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e de frases escritas ou como um trecho retirado de uma obra, tal como é definido no Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss (2010). A concepção de texto em Bakhtin, assim como em toda a sua reflexão acerca da língua e da linguagem, transcende a definição que abarca, apenas, a abstração linguística. No texto O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas, que constitui-se de notas escritas em 1959-1961 publicadas na revista russa Questões de literatura (1976) sob a responsabilidade de V. V. Kojínov (SOBRAL, 2009) e organizado, posteriormente, na coletânea Estética da Criação Verbal (2010), Bakhtin expande o conceito de texto, ultrapassando a linha divisória entre o que é texto verbal (linguístico) e textos de outras naturezas, ao considerá-lo como um conjunto coerente de signos. O autor afirma que, se partirmos deste pressuposto, a arte, a musicologia, as artes plásticas,

também operam com textos. “São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos” (p. 307). A expansão do conceito de texto vai mais além, quando ele afirma que todo texto, oral ou escrito, compreende um número considerável de elementos naturais diversos que estão desprovidos da análise linguística em si, e seria, por exemplo, a questão da precisão oratória (ou como colocado pelo autor, dicção ruim), deterioração de manuscritos, etc.

Neste ensaio também é possível ouvir ecos da definição de alteridade, conceito fortemente presente no pensamento bakhtiniano, principalmente nas afirmações de que as ciências humanas opera sobre pensamentos de outros, voltados para os sentidos e significados dos outros e que são realizados, materializados, encarnados, em forma de texto. “Todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve)” (p. 308).

Bakhtin (2010), chama atenção para um aspecto de extrema importância em relação ao texto: o sistema da linguagem que está por trás dele. É esse sistema que possibilita o (s) autor (es) mobilizarem, expressarem-se, criarem, por meio do texto, fazendo dele, ao mesmo tempo em que é marca refletida e refratada do pensamento de outro (s), algo único, irrepetível, individual, singular, “[...] e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado)” (p. 310).

A singularidade natural (por exemplo, as impressões digitais) e a unicidade significante (semiótica) do texto. Só é possível a reprodução mecânica das impressões digitais (em qualquer número de exemplares); é possível, evidentemente, a mesma reprodução mecânica do texto (por exemplo, a cópia), mas a reprodução do texto pelo sujeito (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva (p. 310/311).

A singularidade do texto, enquanto ato irrepetível, pontuado por Bakhtin, é articulado com a capacidade humana de ser pela linguagem, na relação interativa com o outro por meio do uso de sistemas semióticos linguísticos. “O acontecimento do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (p. 311). Segundo o autor, todo sistema de signos, ou seja, qualquer língua é possível ser traduzido para outros sistemas

signicos, mas o texto, diferente dos sistemas linguísticos, tal como é abordado pela linguística descritiva, “[...] nunca pode ser traduzido até o fim, pois não existe um potencial texto único dos textos” (p. 311).

Bakhtin (2010) aborda, também, a relação língua/fala/enunciado/comunicação discursiva. Para o autor não é possível identificar os limites entre língua e comunicação discursiva, tal como é possível identificar entre fala e língua, já que a fala é composta por enunciados. Essa impossibilidade de identificação se dá devido a cadeia ininterrupta dialógica presente na comunicação discursiva, pois um enunciado é sempre resposta de outro e instituidor de novos enunciados. Então, não existe um ponto inicial e um ponto final dessa cadeia comunicativa, pois ela é constitutiva do discurso como em um “círculo virtuoso”.

O enunciado, enquanto elo de toda a comunicação discursiva, é composto não apenas pelos elementos linguísticos, que podem ser considerados “internos” ao enunciado, mas também é determinado pelos elementos extralinguísticos que “[...] penetram o enunciado também por dentro” (p. 313). O linguístico e o extralinguístico fundem-se no acontecimento do enunciado interna e externamente. “Do ponto de vista dos objetivos extralinguísticos do enunciado todo, o linguístico é apenas um meio” (p. 313).

Sobral (2008) aborda o texto, na perspectiva bakhtiniana, ao refletir sobre a atuação do tradutor/intérprete, afirmando que esse profissional, enquanto enunciador presente na zona de mediação enunciativo-discursiva traduz discursos e não (apenas) textos. O autor, ainda, define texto como:

[...] um objeto material que, ao ser tomado como produzido por um sujeito, torna-se um enunciado, um discurso, algo proferido em contexto. Os sujeitos e os contextos não estão submetidos ao texto, pois este não é uma unidade autárquica transferível integralmente de um conhecedor/produtor a um desconhecedor/receptor passivo, o texto não é uma unidade em que há sentidos prontos e acabados, mas feixes de possibilidade de sentidos. O texto é uma materialidade em que só são criados sentidos a partir da discursivização, do uso de textos por sujeitos numa situação concreta, esta sim a instância plasmadora da transformação de frases em enunciados, sempre no âmbito dos gêneros (formas típicas de organizar textos a partir de outros discursos) e das esferas de atividade (o ambiente sócio- histórico específico em que cada gênero se faz presente) (p. 58).

Realizando uma contraposição do que é texto, Sobral (2008) define, em sequência, o que é discurso:

O discurso, por sua vez, é uma unidade de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições sócio-históricas de produção, bem como vinculada constitutivamente (isto é, em sua própria constituição) com outros discursos. Mobilizando as formas da língua e as formas típicas de enunciados em suas condições, o discurso constitui seus sujeitos e inscreve em sua superfície a própria existência e legitimidade social e histórica tanto dos sujeitos como de si mesmo como discurso. (p. 59).

O autor ainda afirma que o discurso recorre a textos, mas não se confunde com eles, isto porque um texto só faz sentido quando se sabe quem escreveu o quê dirigindo-se a quem em que situação. Essa relação dialógica entre texto e discurso, articulada por Sobral (2008), acompanha toda a obra bakhtiniana oferecendo aos estudiosos da linguagem a expansão do olhar sobre aquilo que se busca encontrar no objeto analisado. No caso dessa pesquisa, em que o objeto de análise é a interpretação da língua de sinais, o material deve ser visto para além da relação de transmutação de códigos entre línguas, mas como um constante processo de discursivização entre os textos produzidos entre locutor e interlocutor.

Todo texto possui um autor, conforme pontua Bakhtin (2010b), e não há a possibilidade de existência de um autor se ele não produzir textos e, por consequência, discursos. O TILSP, assim como todo enunciador que transita na zona de mediação linguística em um ato tradutório/interpretativo, também é dotado dessa característica constitutiva para essa mediação, isto porque, ao ter acesso ao texto de língua fonte, o TILSP vai acessar a sua bagagem cultural e linguística para buscar as melhores possibilidades de ressignificação de sentido na língua alvo. Se colocarmos dois TILSP para realizarem a interpretação de um mesmo discurso de língua fonte e posteriormente analisarmos como ele foi interpretado para a língua alvo, veremos a impossibilidade de igualdade do discurso traduzido. Isso se dá pela característica constitutiva de todo ato enunciativo: a irrepetibilidade, ou seja, cada TILSP buscará melhores maneiras de ressignificar o discurso em língua alvo de acordo com suas experiências tradutórias e interpretativas, com sua bagagem

linguística e discursiva nas línguas envolvidas no ato e, também, quem é o público a ser alcançado pelo locutor.

No entanto a autoria, enquanto condição discursiva de intérpretes e tradutores, por vezes, pode levar esse profissional a considerar-se tão “dono” daquilo que se traduz/interpreta que o discurso não passa mais a ser um discurso traduzido em que é possível encontrar marcas do enunciador da língua fonte, mas torna-se um texto citado, isto é, um texto submetido às vontades e adaptações do tradutor/intérprete. Esse distanciamento do discurso em língua fonte, devido a essa condição autoral do intérprete, pode anular o projeto discursivo do locutor impossibilitando a produção do sentido (daquilo que o próprio locutor planejou dizer) para o seu interlocutor, sendo suprimida por aquilo que o tradutor/intérprete acha por bem traduzir/interpretar ou não.

Para exemplificar essa afirmação trazemos nossa experiência como docente no curso de pós-graduação lato sensu em Interpretação Tradução de Libras – Português na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Em uma das atividades realizadas com os alunos objetivando o aperfeiçoamento da interpretação libras-português (também chamada de interpretação de voz), utilizamos o vídeo de um adolescente surdo (que será chamado aqui de enunciador) discursando, em libras, contra o implante coclear e a favor da utilização da língua de sinais. O cenário montado ao fundo constitui-se de um pano escrito com letras em recorte manual: “Feliz 2010!”, ele, por sua vez, veste uma camiseta regata vermelha e é enquadrado pela câmera da cintura para cima (Figura 1). O objetivo do exercício era, justamente, trabalhar a flexibilidade discursiva do intérprete frente a diferentes textos produzidos a partir de diferentes gêneros e em diferentes esferas de produção de discurso.

O enunciador inicia seu discurso desejando a todos um feliz ano novo com uma expressão sorridente aliada a movimentos de expansão nos sinais, transmitindo o sentido de felicitação. No entanto, quando entra na temática sobre o implante coclear, o enunciador muda a expressão de sorriso para a de seriedade marcando, a partir dos léxicos AGORA e SÉRIO, a transição de um discurso de felicitação para o de protesto.

Figura (1)

Durante a sua fala sobre o implante coclear, o enunciador utiliza léxicos como IMPLANTE COCLEAR, MÉDICO, DOUTOR, SOCIEDADE, ORALISMO, FALA e BEBÊ. No entanto, mesmo dotado de léxicos que estão presentes também no discurso acadêmico a respeito dessa temática, o adolescente surdo não se refere ao implante da mesma maneira como um surdo doutor em educação se referiria. Primeiro, porque ele não é um professor doutor em educação; segundo, porque a situação concreta a qual ele sinaliza não é um ambiente acadêmico; e terceiro, seu objetivo nesse vídeo é registrar, com o conhecimento que ele possui a respeito da temática, um protesto enquanto surdo adolescente membro dessa comunidade.

Durante o exercício, um dos alunos interpretou o discurso presente no vídeo utilizando recursos lexicais em língua portuguesa que destoavam do verdadeiro tema do vídeo. Aquilo que era IMPLANTE COCLEAR em língua de sinais, transformou-se, na língua portuguesa, em “cirurgia para correção da audição visando o amoldamento do surdo em ouvinte”, o que era DOUTOR virou “médico otorrinolaringologista” e o que era BEBÊ tornou-se “criança recém-nascida implantada sem desejo próprio”.

Nesse caso, a interpretação suprimiu o verdadeiro objetivo do discurso do enunciador e excluiu as características constitutivas dessa enunciação. A interpretação ficou presa a equivalências lexicais não contemplando a totalidade do enunciado e nem os aspectos extralinguísticos que “gritavam” para aparecer no

discurso interpretado. Se retirássemos o texto em língua fonte e apresentássemos somente o texto em língua alvo para um ouvinte que não conhece a língua de sinais ele, possivelmente, diria que a interpretação em língua portuguesa oral partiu de um discurso de um sinalizador acadêmico defendendo, de maneira incisiva, o uso da língua de sinais contrariando o implante coclear defendido pelos profissionais da área médica.

A partir desse exemplo podemos considerar a questão da autoria, bem como todas as peculiaridades constitutivas do processo tradutório/interpretativo como uma “zona de perigo”15, visto que o empoderamento do discurso alheio, enquanto enunciador/mediador, pode fazer com que ele, enquanto construtor dessa ponte interativa, na verdade, não a construa entre os polos locutor (falante na língua fonte) e interlocutor (receptor na língua alvo), mas de si mesmo (enunciador/mediador) para o interlocutor (receptor da língua alvo na qual o discurso deveria alcançar em toda a dimensão do sentido produzido em língua fonte). Por esse motivo, a atuação do TILSP frente a textos e discursos, tanto em língua de sinais como em línguas orais, estará sempre submetida à compreensão do (s) outro (s) (considerando aqui o TILSP como um “outro” participante dessa interação discursiva em que a sua compreensão também é constitutiva, e fundamental, para a chegada do discurso em língua alvo), pois “ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é outro sujeito” (BAKHTIN, 2010b, p. 316.).

O discurso vem a existir fundamentalmente por meio de um processo de produção de sentidos realizados por, para e entre sujeitos (SOBRAL, 2008) e por esse motivo não se pode compreender um discurso sem compreender quem são os sujeitos envolvidos na relação dialógica, na situação sócio-histórica de produção do discurso e das coerções presentes nas esferas de produção discursiva.

Desse modo, passaremos, a partir de então, a debruçarmo-nos sobre as características constitutivas da totalidade do corpus desta pesquisa. Por esse motivo, no capítulo seguinte mobilizaremos o que foi pontuado até então a respeito

15 O tradutor/intérprete ao realizar a atividade de mediação linguístico-discursiva já caminha na “zona de perigo” constitutiva desse ato de enunciação. No entanto, chamamos atenção para a especificidade da autoria nesse processo, visto a possível apropriação do discurso do outro como se fosse seu próprio discurso anulando, conforme pontuamos, aquilo que o locutor pretende (ou pretendia) dizer ao interlocutor.

de texto, discurso, autoria, enunciado/enunciação e ato interpretativo, para ler, descrever e analisar a prática de interpretação da língua de sinais na esfera televisiva, especificamente no gênero jornalístico, encarando o TILSP como um enunciador/mediador nessa esfera, o responsável por promover acessibilidade de pessoas surdas à produção cultural áudio visual brasileira.

CAPÍTULO 4

O tradutor intérprete de libras/português (TILSP) como agente de

acessibilidade para surdos na mídia televisiva

A acessibilidade é um direito, não um privilégio.

William Loughborough

Neste capítulo, nosso objetivo é apresentar o TILSP como agente de acessibilidade para surdos na mídia televisiva. Inicialmente, por meio da recuperação de dados estatísticos quanto ao acesso da população brasileira à televisão e de considerações teóricas sobre este dispositivo de comunicação de massa, problematizamos os recursos atuais de acessibilidade utilizados pelas redes concessionárias televisas para que surdos, e pessoas com outras deficiências sensoriais, como, por exemplo, os cegos, desfrutem das programações oferecidas pelas emissoras de TV aberta.

Em seguida apresentamos as determinações técnicas ideais apresentadas na NBR 15.290 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) para a captação, edição e inserção da imagem do TILSP à totalidade de uma programação televisiva para, posteriormente, apresentar as condições reais, e atuais, para a preparação do programa escolhido como corpus dessa pesquisa: o Programa Sentidos.

Finalizamos o capítulo descrevendo como se dá o processo de construção da interpretação, e o próprio processo interpretativo em si, do Programa Sentidos.