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VÃO & INTEMPESTIVO: URBI ET ORB

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 36-43)

PARTE II.................................................................................................................................277 4 DE NÚMEROS, FÓRMULAS & OUTROS: CIDADES DO BRASIL

DESVELO, DESPREZO, DESTERRO

1.1 VÃO & INTEMPESTIVO: URBI ET ORB

Começo pelo que não é: cidades13 aqui não são suportes sociológicos, esteiras antropológicas, avenças estéticas. Cidade não é engenho maquinicista. Não é espaço geográfico. Não é diacronia histórica. Não é lugar de embate, políticas, atores, gestão nem tampouco participação. Não é ambiência ecológica. Não são passos sustentáveis. Não é quadro econômico. Sequer produção do espaço.

Cidade aqui é o que está. Per se físico e construído. É forma-espaço, resultado de tudo o de antes: mas apenas. Crua e concreta. E o que ela, dita figura, feição, configuração reserva ao seu leitor?

Esta é a inquietação que forja o estudo. Parte-se dela, termina-se nela. Não mais. Não há promessas.

Esta tese é configuracional, investiga-se a cidade em seu componente físico por meio das estratégias fornecidas pela análise sintática do espaço. É estudo exploratório e comparativo: intenção primaz de ajudar a construir a vertente, não outra, nos estudos morfológicos

urbanos. Deseja-se cristalizar como a abordagem é útil para a análise das cidades ao compreender o espaço por suas relações topológicas.

É contribuição precisa e complementar: ajustar lentes que levam a um olhar distinto. Por se acreditar nele, afinal, “todos criam suas cidades [...] de acordo com o lugar de onde e a forma como percebem sua realidade” (SOBREIRA, 2002, p. 23). É a colaboração.

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Para este estudo, as expressões cidade, núcleo urbano, grupamento urbano, aglomerado urbano e assentamento urbano são usadas como sinônimas.

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Fujo, ao menos agora, do início-clichê: “definições sobre cidades, teorias sobre suas

origens, e o dogma sobre seu comportamento nos consumiu. Chegamos ao ponto que falar sobre o assunto implica revisar e refutar tudo o que os outros já disseram” (KOSTOF, 2001, p. 29): aparte se poesia, é exercício árduo e extenuante. Que poucos lêem. Quer-se o anverso. Estréia-se com as idéias intempestivas. Ainda que para alguns, ato vão. O que escapulir, portanto, é campo de outro [boa escusa acadêmica].

Visitei incontáveis cidades. Peregrino. Delírio das lembranças recordando mão minha

salteando páginas de guias anos atrás. Dedos entremeando vistas cotidianas de ambiências tão diferentes. E arquitetava perfis que no futuro, em alguns casos, conheceria. Debuxo urbano. Cidade. E sensações sobrepostas “de já vi”: esquinas, ruas, telhados, horizontes. Montagem sincrônica de quebra-cabeças da feitura de um mundo só. E ele à cidade e ao

mundo. Cenho inquisidor.

“Cidades são como teatros, carregando o peso e a intensidades de seus triunfos”

(WHITFIELD, 2005, p. 8). É alvorecer e ocaso. Vesperal. E o intermezzo? E dos confrontos. Descrições sobre cidades, comparações entre elas, há tempos, povoam o fértil imaginário humano. É germe audaz de idéias ao ilustrar o que, aparentemente, é o limite tênue entre o gênio e da desgraça.

É descrição bíblica, primeiro citada após tragédia entre irmãos:

Conheceu Caim a sua mulher, a qual concebeu, e deu à luz a Enoque. Caim edificou uma cidade, e lhe deu o nome do filho, Enoque [...] (Livro de Gênesis, 4:17).

É minúcia poliana, tamborilando a ponte entre mundos:

Tóris é uma grande cidade situada numa província chamada Arac, onde há muitas outras cidades e castelos. A melhor de todas é Tóris, também a mais bela da região. Seus habitantes vivem do comércio e das artes, ou seja, da fabricação de tecidos de seda e ouro. O lugar é tão bom que chegam mercadores da Índia, de Bagdá, do Mossul, de Quirmã e de muitas outras partes. Vêm também europeus em busca de mercadorias exóticas de regiões longínquas e ganham muito nesse comércio. (POLO, 2005, p. 53).

Canto camoniano:

Estava a ilha à terra tão chegada/Que um estreito pequeno a dividia;/Uma cidade nela situada,/Que na fronte do mar aparecia,/De nobres edifícios

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fabricada,/Como por fora ao longe descobria,/Regida por um Rei de antiga idade:/Mombaça é o nome da ilha e da cidade (CAMÕES, 2001, p. 51).

Figura 1.1 – Reprodução da tela “A Caçada aos Demônios de Arezzo”, de Giotto: a cidade tentada pelos demônios.

Fonte: < http://www.christusrex.org >.

Visão de inglês visitando Natal em 1810:

Cheguei às onze horas da manhã à cidade do Natal, situada a margem do rio Grande ou Potengi. Um estrangeiro que, por acaso, venha a

desembarcar nesse ponto, chegando nessa costa do Brasil, teria uma opinião desagradável do estado da população nesse país, porque, se

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lugares como esse são chamados de cidade, como seriam as vilas e aldeias? (KOSTER, 1942, p. 109-110).

Cidades são, a um só tempo, apoteose e caos: devoção, exuberância, mito, devassidão, miséria, realidade14 (Figura 1.1). São sociedades, platéia de transformações e vítimas – quase que sempre – do tempo.

E, também, forma-espaço e configuração15.

A cidade é um elemento físico, um objeto concreto por excelência. É táctil: pedra, tijolo, aço – como o são as pessoas e os edifícios que a compõem. É feição, rascunho e desenho. Ponto, reta e plano: geometria.

Mas não apenas isso. É articulação, conexão, integração, dinamismo – topologia. Representam o alvorecer e ocaso de civilizações: ali acontecem os contatos e as trocas. São fontes profícuas da fantasia: a imagem da cidade – usualmente – emerge como ingresso de mundos. Por cobiça, muitas são invadidas; por fé, multidões para elas se vão; por prazer, hordas de turistas atravessam muros e fortalezas circundantes que não mais existem. Hedonismo e ameaça.

Aos olhos ocidentais, as cidades fora do velho mundo sempre significaram o exótico e riquezas sem fim. O oposto era sempre de espanto (Figura 1.2). As descrições de Bagdá, Timbuctu, Istambul, Jerusalém, Pequim, Cairo traziam algo entre lenda e desejo. As cidades árabes da Península Ibérica traduziam a efervescência numa época em que a Europa urbana sucumbia: Évora, Sevilha, Córdoba e Granada eram a luz urbana que se perdera. Os caminhos para as terras de Cipango, descritas por Marco Pólo aos venezianos, construía a impressão do oriente distante povoado por vilas repletas de ouro, sedas e jóias (Figura 1.3).

O mundo de então orientava-se.

Com as Grandes Navegações, a abertura da Carreira de Índias estupefez os navegadores portugueses ao descobrirem a existência de cidades que, de tão pujantes, como Calicute e seu Samorim, de imediato transformaram a Ulisséia em aldeia perdida às margens do Tejo.

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Ilustrativo é o esclarecimento de GOFF (1988, p. 132-133) sob os parâmetros do medievo: “o imaginário urbano medieval movimenta-se entre a imagem de Jerusalém, a boa cidade, e a Babilônia, a má [...]. A cidade pode também ser um dos lugares preferidos do demônio e seus sequazes”. E ainda hoje a onipresente dicotomia: “as cidades são os artefatos definidores das civilizações, mas também poderosos parasitas com a capacidade de contaminar regiões bem além de suas fronteiras” (READER, 2004, p. 294).

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Forma-espaço é consideração simultânea de cheios e vazios enquanto arquitetura. Configuração corresponde à maneira pela qual as partes do objeto se relacionam entre si.

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Igual para os espanhóis: extasiados ao acharem o gentio da América pré-colombiana em cidades reluzentes. Resultaram as lendas maravilhadas das infantas e princesas, do aurum das urbis do Novo Mundo: Cuzco, Teotihuanacán, Eldorado...

Figura 1.2 – Detalhe de um “Biombo Namban”: do final do século XVI remanesce uma série de biombos japoneses retratando o comércio, o contato e a moda dos lusitanos ao chegarem ao oriente distante. Neles os portugueses são representados como homens de grandes narizes, de olhos negros e estranhos, usando uma

vestimenta singular em suas bombachas e os chapéus ovalados. Fonte: < http://www.universal.pt/scripts/hlp/mm/FHLP77_z.JPG >.

E, no Brasil, a transposição de tais modelos, ou imaginário, remete aos modos como as cidades são e foram vistas, e apreendem o olhar de posse sobre a terra virgem.

As cidades do país, à vista larga, são nascidas da transposição de um modo-de-fazer português adaptado à exuberância determinante das terras da colônia do ultramar. Manchas urbanas nascidas da dicotomia entre cidades alta e baixa, num modelo que aproxima Rio e Lisboa, Salvador (Figura 1.4) e Macau.

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Figura 1.3 – Imagem do século XIV ilustrando a viagem de Marco Polo à China. Fonte: < http://zbtms1.ew.tu-dresden.de/seminare >.

Às margens do Atlântico foram construídas as primeiras vilas e cidades do Brasil, resultado que foram de um modo peculiar de conquista do território, olhando o mar. Após a leva inicial de fundações entre o século XVI e meados do século XVII – como São Vicente, Salvador, Recife, São Luís e Natal – seguiram-se aquelas da interiorização na América Lusitana: eram, por um lado, o avanço rumo ao Sertão, acompanhando as extensas criações de gado subsidiadoras da ocupação da costa, e, por outro, as bandeiras que desbravavam – à força – as terras pertencentes aos antigos domínios espanhóis nunca ocupados.

As fronteiras se dilatavam e as povoações, futuramente elevadas às categorias de vilas e cidades, iam surgindo nos entroncamentos, em fazendas e casas.

Após a definição da malha urbana das Gerais – das Vilas Ricas e Tijucos, já no século XVIII – vieram às do Planalto Brasileiro, seguindo os veios dos rios das Mortes e Vermelho, e os

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aluviões dos garimpos de Cuiabá. O norte, isolado, maior contato tinha com Lisboa do que com as distantes povoações da colônia. Assim nasceram Belém e Manaus, prevendo o incentivo ao avanço territorial que se prolongaria especialmente ao longo do século XX.

Figura 1.4 – Mapa de Salvador (ca. 1624), na Bahia, atribuído a Claes Jansz Visscher e Hessel Gerritsz, com título “S. Salvador – Baya de Todos os Sactos” . Perceba-se a clareza de uma cidade dividida em duas áreas: a

alta, usualmente cívica e religiosa, e a baixa, próxima ao porto, comercial. Fonte: REIS FILHO (2000a).

Além disso, o Brasil foi cenário de variadas experiências urbanas, com a construção, ex-

nihilo, de cidades. Talvez seja dos países onde mais se fundou grandes assentamentos nos

últimos dois séculos: Teresina, Aracaju, Belo Horizonte, Goiânia, Brasília16.

Fato marcante, também, foi o grande crescimento populacional com conseqüências urbanas profundas: até finais do século XIX, cidades que pouco mais tinham além dos 50.000

habitantes, viram, nas décadas seguintes, sua população dobrar, triplicar. As formas

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Cf. HAROUEL (2001, p. 103), sobre o surgimento de novas cidades capitais a partir de meados do século XIX, confirmando tendência mundial: “na metade do século XIX são Ottawa e Pretória; no início do século XX Camberra, Nova Delhi e Ancara, posteriormente Brasília no final dos anos 1950. Outras fundações urbanas

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urbanas se modificaram em manchas crescentes sobre o território. Os núcleos e centros coloniais foram circundados por anéis cada vez maiores em assentamentos que esticados a largas passadas, em subúrbio e periferia, invadindo a paisagem.

As cidades explodiram no século XX e São Paulo se transformou em ícone da

metropolização – e do caos. As capitais do Brasil, quase sem exceção, cresceram como nunca se viu: os tipos habitacionais financiados pelo governo ganharam espaço e redefiniram dramaticamente – em muitos casos – a estrutura urbana. A forma e a configuração das cidades brasileiras se alterou.

Outros tempos. O mundo de hoje norteia-se.

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 36-43)