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A INTERPRETAÇÃO DO MOVIMENTO NATURAL

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 99-109)

A FEITURA DO MUNDO: CONSTRUÇÃO TEÓRICA

2.3.2 A INTERPRETAÇÃO DO MOVIMENTO NATURAL

A verificação de movimento tem sido usualmente uma adaptação dos métodos quantitativos e de contagem adotados nos modelos de contagens veiculares, conduzidos por órgãos de engenharia e controle de tráfego.

Fala-se em potenciais de geração de viagens de certas zonas, definição de origens e

destinos, alocação de viagens e modelagem de fluxos a partir de dados reais contabilizados. Pelo caráter pragmático da disciplina, procura-se, quase sem exceção, construir cenários que evitem congestionamentos e potencializem o uso de certas vias e rotas, amenizando as diversas problemáticas associadas ao trânsito intenso em grandes cidades: riscos de

acidente, fragmentação urbana por vias expressas, poluição do ar, etc.

Tais métodos consideram primariamente as possibilidades de rotas e as cargas das calhas das vias como agentes motores dos fluxos ali localizados. O que se entende por potencial de viagem é um atributo físico da ocupação dos espaços (maiores e menores densidades urbanas, segundo os tipos edificados situados em zonas estabelecidas), atrelado à estrutura formal dos acessos, isto é, vias.

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Pode-se classificar tal idéia como o princípio da atração, pois assume-se que as viagens são geradas sempre de um para outro lugar, a depender do poder de atração que certas formas ou áreas construídas têm no contexto do sistema urbano como um todo. Seria a

movimentação pendular diária entre áreas residenciais e aquelas com concentração de empregos, ou de e para locais com predomínio de atividades comerciais e prestação de serviços.

Magnetos ou pólos de atração podem ser centralidades urbanas entendidas como os locais para onde convergem e se concentram, em quantidade e diversidade, fluxos e usos

diversos. Ilustram os bairros da Lapa e Santana, a Avenida Paulista, a região da Luz, o Vale do Anhangabaú, em São Paulo (Figura 2.12); a Baixa do Sapateiro, em Salvador; a Praça XV, no Rio de Janeiro; o Comércio, em Belém; e todos os apenas “Centro” encontrados em boa parte das cidades brasileiras. E também os novos-ricos centros comerciais travestidos em anglicismos vãos: shopping centers, shopping malls, trade centers and so on.

Ou ainda áreas administrativas ou com grande geração de empregos, como a Esplanada dos Ministérios, em Brasília (Figura 2.13)e os Centros Administrativos de Natal ou Campo Grande.

Segundo HILLIER et al. (1993, p. 29), este poder que certos locais apresentam em atrair e concentrar movimento denomina-se teoria da atração. Nela o movimento é interpretado como ocorrendo de e para certas formas construídas de diferentes capacidades de atração, e o projeto do espaço torna-se, portanto, a ferramenta para concebê-las.

Entretanto, as teorias de atração estabelecem a associação entre movimento apenas para as formas construídas finais. Não há relação ou não se explora o que seriam os vazios entre os espaços construídos, como se solicita e argumenta por meio tanto do pensamento

sistêmico quanto da abordagem estruturalista.

Os locais-foco são interpretados, mas não se exploram as características entre espaços e o jogo de relações, associações, padrões, hierarquias e dependências que pode haver entre tais espaços. A carência é notória nos estudos de transportes, que se reportam quase que exclusivamente a aspectos objetivos e quantificados.

Nada se avança a respeito do estudo da configuração espacial da malha viária que,

argumenta-se, é o modo pelo qual os espaços onde as pessoas se movem – ruas, praças, alamedas, etc. – estão conectados para formar algum tipo de padrão global.

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Figura 2.12 – Vista aérea de parte do Vale do Anhangabaú, na área central de São Paulo – SP. O Mosteiro de São Bento está no canto inferior à direita; o Viaduto de Santa Ifigênia, no centro da imagem.

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Figura 2.13 – Imagens da Esplanada dos Ministérios (Brasília – DF) a partir do Congresso Nacional (em cima), e do Eixo Monumental desde a Torre de TV (em baixo).

Ainda segundo HILLIER et al. (1993, p. 29), é possível demonstrar como, ao menos

teoricamente, a configuração da malha viária pode, sim, ser um aspecto definidor dos fluxos de movimento, independentemente da existência ou não de atratores. As malhas viárias são capazes de concentrar ou restringir esses fluxos e estabelecer hierarquias que constroem uma rede de diferenças nas diversas vias que compõem um sistema urbano.

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Observando a Figura 2.14, para os dois casos, a via horizontal é a mais importante do sistema, mas em graus diferenciados. É evidente como, na situação à esquerda, a via desempenha um papel mais importante como concentradora de fluxos do que à direita. Isto ocorre pelo fato de que, no primeiro exemplo, todas as vias desembocam nela, e não há conexões entre as vias secundárias. Não existem outras opções de trajeto que não impliquem, necessariamente, a passagem pela via principal para se ir de uma via secundária a outra.

Na segunda situação B, ao contrário, é possível se ir da via 1 para a via 2 sem passar pelo grande eixo horizontal. De forma semelhante, pode-se ir de 3 para 4. Não se quer dizer que a via horizontal não seja importante, mas não é, todavia, o único acesso exclusivo pelo qual qualquer pessoa precise passar para seguir um dado trajeto.

Figura 2.14 – Exemplo de duas configurações de malhas viárias hipotéticas. A e B ilustram as duas situações, enquanto A’ e B” expõem uma possível hierarquia de eixos: quanto mais espessa uma linha, maior o fluxo suposto. Observe-se que enquanto para a situação da esquerda a via horizontal é a única mais importante, resultando em uma hierarquia de apenas dois níveis, para a situação da direita há uma diversidade maior, com

vários níveis de diferenciação.

Fonte: Adaptado a partir de HILLIER et al. (1993, p. 29).

Percebe-se, portanto, que a configuração da malha viária apresenta propriedades claras que podem promover ou restringir o movimento, resultando em uma hierarquia espacial

dependente diretamente dos modos de relacionamento entre suas diversas partes. Para MAJOR et al. (1997, p. 42.01), “o movimento ao longo das ruas de uma malha viária é mais

B

A

B’

A’

1 2 3 4

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influenciado pela posição de cada rua dentro do complexo urbano como um todo, do que por qualidades imediatamente locais daquela rua”.

Tanto é fato notório que qualquer sistema urbano e sua correspondente estrutura viária, para fins de análise em qualquer área de conhecimento, sempre é tratado segundo os tipos das vias: se locais, coletoras, arteriais ou expressas. Estabelece-se, portanto, uma

hierarquia funcional estreitamente vinculada à capacidade de concentração de movimento das vias, ponderando aspectos como tamanho da calha e número de faixas de rolamento. Para HILLIER et al. (1993, p. 31 e 32), em uma situação onde houvesse a convergência de

movimento, configuração e atração, todos trabalhando em sincronia, “haveria poderosas

razões lógicas para preferir a configuração como a principal causa do movimento” (Figura 2.15). E uma vez que o movimento gerado pela configuração da malha viária é tão básico, ele deveria ser identificado por um termo especial: “propomos movimento natural”.

Figura 2.15 – Esquema do ciclo do movimento segundo a lógica do movimento natural. A configuração da malha viária, por sua forma de articulação, estabelece a hierarquia do movimento definindo áreas com maior e menor concentração de fluxo: equivale ao efeito primário. Áreas com maior concentração de fluxo tendem a atrair certos

usos que se beneficiam deste movimento, como o comercial e de serviço: corresponde ao efeito secundário de convergência de atratores. Estes atratores, por sua natureza, atraem novos fluxos e mais movimento, resultando

no efeito terciário, e também podem alterar a configuração do espaço construído, correspondente ao efeito quaternário, fechando o ciclo. Novas centralidades urbanas são formadas por esta lógica.

O chamado movimento natural não seria um fenômeno invariável, comum a todas as

culturas e regiões do mundo. Ele assumiria características próprias de acordo com o escopo cultural que o gerou, efeito que é da forma de articulação e disposição da malha viária. Entretanto, algumas feições são argumentadas como constantes, a exemplo da tendência à concentração de certas atividades em locais precisos. O que seria invariável é a lógica que conecta a configuração espacial com a geração de movimento.

CONFIGURAÇÃO MOVIMENTO ATRATORES

Efeito PRIMÁRIO Efeito SECUNDÁRIO Efeito TERCIÁRIO

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Se observarmos, por exemplo, imagens de dois locais absolutamente divergentes do ponto de vista social, histórico, político e cultural, como as cidades de Veneza e Hong Kong, veremos que ambas apresentam uma característica comum: a localização de mercados de rua (feiras) em vias de intensa movimentação de pedestres (Figura 2.16 a 2.18). É notório que o movimento em ambos os casos é resultado daquilo descrito nas figuras 2.14 e 2.15. Certo também é o fato que o espaço urbano se transforma em uma mercadoria cujo valor passa a ser estabelecido por atributos físicos: embora importem aspectos como relevo do terreno e/ou qualidade na construção, a acessibilidade em relação aos centros principais urbanos ou áreas valorizadas é decisiva (ROLNIK, 1998, p. 63).

“Segundo preocupações do varejo, [...] muitos acreditam que a acessibilidade é a base para os aluguéis, enquanto outros [acham] que está relacionada a vendas” (BIRD, 1977, p. 87). E por que não a ambos?

Para comércios e serviços, a proximidade ou localização nestas áreas centrais estabelecerá grande possibilidade de sucesso em virtude do aproveitamento dos fluxos correlatos,

configurando um círculo virtuoso. E numa escala ampliada, o sucesso de muitas cidades dependeu de sua localização ante as teias conectando cidades, vilas e povoados. Quanto mais acessível ou relevante o entroncamento, maior seu desenvolvimento e importância. Exemplo de rede urbana fundamentada nestes princípios são as cidades do Império

Romano: o requisito primordial para a implantação de um assentamento era a facilidade de acesso em rotas movimentadas. Os romanos preferiram vaus de rios e entroncamentos de estradas a sítios sobre as colinas relativamente isoladas, embora estas fossem mais facilmente defensáveis (MORRIS, 2001, p. 60).

A lógica econômica era o ponto de convergência; a troca e o comércio, os agentes motores. A idéia se reproduziu na ressurreição urbana ocorrida na Baixa Idade Média acompanhando o surgimento da burguesia e, no Novo Mundo, quando a situação política já estabilizada permitia a consolidação da ocupação do interior.

No Brasil cidades como Pirenópolis, Goiás, a então Vila Boa, e Cuiabá estabelecem-se em margens de aluvião, como ponto de apoio para os recorrentes avanços junto ao sertão apropriado pela Coroa Lusitana. Situação similar ocorreu com São João del Rei que, antes da descoberta do ouro, era um ponto real de travessia do rio das Mortes, então chamado de

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Figura 2.16 – Vista aérea de Veneza (Itália – em cima) e mercado de rua em Cannaregio (em baixo). As barracas ocupam toda a calha da via Terra S. Leonardo, trecho da principal rota para a Praça de São Marcos a

partir da Estação de Santa Lúcia. Ali se concentra grande parte das lojas mais baratas de suvenires: à medida que o viajante se aproxima da piazza, o padrão e o preço das mercadorias se elevam dramaticamente. A

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Figura 2.17 – Vista de rua em Mong Kok, Hong Kong – China. Historicamente a antiga colônia inglesa surgiu como um entreposto comercial avançado no Oriente após as sucessivas etapas da Guerra do Ópio. Hoje é a

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Figura 2.18 – O comércio de rua de Kowloon (no continente – Figura 2.17) é tão poderoso quanto a movimentação financeira dos bancos sediados na ilha de Hong Kong, que compõem um dos mais soberbos

cenários urbanos contemporâneos.

No Nordeste, redes de cidades surgiam acompanhando o avanço pelo semi-árido para a criação de gado abastecedora da Zona da Mata de produção açucareira. Cidades como Currais Novos e Caicó, no Seridó potiguar, ilustram o processo.

Os assentamentos coloniais portugueses, derivados destas correntes, num primeiro momento são a cidade alta baluarte, motivada por razões militares e estratégicas para garantia do território. Num segundo, transformam-se em cidade baixa econômica, quando a estabilidade já permitia a liberdade no uso do território e o mercantilismo transformava as relações comerciais pós-medievo. As cidades literalmente “escorrem” para as margens de rios e o litoral.

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O princípio para todas as situações é, ao que parece, aquele da centralidade vinculada ao âmago do urbano. Centralidade no sentido de uma cidade mais importante em uma rede urbana. E centralidade como uma área da cidade mais relevante antes as demais. Para BIRD (1977, p. 1), a idéia de centralidade origina-se antes das cidades e tomou diferentes formas dentro da metrópole moderna. Centralidade é mais básica do que

urbanismo, urbanização ou qualquer que seja a palavra para cobrir a formação da cidade e seu desenvolvimento – “mais básica e talvez mais complicada”.

Contempla, então, um princípio comparativo de exclusão, aquilo que atrai e aquilo que gera o movimento. Envolve as idéias de centros, subcentros, não-centros, subúrbios e periferias, guiando as decisões governamentais e processos históricos. Estabelece a clara hierarquia de um local em relação aos demais: é o elemento que desempenha o proeminente papel em relação ao sistema como um todo.

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