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Para o Círculo de Bakhtin, o estudo da língua é inseparável da vida, pois é nela, nas relações entre os sujeitos, na realização da língua por meio da interação entre esses mesmo sujeitos, que a linguagem acontece e os sentidos se instauram. O olhar para a linguagem deve ocorrer nas suas reais condições de produção, pois, obrigatoriamente, os sentidos implícitos nessas práticas só emergem na interação real e viva entre sujeitos singulares.

A compreensão do olhar direcionado para as reais condições de uso da linguagem implica na exploração de dois conceitos fortemente presentes nos estudos sobre a linguagem e discurso: enunciação e enunciado. Esses conceitos, também utilizados em outras teorias linguísticas e de análise do discurso, são vestidos de diferentes sentidos e de uso e, conforme mostram Brait e Melo (2009), diferem-se dos sentidos a eles implicados no pensamento bakhtiniano. Segundo as autoras, para algumas teorias a enunciação é caracterizada por processo enquanto enunciado é tomado como produto desse processo e, ainda, em outras, enunciado é tomado como frase ou como cadeias frasais.

Brait (2005), pontua que Bakhtin interessa-se pelas características e formas do intercurso social pelo qual o significado é realizado, procurando explorar a ideia e centrar a discussão no fato de que “[...] a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado” (p. 93).

Nos estudos bakhtinianos, enunciação e enunciado são abordados no conjunto da obra deixada pelo Círculo e aparecem como constitutivos um do outro. Olhar para o enunciado concreto, a partir de lentes dialógicas, significa abordá-lo “[...] muito mais do que aquilo que está incluído dentro dos fatores estritamente linguísticos, o que, vale dizer, solicita um olhar para outros elementos que o constituem” (BRAIT e MELO, 2008, p. 6). Enquanto o conceito de enunciação está diretamente ligado a enunciado concreto e à interação em que ele se dá, “o enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação” (VOLOCHÍNOV s/d. p. 10).

Bakhtin/Volochínov (2009)13 apresenta a enunciação como “produto da

interação entre dois indivíduos socialmente organizados” (p. 116), em que a palavra, enquanto materialização dessa enunciação está sempre dirigida ao outro. O autor afirma que é na enunciação, ou enunciações, pelo fenômeno da interação verbal, que a verdadeira substância da língua se constitui, deixando de ser apenas um sistema abstrato de formas linguísticas, pois “a enunciação só se torna efetiva entre falantes” (p. 132).

13 Os estudos sobre o pensamento bakhtiniano explanam e questionam a autoria de algumas das obras produzidas por esse Círculo, isso porque algumas dessas obras são duplamente assinadas, especialmente O Freudismo, Marxismo e Filosofia da Linguagem e O método formal dos estudos literários. Faraco (2009) relata que a discussão a respeito da autoria de tais obras dividiu a recepção, por parte dos pesquisadores, em três direções: a) daqueles que respeitam as autorias das edições originais e só reconhecem como de autoria do próprio Bakhtin os textos publicados em seu nome; b) os que atribuem a Bakhtin a autoria de todos os textos; e c) uma solução que inclui nas obras dois nomes de autoria (Bakhtin/Volochínov, Bakhtin/Medvedev). Nesse trabalho, juntamente com este autor, adotamos a primeira direção. Os bakhtinianos brasileiros adotam essa postura desde os estudos da década de 1980 (vide BRAIT, B.; FARACO, C.; TEZZA, C.; RONCARI, L.; BERNARDI, R. M.; (Orgs) Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hatier, 1988) No entanto, durante nosso texto serão realizadas citações de dupla autoria, tal como está na terceira direção pontuada por Faraco (2009), devido a questões de normas de citação utilizada atualmente nos estudos bakhtinianos.

A enunciação é protagonizada, a priori pela interação entre dois sujeitos: o locutor e o interlocutor, isso porque a palavra comporta duas faces, “[...] ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (p. 117). Nessa interação, o locutor é aquele que, a princípio, detém a palavra, de forma inalienável, é ele o “dono da palavra” (p.117). No entanto esse seu domínio acontece no momento de materialização dessa palavra, no instante do ato fisiológico de sua externalização, pois a palavra, enquanto produto dessa enunciação é o “[...] território comum do locutor e do interlocutor” (p. 117).

Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ele se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 117).

O falante ao enunciar-se, falar, expressar-se, coloca em movimento no seu enunciado uma série de respostas que foram construídas na interação com outros falantes em outros momentos históricos, em determinadas esferas ideológicas, sendo ele, nessas interações, ouvinte (empiricamente) ou, mesmo, falante, pois quando interage com outro por meio da comunicação discursiva já assume os dois papéis, isto é, ele é falante-ouvinte/ouvinte-falante e

[...] pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN, 2010, p. 272).

Bakhtin (2010), salienta a presença do falante e de sua “posse” do sistema abstrato da língua para, então, produzir enunciados. Dessa forma, compreende-se que não há sujeito sem discurso e nem discurso sem sujeito. A linguagem constitui o homem a partir de sua relação com o outro e ela só pode ser constituída se o homem se apossar da língua para recortar a realidade.

A enunciação, então, é esse ato de posse da língua para o exercício da linguagem na vida, justamente porque ela, a enunciação, está “na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia a energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único” (VOLOCHÍNOV, s/d, p. 10).

Nessa perspectiva, a prática de tradução/interpretação é abordada como um ato enunciativo-discursivo, pois constitui-se de uma prática de linguagem que medeia a interação entre diferentes sujeitos. A interação entre o locutor e o interlocutor, em uma situação de interação que envolve línguas diferentes em que os enunciadores desconhecem a língua um do outro, só é realizada por meio do ato da tradução/interpretação, isto é, por este ato de enunciação que constrói a ponte discursiva entre locutor e interlocutor.

Encarar a tradução/interpretação como ato enunciativo-discursivo a partir da perspectiva dialógica de estudo da linguagem, significa enxergar a materialidade produzida nesse ato como um enunciado concreto, concebido como uma unidade real na constante cadeia de comunicação discursiva. Esse enunciado concreto compõe, legitimamente, o discurso e está para além da estrutura da língua, de suas unidades e de seus elementos; esta, na verdade, no uso de seus falantes em determinadas situações e momentos históricos.

Sobral (2008), acentua a questão da tradução/interpretação como enunciado concreto ao afirmar que traduzir significa “[...] mobilizar um texto por meio de outro discurso” (p. 70) e que o tradutor/intérprete ao dirigir-se a um público a que um autor não pode se dirigir cria, necessariamente, novas relações enunciativas e discursivas, isto é, uma nova relação entre o autor e o público.

A especificidade da tradução está no fato de que, em primeiro lugar, o discurso passa a ter, além do locutor e dos interlocutores “originais”, um interlocutor que também é locutor (o tradutor) e outro grupo de interlocutores (os leitores da tradução). O discurso a ser traduzido não pode incorporar diretamente esse outro grupo de interlocutores, assim como o discurso gerado pela tradução não pode incorporar os leitores do “original”. (SOBRAL, 2008, p 70).

A tradução/interpretação, enquanto ato enunciativo-discursivo é realizado em situações concretas de interação entre sujeitos organizados socialmente e ultrapassam a dimensão linguística, os aspectos lexicais, morfológicos, sintáticos, textuais, pois “[...] essas relações entre enunciações plenas não se prestam à gramaticalização, uma vez que, reiteramos, não são possíveis entre as unidades da língua, e isso tanto no sistema da língua quanto no interior do enunciado” (BAKHTIN, 2010, p. 276).

Bakhtin (2010), traça um paralelo entre oração e enunciado, explicitando a diferença entre os dois e salienta que devem ser estudados de maneira diferente: a oração deve ser analisada a partir do enunciado. A oração não tem relação com o contexto do discurso, pois “[...] se ela é um enunciado pleno e acabado (uma réplica do discurso), então ela estará imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciações de outros [...]” (p. 277). Mesmo as pausas que são abordadas como elementos importantes na análise da fala, não podem ser consideradas apenas como unidades gramaticais, elas são reais e são determinadas pelo falante.

A oração enquanto unidade da língua carece de todas essas propriedades: não é delimitada de ambos os lados pela alternância dos sujeitos do discurso, não tem contato imediato com a realidade (com a situação extraverbal) nem relação imediata com enunciados alheios, não dispõe de plenitude semântica nem capacidade de determinar imediatamente a posição responsiva do outro falante, isto é, de suscitar resposta. (BAKHTIN, 2010, p. 278).

Segundo Voloshinov/Bajtin (1997), em todo enunciado há uma ligação entre a parte verbal (a palavra) e a extraverbal (a dimensão social) estabelecida a partir de três fatores: o horizonte espacial e temporal comum aos interlocutores (quando e onde ocorre a enunciação); o horizonte temático (do que se fala) e o horizonte axiológico (entonação valorativa).

O sentido do enunciado só pode ser compreendido na articulação desses três fatores, considerando que a situação extraverbal é parte constitutiva da estrutura da significação. O enunciador, em um espaço e tempo específicos, seleciona os recursos da língua necessários para compor verbalmente o seu texto, avaliando a situação, além de refletir o respectivo contexto, integra uma valoração. De modo que

a cada novo enunciado, surge outra significação, determinada pela interação entre o enunciador (autor), o seu interlocutor (o leitor) e o tópico do discurso (o que ou quem). Segundo Voloshinov/Bajtin (1997), a entonação é social por excelência, pois é pela entonação que o discurso se insere na vida e nela o enunciador entra em contato com o interlocutor.

O tradutor/intérprete, como enunciador/mediador em uma interação entre sujeitos que não tem acesso aos discursos nas línguas originais, também seleciona os recursos linguísticos mais adequados para conduzir o discurso da língua fonte à língua alvo a partir de um espaço-tempo específico. Sua tradução/interpretação, isto é, a enunciação por ele realizada, não se estagna no nível linguístico, pois se assim fosse, sua atuação seria limitada aos seus componentes abstratos (fonéticos, morfológicos, sintáticos, etc.) e a relação limitar-se-ia a busca de correspondências linguísticas e terminológicas entre as línguas envolvidas em um ato tradutório/interpretativo. Essa enunciação subsiste na dimensão discursiva e ideológica, na passagem da significação linguística para a o uso real do discurso, ou seja, nas situações concretas de mediação entre esses interlocutores “discursivamente estranhos”.

Se os enunciados concretos nascem, vivem e morrem no processo de interação social entre os participantes da enunciação e sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação (BAJTIN/VOLOSHINOV, 1997) a tradução e interpretação deve ser estudada, analisada e avaliada a partir das situações reais de produção e interação considerando os sujeitos envolvidos nessa interação, os discursos a serem mobilizados, tanto em língua fonte como em língua alvo e a concretude da realização.

Para isso, é preciso compreender que todo enunciado está inserido em um tipo de esfera da atividade humana e ele, o enunciado, se referirá à esfera pela qual foi produzido, desde a seleção dos recursos da língua (lexicais, fraseológicos e gramaticais), como também na composição estética e nos temas abordados (BAKHTIN, 2003a). Cada campo de atividade social elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, denominados gêneros do discurso.