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ENTRE ENGENHO & CORPO

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 75-83)

A FEITURA DO MUNDO: CONSTRUÇÃO TEÓRICA

2.2.1 ENTRE ENGENHO & CORPO

Numa perspectiva histórica, as análises sobre a cidade tendem a assumir o todo urbano como um organismo. São usuais os empréstimos de termos à biologia, reportando, aparentemente, a dois aspectos:

· A produção humana – nela incluindo a cidade – enxergada como parte da natureza ou devendo se inspirar nela;

É a interpretação clássica ao ter a natureza como o referencial do divino e perfeito,

contemplando a idéia do demiurgo – ou artesão – que apenas reproduzia o que havia nela, mas jamais alcançava o efeito do original: o mundo real era uma reprodução falha do mundo natural e divino. Logo, a cidade era também uma tentativa de reprodução.

Associa-se às interpretações da cidade como um ser vivo, especialmente no Renascimento, quando se procurava relacionar a geometria de edifícios e cidades à matemática da

natureza e às proporções humanas, tomando por base a incessante busca pela proporção áurea.

Os exemplos se consagram com os planos das cidades ideais de Vitrúvio, Filarete, Scamozzi e outros, e se consolidam na linha racional e humanista de intepretar o mundo, restabelecendo o elo clássico (Figuras 2.1 a 2.4).

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Figura 2.1 – Ilustrações dos modelos de cidades ideais imaginadas durante o Renascimento. Em sentido horário 1 (46) – o projeto de Filarete para Sforzinda, 2 (47) – uma das propostas de Giorgio Martini, 3 (49) – o plano de

Palmanova e 4 (48) o diagrama de uma fortaleza ideal sugerida por Girolamo Maggi. A nítida geometrização associava-se aos princípios matemáticos em desenvolvimento e ao humanismo que via na geometria o primor

racionalista, acompanhando o surgimento da perspectiva moderna. Fonte: < http://www.upf.edu/materials/fhuma/portal_geos/tag/t4/t4.htm >.

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· O desenvolvimento científico e a Revolução Científica, partindo da observação humana dos fenômenos naturais.

A cidade, como campo da ciência, não se afastaria do pressuposto e acaba por tomar emprestado as formas de abordagem e os termos biológicos. Já no século XIX é clara a influência do ordenamento e classificação urbanos segundo população, densidade, tamanho, o que se articula aos achados de Lineu e Darwin à tendência eclética em criar categorias e distingui-las, inspirada que foi no mundo cartesiano da decomposição em partes e características.

GEDDES (1994, p. 258), deles contemporâneo, diz que “a sociologia não é – como muitos pensam – uma ciência nova; ela é, antes de tudo, a visão ampla da biologia”.

Figura 2.2 – A cidade de Naarden, na Holanda: a planta é claramente filiada às formas das cidades ideais renascentistas. O formato em estrela hexagonal com seis bastiões é projeto dos engenheiros flamengos D' Ivoy e

Adriaan Dortsman, de 1676.

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Figura 2.3 – Palma Nova, fundada como uma cidadela fortificada pela República de Veneza em 1593, é fruto da tentativa de defesa das fronteiras à nordeste contra a ameaça da invasão turca. Não há certeza sobre a autoria

do plano urbano: embora frequentemente atribuído a Scamozzi, alguns afirmam que Vitrúvio teria sido o verdadeiro autor ou talvez a inspiração para o projeto tenha partido do livro de Girolamo Maggi (GUTIAHR,

1999, p. 22-23).

Fonte: < http://www.upf.edu/materials/fhuma/portal_geos/tag/img/img_temes/402.jpg > (em cima). < http://foto.uzkalniem.lv/20050701/IMG_1460.jpg > (em baixo).

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Figura 2.4 – Planta da Fortaleza dos Reis Magos, em Natal – RN. As fortificações portuguesas que acompanharam a conquista da América Lusitana eram em grande parte inspiradas na arquitetura militar do Renascimento. Em alguns casos, as fortalezas seguiam rígidos padrões geométricos antropomórficos: das construídas no Brasil, a dos Reis Magos, fundada em 1598, revela a forma estrelar que se baseia nas cinco

extremidades humanas. Concebido pelo Padre Gaspar de Samperes, o edifício original em taipa foi posteriormente substituído por outro em pedra, com projeto de Francisco Frias, engenheiro-mor do Brasil. A

imagem é uma reprodução do mapa “Riogrande fortaleza dos reis" (1609), de autoria desconhecida. Fonte: REIS FILHO (2000a).

Antagonicamente, a interpretação urbana usual remete para o viés mecânico, construindo a cidade como engenho. A oposição entre o mecanicismo e organicismo tornou-se recorrência na história: durante os séculos XVI e XVII, a visão de mundo medieval, fundamentada na

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filosofia clássica aristotélica e nos dogmas do Cristianismo, transformou-se drasticamente com a construção Renascentista. A noção de um universo orgânico foi substituída pela visão do mundo como uma máquina, e a máquina do mundo34 tornou-se a metáfora dominante da Era Moderna.

Figura 2.5 – Palácio da Pena (Portugal): situado no alto da Serra de Sinta, nos arredores de Lisboa, é uma obra exemplar do pensamento romântico novecentista. Construído por ordem do rei consorte de Portugal, D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha, marido da rainha D. Maria II, contempla grande diversidade de estilos e inspirações: manuelino, mourisco, oriente, etc. Sua aparência e diversidade formal é como se fosse um jogo de

montar.

Os poetas e filósofos alemães, já no século XIX, retornaram à tradição aristotélica

concentrando-se na natureza da forma orgânica e estabelecendo o resgate de princípios aparentemente contraditórios em relação à transformação nos processos de produção vigentes. Goethe, em 1822, criou o termo “morfologia” para o estudo da forma biológica

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As referências à máquina do mundo, como engenho e arte, surgem na produção maneirista no século XVI. Luís de Camões, nos Lusíadas, escreve: “Vês aqui a grande máquina do Mundo,/Etérea e elemental, que fabricada/Assi foi do Saber, alto e profundo,/Que é sem princípio e meta limitada./Quem cerca em derredor este rotundo/Globo e sua superfície tão limada,/É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,/Que a tanto o engenho humano não se estende” (CAMÕES, 2001, p. 270, grifo nosso).

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considerando um ponto de vista dinâmico e em desenvolvimento. “Ele admirava a ordem móvel da natureza e concebia a forma como um padrão de relações dentro de um todo organizado” (CAPRA, 2003, p. 35).

Os artistas europeus, submetidos aos devaneios românticos e ao revivalismo novecentista (Figuras 2.5 e 2.6), preocupavam-se com um entendimento qualitativo dos padrões, resgatando formas, volumes e princípios de um passado histórico tido como melhor – em oposição às transformações maquinicistas. E mais, os neos traziam consigo uma grandeza nacional que aparentemente dava o suporte para o futuro incerto apontado pela Revolução Industrial. Afinal, era também a época da ressurreição imperialista.

Figura 2.6 – Castelo de Neuschwanstein (Alemanha): a exemplo do Palácio da Pena, teve como projetista o Barão Ludwig von Eschwege, contratado pelo rei da Baviera Ludovico II. Localizado em área de grande beleza

cênica próximo aos Alpes, o palácio dos contos de fada germânico teve seus ambientes decorados de acordo com trechos das óperas de Wagner.

A Inglaterra ampara-se na Idade Média e os grandes edifícios construídos filiam-se às linhas da Idade Média: o Parlamento, a Ponte da Torre de Londres (Figura 2.7), a Corte de Justiça. Portugal atém-se ao Manuelino associado à Torre de Belém quinhentista (Figura 2.8): a

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torre acrescida ao Mosteiro dos Jerônimos e a janela do Palácio da Pena se tornam emblemáticos do resgate de uma arquitetura significando o apogeu lusitano da Era dos Descobrimentos. A Europa, por inteiro, classiciza-se. As sobreposições se tornam comuns: o pensamento eclético está assentado.

Figura 2.7 – Vista noturna da Ponte da Torre de Londres (Inglaterra), executada entre 1886 e 1894, com clara influência da arquitetura gótica. Segundo JONES e WOODWARD (2000, p. 291), “como a maioria das tradições

britânicas, é uma invenção Vitoriana”: uma arquitetura para representar a imponência do imperialismo inglês.

Os artistas, incluindo-se os arquitetos, enfatizavam a explicação das propriedades básicas da vida em termos de formas visualizadas. “Goethe, em particular, sentia que a percepção visual era a porta para o entendimento da forma orgânica” (CAPRA, 2003, p. 35-36).

O estudo das formas e seus efeitos se tornam correntes. A morfologia passa a ser condição comum para diversos enfoques do pensamento.

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Figura 2.8 – Torre de Belém (Lisboa/Portugal): considerada obra-prima da arquitetura manuelina, é uma síntese do imaginário da Era dos Descobrimentos. Encomendada por Manuel I, foi construída durante a segunda década

do século XVI como uma fortaleza em meio às águas do Rio Tejo para ser o ponto de partida e de chegada dos navegadores no Restelo.

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 75-83)