseparável, sendo determinados mutuamente em uma relação unitária, porém bilateral. A unidade temática de um enunciado e seu lugar na vida cotidiana se funde no gênero.

As práticas de tradução e interpretação, isto é, de mediação linguística- enunciativa-discursiva entre sujeitos socialmente singulares e ideologicamente situados em diferentes lugares, podem ser abordadas a partir dessa dupla orientação. O ato interpretativo, mais especificamente, é determinado não somente pelas escolhas verbais por parte do enunciador que está na zona de mediação, o intérprete, mas suas escolhas são determinadas a partir de um movimento bidirecional vindo do exterior para o interior, a partir de quem é o interlocutor no qual o discurso deverá alcançar, bem como da situação real e concreta em que se dá essa interação, é que suas escolhas estilístico-composicionais serão realizadas.

Souza (2002), chama atenção para a sociologia do gênero presente nas obras do Círculo de Bakhtin. O autor persegue, de maneira incisiva, a teoria do enunciado concreto construído pelos três autores adotados neste item para a definição de gêneros do discurso e afirma que: “os gêneros do discurso se tornam os modelos padrões da construção de um todo verbal, como que uma tipologia estilístico-composicional das produções verbais” (p. 99).

A sociologia do gênero pontuado por Souza (2002) pode ser mapeada, também, em Bakhtin/Volochínov (2009) quando abordam a questão do enunciado e da enunciação, bem como da interação verbal, do tema e da significação presente dos enunciados. Bakhtin/Volochínov (2009) consideram o signo linguístico como material semiótico-ideológico, congregando, em uma fusão conceitual, o que chamam de domínio dos signos e esfera ideológica afirmando que “o domínio do ideológico confunde com o domínio dos signos [...]” e que são “mutuamente correspondentes” (p. 32), pois “[...] onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que o é ideológico possui um valor semiótico” (p.33).

Bakhtin/Volochínov (2009), afirmam que cada signo ideológico não é uma sombra da realidade, um reflexo apenas, mas um fragmento material a qual representa, corporificado, “seja como som, como massa física, como cor, como

movimento do corpo ou como outra coisa qualquer” (p. 33). Essa materialidade específica dos signos ideológicos, segundo o autor, exige, em termos metodológicos, um estudo unitário e objetivo. Por esse motivo Bakhtin/Volochínov considera o signo como um fenômeno do mundo exterior, passível de análise e estudo, notável em experiência exterior.

Para eles é a partir do material verbal, no elo entre a estrutura sociopolítica e a ideologia, que surgem todas as formas e os meios de comunicação verbal. Bakhtin/Volochínov (2009) afirmam que das “[...] formas e tipos de comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala” (p. 43). A variedade dos atos de fala, tipos de discurso, é determinada pela psicologia social14, ou seja, pela relação covariante da produção ideológica e da estrutura sociopolítica em que se dá essa produção. O autor deixa claro que é a partir da “enunciação” que se manifesta essa relação sendo incorporadas pelo material verbal e pelas demais manifestações de natureza semiótica como, por exemplo, a mímica, a linguagem gestual, os gestos condicionados, etc.

A esses tipos de discurso e diferentes formas da comunicação verbal, Bakhtin (2010a) denomina gêneros do discurso, definindo-os como tipos relativamente estáveis de enunciados e pontua que sua composição é determinada por três importantes elementos: o conteúdo temático (acabamento específico), o estilo (seleção dos recursos lexicais, fraseológicos, e gramaticais da língua) e, a construção composicional (sequência organizacional) que são determinados pela especificidade de diferentes campos de comunicação.

Esses três elementos comportam a totalidade do gênero e, segundo, Rocha (2010), ignorar essa correlação de conceitos é aceitar apenas a relativa estabilidade dos enunciados, minimizando os conceitos de gênero a uma unidade de classificação textual.

14 Psicologia social é um conceito marxista que Bakhtin/Volochínov (2009) trazem para a sua obra. Segundo os autores o conceito marxista de “psicologia social” é um “[...] elo entre a estrutura sociopolítica e a ideologia no sentido estrito do termo (ciência, arte, etc.)” (p. 42) e explicita a materialização desse elo na interação verbal. “A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar “interior” (na “alma” dos indivíduos em situação de comunicação); ela é, pelo contrário, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto, no ato. Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no material verbal” (p. 43).

O tema, que faz parte da totalidade do gênero do discurso bakhtiniano, é abordado também por Bakhtin/Volochínov (2009) e corresponde ao sentido da enunciação e é sempre único. O tema sempre será determinado pela condição histórica que está sendo produzido e não é determinado apenas pelas formas linguísticas, conforme já pontuado anteriormente, mas também pelos aspectos extraverbais que afetam o enunciado, também, por dentro efetivando a temática do irrepetível ato de enunciação. “O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ele pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema” (p. 134).

Os gêneros têm propósitos discursivos definidos, que consideram as características de sua esfera, materializando-se a partir de um conteúdo temático determinado, que contempla o seu objeto discursivo e sua orientação valorativa específica para com ele. Assim, o conceito de conteúdo temático, diferentemente de tema, está mais relacionado com as formas de produção, ou melhor, com as possibilidades viáveis de significar dentro de um gênero específico, que possibilitam a materialização do enunciado concreto (ROCHA, 2010).

O estilo, segundo aspecto da totalidade do gênero, é definido pelas escolhas fraseológicas, gramaticais, semânticos e lexicais, isto é, são as seleções dentro de formas tipificadas especificas. Para Bakhtin (2010a), o estilo se revela nas diversas atividades de comunicação humana. A especificidade de cada campo de comunicação vai determinar o estilo que está empregado no gênero, pois “o estilo integra a unidade do gênero do enunciado como seu elemento” (p. 266). O estilo vai construir um gênero, a partir de uma relação covariante constituindo-se a partir de determinados estilos específicos de enunciados concretos. Assim como o enunciado se constitui na interação discursiva, o estilo só se concretiza no enunciado. O estilo está para o enunciado, como o enunciado está para a interação discursiva:

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer fenômeno concreto de linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do gênero discursivo já se trata de fenômeno estilístico. Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante é um ato estilístico (BAKHTIN, 2010, p. 269).

A terceira dimensão do gênero do discurso, a forma composicional, constitui- se na realização material de um enunciado concreto e é caracterizado pela alternância dos sujeitos falantes e pelo acabamento específico. O critério de acabamento é dado pela possibilidade de resposta e caracteriza-se por: 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas típicas de acabamento na estruturação do gênero.

Bakhtin (2005), atesta essas questões do gênero ao analisar as obras de Dostoiévski chegando à conclusão que todas essas características constitutivas do gênero do discurso são determinadas pelo momento sócio histórico em que ele esta situado. Na obra Problemas da Poética de Dostoiévski, escrito em 1929 e publicado, pela primeira vez, em 1969, Bakhtin apresenta outra característica fundante dos gêneros do discurso: a tradição. Segundo o autor, por uma lógica abstrata, os gêneros sempre são e não são os mesmos, estão em constante renovação/atualização recordam o seu passado, o seu começo, pela obediência àquilo que é típico da tradição ao lado da inserção do que é novo no gênero. Isso assegura a unidade e a continuidade do gênero, na medida em que o gênero apresenta os elementos de princípio (archaica), vestígios da sua tradição, que estão sempre se atualizando de acordo com o desenvolvimento da literatura (e da vida em sociedade).

Partindo dos postulados bakhtinianos sobre os gêneros do discurso e sobre a realização dos enunciados a partir de diferentes esferas ideológicas, considerando não apenas os seus aspectos inerentes, isto é, sua abstração linguística, mas também aquilo que está posto no exterior e que afeta o enunciado por dentro, propomos um olhar sobre a prática da tradução/interpretação, mais especificamente, da interpretação da língua de sinais.

Como sujeito responsável pelo ato enunciativo de mediação entre sujeitos que desconhecem as línguas a qual se pretende ter acesso, o intérprete, enquanto enunciador construtor da ponte interativa, realizará suas escolhas linguísticas a partir do espaço-tempo (cronotopo) de sua atuação. Sua enunciação, nas duas faces da interpretação (língua fonte/ língua alvo) será determinada pelo interlocutor, pelo espaço enunciativo, e pelo estilo do locutor, o primeiro enunciador dessa interação. Isso se dá pelo fato de que o sentido implícito no discurso do locutor deve

alcançar o interlocutor, em sua totalidade, mesmo chegando com defasagem devido aos próprios aspectos de mobilização entre línguas, isto é, de percas na própria tradução.

Para Sobral (2008), a tradução e a interpretação são gêneros que se alimentam de outros gêneros abarcando a multiplicidade dos tipos do discurso, mas que por si só constitui-se por uma ação de recorte do mundo que recorta um recorte, isto é, que origina pelas mãos de um novo autor (ou co-autor) um discurso que vem de outro discurso e que já tem um autor.

E o discurso traduzido tem essa especificidade porque o ato tradutório envolve o essencial de todo gênero: a construção de um arquitetônica discursiva e a instauração de uma dada relação enunciativa que se dirige a determinados destinatários (no caso a destinatários aos quais o autor do texto traduzido não poderia dirigir- se). (p. 69).

Desse modo, entramos em uma questão constitutiva de todo ato interpretativo e tradutório: as questões de texto e de discurso dessa mediação enunciativo- discursiva e da autoria como condição constitutiva do intérprete e tradutor no processo de transmutação de um discurso por meio de outro discurso.

3.3. Texto, discurso e autoria na prática de interpretação da língua de sinais