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DOS FATOS: ONDE ESTÁ A CIDADE?

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 43-50)

PARTE II.................................................................................................................................277 4 DE NÚMEROS, FÓRMULAS & OUTROS: CIDADES DO BRASIL

DESVELO, DESPREZO, DESTERRO

1.2 DOS FATOS: ONDE ESTÁ A CIDADE?

Dos artefatos produzidos pelo homem, conscientemente ou não, as cidades decerto são dos mais complexos e intangíveis ao envolverem uma rede profusa de relações. São magneto para vista atenta ou desavisada. Que atrai. Do migrante de olhos cheios ao turista de impressões cegas.

É material primeiro para a construção do imaginário humano em ser gregário. Ajuntar, aglomerar, unir: princípios de multiplicação – de esforços e produtos – e a cidade, se objeto, é peça de engenho da máquina do mundo, se viva, célula de corpo para uma Terra-

organismo. Da dicotomia entre parte de um todo-engenho ou fração entre um todo- organismo reside a histórica distinção-mor no entendimento das cidades. Falaremos do tema mais adiante, ainda que aqui importem as relações.

Restam as perguntas intempestivas que constroem a identidade urbana. Cidades por habitantes. Cidades por espaços. Cidades por processos. Manchas urbanas que se encontram na feitura de paisagem com interferência humana. O que é cidade, como compreendê-la?

“Além da origem, que outros fatores determinam sua existência contínua, seu sucesso – ou fracasso?” (READER, 2004, p. 72). São perguntas férteis, mesmo que certas respostas ainda permaneçam tão estéreis quanto o asfalto que cobre parte delas.

correspondem basicamente a capitais de estados federados. Adelaide, Belo Horizonte, La Plata. No século XX, pode-se citar Goiânia, a capital do estado brasileiro de Goiás, e Chandigarh, do estado indiano de Punjab”.

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O atrativo ou apelo do estar ou morar na cidade encontra eco não apenas nas tradicionais versões de otimização das atividades, dos processos de produção, das questões de proteção, do se sentir parte de uma coletividade, do se dissolver no conjunto.

A cidade, por seu papel concentrador, como princípio, é democrática. Sua imagem, seu perfil formal é de permissividade ou possibilidade. Os indivíduos tendem a enxergá-la como um campo fértil e promissor, de possível alcance das benesses do ser urbano. E do desejo se materializam os fluxos migratórios e a vontade de integrar essa idéia.

As cidades são, portanto, revolução, porque sua aparência torna os homens livres e iguais, ainda que a realidade, frequentemente, seja de extremo oposto (GOFF, 1988, p. 91). “As cidades de sucesso, na verdade, atraem tanto os mais ricos quanto os mais pobres. [...] São caracterizadas pela fragmentação social e étnica, pela presença simultânea de bem sucedidos e miseráveis, por altos índices de marginalidade, crime e conflitos” (DEMATTEIS, 1999, p. 3).

Portanto, a cidade é, sobretudo, a imagem que se constrói sobre ela: por vezes bem distinta do que de fato é. Se negativa ou positiva fica a depender de diversos fatores. Mas é o poder de atração hipnótico, como as luzes acesas dos arranha-céus, que cega. Ou dá luz.

Sua interpretação passa por seu entendimento como sociedade, e não apenas mero reflexo ou representação social17. A cidade, como espaço socialmente utilizado, contempla o arcabouço social que inclui as transformações físicas e aparências mórficas. Desta interpretação resultam abordagens que se fundamentam na estética ou topocepção18, na sustentabilidade ou logística. Por que certas cidades funcionam melhor que outras? Por que umas são mais agradáveis? Outras mais áridas?

Segundo KOHLSDORF (1996, p. 21), “o espaço urbano e sociedade são duas faces da mesma moeda, ou seja, o espaço é um aspecto estrutural da cidade. Seu papel supera o conceito sociológico de suporte de atividade, pois não é um meio rígido neutro, mas capaz de oferecer possibilidades e restrições à realização de práticas”.

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Acreditamos que cidade não é uma projeção ou reflexo da sociedade, como afirmam CASTELLS (1983, p. 146) e PANERAI et al. (1986, p. 15), e sim a própria sociedade, por ser uma das maneiras pelas quais ela se mostra. É iniciativa árdua, pois é tendência corrente na literatura enxergar cidades como meros cenários sociais: (1) “[...] propomos uma primeira definição da cidade como uma projeção da sociedade no solo” (LEFEBVRE, 1999, p. 109).

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A aproximação topoceptiva, desenvolvida no Brasil originalmente por Maria Elaine KOHLSDORF (1996), refere-se à investigação dos atributos físicos associados à percepção e imagem mental que os indivíduos têm nos lugares. Avalia-se qual o desempenho da forma construída para a orientação e localização de pessoas nos espaços.

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Um olhar sobre cidade medieval ou medina árabe revela atributos de culturas e diacronias que nos auxiliam na compreensão das premissas de uma ou outra forma espacial. O dizer numa ou outra contempla variadas sobreposições e são raros os exemplares que se restringem a um padrão, à exceção das incursões ex-nihilo renascentistas ou modernas, citando apenas duas.

Curiosidade também são os entendimentos da etimologia precisa do verbete cidade: um expresso passeio diacrônico revela a mudança paulatina do termo, ilustrando o quanto os problemas atrelados aos assentamentos urbanos enquanto preocupação social é

relativamente recente: o elemento propulsor foram as próprias engrenagens do maquinário da Revolução Industrial.

Do século XIX resultam os primeiros recordes populacionais, com Londres, então caput

mundi, alcançando os 6 milhões de habitantes, e o nascimento do termo “urbanismo”, a

cargo de catalão Idelfonso Cerdá.

O neologismo, de fato, revela uma mudança de interpretação ao apresentar a cidade como uma seara reflexiva e um campo de investigação científica. Respalda-se, sobretudo, nas conseqüências urbanas da Revolução Industrial, amparando-se no pensamento da Revolução Científica que, finalmente, pousa sobre cidades européias já em franca transformação. “Corresponde ao surgimento de uma realidade nova: [...] a expansão da sociedade industrial dá origem a uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter [...] crítico e por sua pretensão científica” (CHOAY, 2003, p. 2). Por extensão, avança HAROUEL (2001, p. 8), o termo urbanismo passou a englobar

inúmeros aspectos associados à cidade: obras públicas, morfologia urbana, planos urbanos, práticas sociais e pensamento urbano, legislação e direito relativo à cidade.

É um ampliar a visão ainda relutante19 que expõe a insatisfação com o status ora vigente: “a arquitetura tem sempre reivindicado para si a função de reguladora das artes; e agora, por sua vez, o planejamento urbano reivindica a função de regulador da arquitetura” (GEDDES, 1994, p. 135).

As rupturas urbanas físicas são inevitáveis: caem as antigas muralhas medievais na Europa e os grandes planos urbanos modificam as paisagens locais. Viena e o Ringstrasse

substituindo a muralha medieval tornam-se emblemáticos (Figuras 1.5 e 1.6).

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“O arquiteto está acostumado aos edifícios isolados ou, no máximo, aos planos de ruas; o engenheiro civil, às ruas e aos quarteirões, e ambos relutam em ampliar a visão” (GEDDES, 1994, p. 47).

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Figura 1.5 – Mapa de Viena – Áustria em 1844: o núcleo medieval permanece circundado pelas muralhas e baluartes. Fonte: < http://www.macalester.edu/courses/GEOG61/aaron/wallmap.html >.

Restam as inquietações: o que manter do passado, como dar prosseguimento à expansão urbana, de que higienizar, que infra-estruturas?

Os pensadores urbanos se manifestam e as abordagens são vastas à semelhança da profusão de produtos surgidos da indústria nascente. Geddes propõe a manutenção do padrão urbano existente, sem grandes reformas na malha viária, mas adaptado-a aos novos condicionantes de higiene e de tráfego (KOSTOF, 2001, p. 87).

O plano do Barão de Haussaman, simbólico, executa o oposto: rasga-se o tecido urbano e a Paris medieval declina exausta sob as mudas transplantadas para os novos bulevares. É a imagem do novo tempo e a bela época começa. Os ecos mundiais, que no Brasil são transpostos com o Plano Pereira Passos e depois Agache, no Rio de Janeiro, juntam-se à

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saga dos higienistas e a capital do Império e República destrói diversos quarteirões coloniais, como em Salvador se demoliu a Sé velha para a abertura dos trilhos da linha de bonde. As novas estéticas urbanas não eram compatíveis com a ordenação colonial precedente. O olhar ao futuro pautava-se no desprezo à construção colonial e a inspiração européia iniciava-se bem além da ocidental praia lusitana.

Figura 1.6 – Plano para Viena – Áustria em 1860: as muralhas circundando o núcleo central são substituídas por novos quarteirões e avenidas, respondendo às aspirações burguesas por uma identidade urbana sua própria,

independente dos valores aristocráticos. A estética arquitetural resultante é aquela de filiação ao passado, promovendo reproduções de estilos ao gosto eclético.

Fonte: < http://www.macalester.edu/courses/geog61/aaron/viennaplan.html >.

Camilo Sitte, em finais do século XIX,constrói sua teoria da forma da cidade contra a regularidade geométrica, contra a Haussmanização, e a favor da qualidade morfológica dos espaços por meio de seus atributos estéticos. Os parâmetros são diversos espaços públicos em cidades renascentistas, barrocas, clássicas e medievais, sobretudo italianas, com farta lista de descrição de vantagens (Cf. The art of building cities).

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Gordon Cullen, já no século XX, associa-se estreitamente a postura de Sitte ao fundar a teoria da Townscape, definindo o planejamento da cidade como ‘a arte das relações’, focalizando a investigação de sítios históricos a partir da análise seriada, preocupação com a escala humana e o conteúdo.

Sitte e Cullen buscam o passado sem significar reprodução ou pastiche, como

contemporaneamente se faz argumentando-se um historicismo supostamente plástico. O foco de ambos é o entendimento das qualidades espaciais e sua releitura na produção sua contemporânea. Portanto, questão de conteúdo e não de forma exterior.

Os princípios são ilustrativos dos dois âmbitos conflitantes: ou reformas monumentais ou preservação e construção de qualidades espaciais, resgatando-se aquilo que se perdeu na era moderna com a Revolução Industrial.

A necessidade pelo estudo urbano cresceu progressivamente à medida que a cidade engordava e se transformava em mancha extensa de expansão cobrindo grandes áreas. A ampliação das cidades além-muralhas não era um fenômeno raro, mas apenas no século XIX as cidades européias avançam decisivamente para fora de seus antigos baluartes. Se surge o termo urbanismo por um lado, as idéias de conurbação, gigantismo urbano e megalópole logo deixam de ser devaneios futuristas à Júlio Verne e se tornam espaço construído: as periferias suburbanas avançam.

Para enfocar essas [...] transformações da tradição geográfica da cidade e do campo [...] precisamos de um pequeno aumento do nosso vocabulário [...]. Essas cidades-região [...] pedem um nome. Não podemos chamá-las constelações; o vocabulário conglomerações parece mais próximo da realidade presente, mas ainda não é pertinente. E conurbações? (GEDDES, 1994, p. 48).

Certidão de batismo: as cidades se conurbam e antigas vilas são incorporadas a uma mancha única indiscriminada. As centralidades se deslocam e os grupamentos urbanos se tornam estruturas imensas além-controle. É processo que, inclusive, define as novas formas de articulação urbana: Londres se consolida desta maneira, Recife também. A cidade segue acompanhando as estradas intercidades, vilas e aldeias, formando uma entidade só. Instala- se a megalópole. E os problemas ilustrados por Gustave Doré são potencializados

proporcionalmente à medida que as capitais imperialistas se estabelecem: crises de tráfego, esgotamento da infra-estrutura, poluição, violência, miséria (Figura 1.7).

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Figura 1.7 – Imagens do livro “A pilgrimage” (1872), por Gustave Doré. O artista foi contratado para ilustrar cenas cotidianas da Londres novecentista. Apesar do sucesso da publicação e da construção da talvez mais emblemática imagem das conseqüências urbanas da Revolução Industrial (Over London by rail), o artista foi

acusado de mais inventar que reproduzir cenas cotidianas. Fonte: < http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/Jdore.htm >.

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O resultado são conflitos de adequação entre a práxis local e aquela importada. Os problemas não demoram a aparecer: desconsideração das peculiaridades geográficas e climáticas do local, destruição do patrimônio arquitetônico remanescente para a ampliação de eixos e avenidas, valorização da arquitetura e do urbanismo externo, negação do telúrico, etc. “A arquitetura da cidade reduziu-se a seu aspecto funcional, colocando por terra a antiga aliança entre forma e desenvolvimento de práticas sociais que estabelecia a localização de atividades” (KOHLSDORF, 1996, p. 24).

A cidade é transformada e o impacto de gestão estabelece um novo parâmetro para guiar as políticas e projetos urbanos: diretrizes socioeconômicas para a otimização e produção. Muda-se também o tempo e o cronômetro: as cidades não são mais medidas a partir dos seus monumentos e obras públicas, e sim pelo tempo de viagem. Qual o limite para o deslocamento dos trabalhadores. O que o capital permitiria para maximizar a produção. O surgimento do transporte público assegura, quando sim, a integração entre as diversas zonas e atividades da metrópole, distribuindo os fluxos internos segundo uma relação tempo/espaço suportável. O automóvel, por outro lado, contribui para a dispersão urbana, como enormes zonas de residência individual, espalhadas por toda a região, e ligadas pelas vias de circulação rápida aos diferentes setores funcionais (CASTELLS, 1983, p. 30-31). O subúrbio e a periferia ganham o aparato para seu estabelecimento.

A cidade avança no século XX definindo a progressiva transformação da humanidade de agrária para urbana. Em 1995 é anunciada a marca histórica durante a conferência do Habitat em Istambul: pela primeira vez mais da metade da população mundial vive em cidades. O número é crescente.

No documento Ou Sobre Cidades do Brasil (páginas 43-50)