• Nenhum resultado encontrado

A DE HOJE: FRAGMENTOS & RELAÇÕES

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 50-56)

PARTE II.................................................................................................................................277 4 DE NÚMEROS, FÓRMULAS & OUTROS: CIDADES DO BRASIL

DESVELO, DESPREZO, DESTERRO

1.3 A DE HOJE: FRAGMENTOS & RELAÇÕES

Segundo CASTELLS (1983, p. 24), a problemática da urbanização reside em quatro dados fundamentais: (1) o acelerado ritmo de urbanização no contexto mundial; (2) a concentração deste crescimento em regiões ditas subdesenvolvidas; (3) o aparecimento de novas formas urbanas como a metrópole e (4) a relação do fenômeno urbano com novas formas de articulação.

50

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

É uma questão, portanto, de tamanho. Excesso. Mas não apenas isso: as formas espaciais das cidades estão relacionadas ao problema ao estabelecerem permeabilidades ou

restrições.

A dita crise urbana pode ser enxergada como o descompasso entre o crescimento e a manutenção de formas coerentes de articulação entre as diversas partes do todo que é a cidade. Como generalização, a cidade cresce, mas as partes não se articulam propriamente entre si ou com o todo. São como montagens pouco conectadas. Partes frouxas de um inteiro mambembe.

A interpretação urbana, portanto, requer não somente a investigação da forma espacial por meio de seus atributos geométricos e físicos. Interessa a forma e sua articulação interpartes,

topológica.

Resiste-se, ainda, em avançar num entendimento mais vasto de urbanização. Ou mesmo de abrir espaço para a interpretação, somando possibilidades, e não restringindo a análise a uma visão particular, assumida como única e correta: postura naïve.

Urbanização como processo e cidade como entidade não podem ser apenas forma espacial reputada como atributo de um sistema cultural específico, como afirma CASTELLS (1983). Nem tampouco associação entre crescimento/estagnação econômica e redução da

população rural. Não é somente estudo morfológico baseado em exemplos localizados historicamente, ou arquitetura edilícia investida no tecido urbano, como deseja PANERAI et al. (1986).

Obviamente pode sim ser cada um dos itens listados anteriormente, mas não como solução pronta, única e apresentada como definitiva para interpretar a leitura da forma da cidade. A geometria da implantação, dos usos, dos atributos estéticos, dos volumes. O foco em urbanismo remanesce cartesiano, com a cidade reputada a partir de seus rebatimentos em épura, decomposta em planos. Deixa-se, com isso, de investigar outros atributos de

associação e a promissora vertente: o espaço e, portanto, a cidade, é simultaneamente físico e social.

A tendência em considerar a cidade como meio passivo e estático, restrito a sua dimensão física, simplifica a investigação urbana à mera distribuição de atividades, concentrações e dispersões de usos, ou variações tipológicas. Mas a inquietação, de fato, deveria ser na pergunta que avança além da caracterização: que razões levam a certas situações e, espacialmente, como a distribuição se articula ativamente com a forma da cidade?

51

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

É correto que as abordagens observam determinados aspectos que lhes são de interesse, ponderados a partir do escopo teórico que lhe dá suporte. Aproximações da realidade sempre significam uma série de reduções desta realidade. São sempre incompletas e por isso, a princípio, não poderiam desprezar, mesmo em discurso, as demais.

A problemática do urbanismo está, contudo, no fato de raramente ultrapassar a intenção físico-descritiva da forma urbana. Quando avança, torna-se estudo mais sociológico,

historiográfico, geográfico, político, que arquitetônico. Para a análise morfológica, iniciativas que lidam apenas com geografia física não são recomendadas, pois se passa a investigar apenas dimensões quantificáveis de áreas, concentrações e detalhamentos, tendendo-se a um processo descritivo. SCARGILL (1979, p. 36), analisando trabalho de Burgess, informa que “ele tem sido criticado por ignorar o efeito da topografia e [pela aplicação da] inércia geográfica”. É este o risco.

Esclarecemos que a forma física não é secundária. Ao contrário: a questão é avançar além da geometria por si mesma e identificar de que maneira responder às expectativas sociais atreladas. Isto é, como a configuração física releva atributos, desempenhos e performances sociais correlatas.

A construção da abordagem urbana corrente é resultado de uma intenção analítica que pouco avança além do limite historiográfico e descritivo – o problema não é a descrição ou a historiografia em si, e sim a falta de relação entre os atributos respectivos e os diversos tipos de desempenho da forma-espaço da cidade.

A literatura reporta exemplares de estudos urbanos, pendendo, quase sempre, para um lado ou outro. As ênfases são aquelas estéticas, ponderando o apelo do belo e o resgate de tradições antigas. É o apego ao passado a que se filia Lewis MUMFORD (A cidade na

história), para quem se as lições de Veneza tivessem sido aprendidas, as cidades

posteriores teriam sido melhor planejadas. Ou Camillo SITTE (The art of building cities20), admirador da qualidade morfológica especialmente em cidades italianas, com respeito ao passado. E ainda Giulio ARGAN (1998, p. 73), ao dizer que a cidade não é invólucro ou a concentração de produtos artísticos, “mas produto artístico ela mesma”.

LE CORBUSIER (The city of tomorrow and its planning) exalta a prática e o funcionalismo, enquanto para Ebenezer HOWARD (Garden cities of tomorrow) a cidade é organismo e interpretada em termos biológicos.

20

52

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

Há tendência também de se seguir pela interpretação narrativa e historiográfica, com A. J. MORRIS (Historia de la forma urbana), John READER (Cities), Leonardo BENÉVOLO (História da cidade). Uns abordam a feição geográfica, como Patrick GEDDES (Cidades em

evolução), outros a percepção, a exemplo de Gordon CULLEN (Percepção urbana)

Philippe PANERAI (Análise urbana) e Jean CASTEX (Formas urbanas: de la manzana ao

bloque) se dedicam ao caráter descritivo das formas na cidade, enquanto Spiro KOSTOF

(The city assembled/The city shaped) focaliza o espaço urbano a partir da vinculação com os aspectos sociológicos e culturais subjacentes.

Diversidade é o resultado, cuja questão elementar é a aproximação do objeto de estudo. Como entender a cidade? Investigá-la?

Chegamos ao ponto segundo da interpretação: como ler a forma-espaço da cidade? Se o estudo envolve diversos exemplos de esteiras sociais, culturais, geográficas e

históricas distintas, uma análise coerente usualmente pressupõe um conhecimento prévio e um certo grau de familiarização. Olhares estrangeiros são vistos como de engano21. Mas até qual ponto?

Contrariando, inclusive, opiniões como a de KOSTOF (2001, p. 11), ao afirmar que “a forma da cidade é neutra até que associada a uma específica intenção cultural”, não existiriam atributos espaciais que seriam espécies de super-atributos, independentes de feições culturais e geográficas?

Da discussão, resvalam dúvidas:

1 – Como é possível ler a forma-espaço da cidade, sabendo que ler significa identificar os elementos componentes – descrição – e associá-los entre si, e entre eles e as expectativas sociais dos mais diversos tipos, para alcançar a significação – relação?

2 – A quem é dada a permissão de leitura? Quais seriam os signos de interpretação para os arquitetos e urbanistas?

Para responder às questões acima, é necessário primeiro estabelecer a abordagem precisa, como o tema é interpretado e de que maneira a feitura do estudo será conduzida. Tende-se,

21

Para KOSTOF (2001, p. 10) “nós lemos a forma corretamente apenas à medida que nos familiarizamos com as precisas condições culturais que a geraram [...]. Quanto mais sabemos sobre culturais e diferentes estruturas sociais em vários períodos históricos e em diferentes partes do mundo, mais aptos estaremos para ler seus espaços construídos”.

53

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

usualmente, à queda no impasse das categorizações, resgatando tendência novecentista. Mas o problema, de fato, é a transformação do meio em fim, o que implica duas questões: 1 – Quando a análise urbana se restringe apenas à categorização e à distinção entre núcleos urbanos. Isto é, a análise que seria o meio para a interpretação de uma realidade, transforma-se no fim da própria pesquisa. As categorias em si não são problemas, desde que sejam vinculadas a expectativas e desempenhos sociais que lhes dê suporte ou significação.

2 – O mesmo se aplica para descrição.

A resposta estaria na investigação morfológica, analítica e não apenas descritiva. Ou então descritiva, mas que avançasse ao estabelecer a conexão entre os atributos levantados e os desempenhos, funções ou expectativas sociais subjacentes. Ilustrativos são os estudos desenvolvidos por Philippe Panerai, cuja abordagem consiste numa pesquisa minuciosa dos atributos formais per si, pesquisando densidades, formas, lotes, quarteirões, feições

classificadas como tipomorfológicas (PANERAI et al., 1986, p. 172). O procedimento implica um detalhamento criterioso de processos históricos e de ocupação do espaço que

efetivaram determinadas disposições morfológicas na cidade.

Segundo SOLÀ-MORALES (1986, p. 10), o trabalho insere à visão metodológica da análise da cidade o entendimento do tecido urbano como objeto de estudo, centro teórico da nova discussão. “Os estudos de morfologia urbana permitiram, especialmente, a quebra definitiva da orientação funcionalista que reconduzia sempre aos sistemas de movimento ou ao zoneamento das atividades”.

E acrescenta: “o estudo renovado e insistente da forma construída nas cidades permitiu comprovar a eficácia do método morfológico, voltado a apresentar as partes da cidade como peças de um quebra-cabeça de múltiplas faces” (SOLÀ-MORALES, 1986, p. 9).

Entretanto, a despeito do levantamento de informações e de sua interpretação, parece haver uma lacuna entre a diversidade de dados inventariados, sua análise e a transformação desta interpretação em atributos ou aspectos tácteis para o planejamento e desenho dos espaços urbanos. Ademais, nos estudos de PANERAI não há uma iniciativa em buscar as possíveis relações e associações interpartes no espaço urbano, efetivamente definidas. Exemplo são as aplicações para Paris, Londres, Amsterdã e Frankfurt (PANERAI et al., 1986) ou para as cidades norte-americanas, com ênfase em Chicago (PANERAI, 2003). As pesquisas centram-se em descrições morfológicas do processo de definição das grelhas,

54

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

lotes e quarteirões, acrescentando-se às análises informações sobre densidade

populacional e políticas de ordenamento territorial. Torna-se, portanto, uma abordagem predominantemente descritiva e processual, sem alcançar a definição ou delimitação de atributos precisos para a interpretação e – principalmente – projetação do espaço urbano. O que significaria uma ênfase analítica a gerar possíveis proposições e/ou simulações futuras. Além do problema da definição do modo de aproximação do objeto, se artefato físico ou sistema de relações, o claro estabelecimento do método de investigação é condição primordial. A discussão reside em um ponto primário: a lógica do início.

GEDDES (1994, p. 145), no principiar do século XX, se perguntava: “qual a melhor maneira de começar o estudo das cidades?”. Como estabelecer os princípios da investigação? As etapas do processo, o método e a abordagem? Que modos produtivos levariam a

entendimentos ordenados? E, principalmente, o grande impasse: de que forma conduzir comparações e sustentar generalizações.

Das etapas usualmente procedidas, o levantamento preliminar orienta o escopo do projeto e direciona o estabelecimento das categorias de pesquisa. Patrick GEDDES (1994, p. 49, p. 166-167) foi o inventor do levantamento urbano e da expressão da coleta de dados para a investigação das cidades. Segundo ele, a pesquisa deveria anteceder o projeto de

planejamento e seria parte de uma minuciosa metodologia de abordagem do espaço

urbano, enfatizando os diversos olhares, inclusive aquele distante propiciado pelos mapas22. A partir do levantamento será possível identificar características e predominâncias, que auxiliarão na montagem do estudo. A distinção entre cidades e aldeias coloca, no entanto, o problema da diferenciação das formas espaciais da organização social. Mas este diferencial não se reduz nem a uma dicotomia, nem a uma evolução contínua, como supõe o

evolucionismo natural, incapaz de compreender estas formas espaciais como produzidas por uma estrutura e processos sociais (CASTELLS, 1983, p. 24).

O levantamento de dados ou a leitura da cidade requer precisão e ponderações de modo a não se perder a variedade de casos e peculiaridades, evitando-se generalizações, afinal, “existem tantos diagramas quanto cidades que os habitam. Não existem dois exatamente iguais” (KOSTOF, 2001, p. 53).

22

“Uma pesquisa preliminar, um levantamento urbano, é essencial para um planejamento urbano adequado [...]. Em resumo, se nossos projetos para melhoria não forem simplesmente emergenciais ou utópicos, devem ser baseados em conhecimentos mais sérios e mais profundos sobre as condições que geralmente possuímos, ou procuramos” (GEDDES, 1994, p. 197).

55

1 ABOVO

URBISBRASILIAE

Do contexto, destacam-se os pontos-chave subsiadores do estudo. Para a investigação urbana é necessário considerar: (1) os aspectos de leitura da cidade, (2) uma análise que incorpore o estudo das relações interpartes, e (3) o levantamento de dados.

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 50-56)