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De que forma a cultura pode ser abordada em sala de aula

5 ANÁLISE DE DADOS

5.2 OS PROFESSORES EM FORMAÇÃO, SUAS PERCEPÇÕES, CRENÇAS E

5.2.3 De que forma a cultura pode ser abordada em sala de aula

Enquanto há um consenso entre os professores ao afirmar a importância de se abordar aspectos culturais na sala de aula de LE, ainda que todos não tenham domínio sobre aspectos teóricos e técnicos que envolvam a abordagem de cultura nesse contexto, a forma como ela deve estar presente nos assuntos ministrados não goza de unanimidade entre esses sujeitos da pesquisa. Na verdade, o que se notou, pelas respostas nos questionários e pelos depoimentos coletados, foi uma lacuna quando se trata da abordagem mais adequada ou interessante para que as informações de cunho extralinguístico e sociocultural sejam transmitidas ou discutidas com os alunos estrangeiros. As observações posteriores realizadas com os Profs 2 e 3 e outros estagiários mais novos, com abordagens que não ultrapassavam a mera comparação entre as culturas ou a resposta a perguntas dos alunos, na maioria das vezes efetuadas de forma acrítica, ratificaram essa conclusão.

Além disso, percebe-se que os estagiários pouco se referem ao trabalho que deve ser feito junto aos alunos para que desenvolvam sua CCI e, com isso, tornem-se mais observadores, curiosos e abertos às diferenças, críticos e responsáveis nos momentos de interação e contato com a língua-alvo, contribuindo para o desfecho comunicativo exitoso, harmonioso e pacífico em contextos diversos e com interlocutores das mais variadas origens e culturas.

O Prof 3 expressa sua inquietação e insegurança ao se referir ao ensino de cultura em suas aulas de PLA, exemplificando com o uso de música (Cultura):

[...] Por exemplo, é algo que eu considero importante, mas que, ao mesmo

tempo, eu não consigo ver ou propor uma sistematização. Ou então eu não

consigo pensar em um trabalho em conjunto com outros tópicos. Para mim,

cultura é um assunto que se casa principalmente com gramática, às vezes

quando você trabalha com música, por exemplo. (Prof 3)

A Prof 2, por sua vez, que havia assumido a turma havia pouco tempo, afirma que deixa para os professores mais experientes (as aulas são ministradas sempre em dupla) a abordagem de cultura:

Normalmente esse tipo de assunto não sou eu quem aborda. São professores mais experientes. Então, sempre fica mais pra eles. (Prof 2)

Nas observações das aulas desses dois professores, no ano seguinte, apesar da experiência acumulada, da mudança de status para “veteranos” e de tomarem para si a sua condução junto com estagiários menos experientes, notou-se pouquíssimo tempo destinado à abordagem de cultura e esta sendo feita de forma extremamente reativa. O curioso é que o Prof

3 havia sido destacado para ministrar aulas de cultura brasileira uma vez por semana e, apesar de selecionar aspectos culturais para apresentar para os alunos, as aulas observadas tinham mais o formato de palestras, em que ele trazia, por exemplo, aspectos relacionados a moradia, comidas regionais e lendas locais (foram os tópicos observados) e as explicava. Como mencionado acima, sobre interculturalidade, observou-se apenas as perguntas acerca das equivalências ou diferenças entre o que se via no Brasil e nas culturas dos alunos.

Além dessas aulas específicas do Prof 3 (que não foram muitas, em virtude da necessidade de cumprir com o material didático), nos depoimentos e nas observações não houve menção à antecipação de conteúdos culturais e preparação para a abordagem de cultura pelos docentes. A exceção aplicada a todos era uma orientação passada pela coordenação do curso, com a intenção de suprir essa necessidade em virtude da natureza sociocomunicativa do Celpe- Bras e seu efeito retroativo (SCARAMUCCI, 2004), de que as aulas fossem iniciadas com perguntas genéricas acerca de dúvidas dos alunos sobre hábitos ou expressões com que tenham tido contato no dia anterior. Essa atitude por parte da coordenadora pode justificar a afirmação de que a cultura é relevante e é a maior responsável pela ocorrência de exemplos de questionamentos de natureza cultural, a serem abordados na seção seguinte.

O problema verificado nessa estratégia adotada consiste na atitude reativa dos professores, ficando eles sujeitos a qualquer tipo de pergunta e frequentemente respondendo aos questionamentos de forma açodada e sem maior reflexão – talvez até mesmo por instinto de preservação da face e da posição de autoridade na sala. Na maioria das vezes, o que se observou foram perguntas referentes a palavras e expressões que tivessem visto em música ou filme, respondidas de forma bem tradicional, com o aluno indo ao quadro escrever a palavra e o professor respondendo ou escrevendo a tradução no quadro geralmente de forma descontextualizada e com uma acepção apenas.

Em outras vezes, os professores apelavam a generalizações baseadas em suas experiências de vida e que invariavelmente continham imprecisões, como “o brasileiro usa roupas curtas por causa do clima” e “come-se feijão com arroz todo dia por causa da sustância e o aluno precisa aguentar até o jantar”. Ora, é impossível prever todas as dúvidas de cunho cultural que podem ser trazidas pelos alunos, ainda mais em se tratando de professores em formação, sem experiência no ensino de PLA. Uma atividade pedagógica como essa deve ser precedida de, no mínimo, certo levantamento de perguntas recorrentes e preparação para que o docente relativize suas respostas de acordo com as variações linguísticas, comportamentais e axiológicas de um povo tão heterogêneo como o nosso. Além disso, deve-se levar em conta as

diferenças concernentes às culturas dos alunos para que as explicações não sejam feitas de forma a chocá-los e, eventualmente, colocá-los em uma posição de defesa em relação à cultura que passam a conhecer.

Agindo reativamente, em ocorrências em sala de aula ou em tópicos previstos no plano de aula, os estagiários relatam (e esse comportamento também foi notado nas aulas) a estratégia de comparação entre o que ocorre na cultura brasileira e na cultura dos alunos. Verdadeiramente, esta atitude, quando exercida de forma responsável, além de simpática, por dar voz ao aluno para trazer para a sala de aula suas contribuições, exercitar a fala na língua- alvo e reforçar sua identidade, serve para que todos percebam as diferenças e torna-se um exercício de convivência. Ela, então, deve ser estimulada para que os alunos e o próprio professor escutem o outro e aprendam com essas diferenças, sem estabelecer um juízo de certo e errado. Esses procedimentos foram observados nas aulas dos Profs 2 e 3. A Prof 1 ilustra como procede quando aborda algum aspecto cultural em sala de aula:

Assim, o que deu muito certo... eu nunca estudei sobre isso, mas, assim, na prática, foi sempre fazendo analogia daqui com a deles: o que tem, o que

pode ser parecido, algumas festas, né, que são meio que parecidas em alguns países. Aí fazendo como é no seu país. É sempre perguntando, né. Tentando

ver se se aproxima em alguma coisa. Às vezes, tem umas coisas que se aproximam; outras, nem tanto. Mas, é meio que fazendo essa junção, que

tenha um pequeno interesse. (Prof 1)

As dúvidas com relação à abordagem a ser adotada refletem uma possível deficiência na própria formação dos professores como alunos de cursos de Licenciatura. Dos quatro professores, dois (Profs 1 e 2) alegaram não terem abordado o tema cultura de forma satisfatória em seu curso, um (Prof 3) afirmou ter informações, em suas aulas de língua, sobre hábitos e costumes dos falantes da língua-alvo, artistas e músicas conhecidas e apenas uma (Prof 4) afirmou que o curso de Licenciatura apresenta discussões de ordem cultural.

Em resposta à pergunta no questionário, a Prof 1 afirma que “infelizmente não há muitas discussões sobre as abordagens culturais no ensino de LE na graduação de língua espanhola”. Já a Prof 2 expressa suas dificuldades quando se depara com problemas de ordem cultural. Na seção 2.3, já consta um depoimento dela nesse sentido. Em outro momento da entrevista, ela reforça sua necessidade de uma preparação mais específica e reclama da abordagem superficial do tema no curso de Licenciatura:

Como eu coloquei lá no meu questionário, se eu tivesse tido realmente essa

aula de cultura... talvez eu não teria tanta dificuldade hoje. Vendo as culturas... a professora orientando da melhor maneira como a gente deve se portar diante das diferenças... mas não tivemos isso. Ela abordou muito

superficial essas coisas e acabou enrolando mais o nosso semestre e não ensinou muita coisa... (Prof 2)

O Prof 3 aponta uma superficialidade na abordagem de cultura no curso de Licenciatura em francês:

Isso da cultura francesa, algumas coisas, por exemplo, se abordam nos livros, né... é uma vista geral sobre o que é viver na França, ou então... a francofonia e tudo o mais... mas certas coisas, certos costumes ou hábitos

que a gente vê de forma avulsa... por exemplo, os professores que viveram lá falam de alguma coisa que causa estranhamento.

[...] a língua como estudada nesses cursos de LE ainda é algo que está um

pouco isolado da realidade. A língua é isso daqui e a realidade é tudo o mais.

Eu não sei, sinceramente não sei como é que os aprendentes do PLE fazem, se viram para se inserir na nossa realidade. Eu fico curioso pra saber como isso é um processo difícil, eu imagino que deva ser, mas... (Prof 2)

Por último, a Prof 4, que está no fim do mesmo curso de Licenciatura em língua francesa do Prof 3, afirma que veem assuntos de ordem cultural no ensino de línguas:

Sim, sim. Bastante. A gente toca bastante nessas questões... culturais, no

curso, na graduação, né. A gente fala bastante sobre isso. [...] Então... é um assunto que a gente toca bastante, sim. A diferença cultural.

O contraste com a afirmação do outro aluno da mesma Licenciatura pode ter como justificativa o fato de ela estar no último semestre do curso, já ter sido aluna de todas as disciplinas e ele estar no terceiro semestre. A esse respeito, deve-se ressaltar que há uma incidência maior de ingresso no pré-PEC-G de alunos matriculados nos primeiros anos da Licenciatura (como é o caso do Prof 3) do que os já em fase de conclusão (como a Prof 4), ou seja, a probabilidade maior é a do ingresso como estagiário de aluno com maturidade acadêmica mais próxima do primeiro.

A coordenadora, ao ser questionada sobre como ela vê, por meio de relatos dos estagiários nas reuniões pedagógicas ou em consultas por orientação, as noções que eles têm da abordagem de cultura e o desenvolvimento da CCI dos alunos, afirmou:

O obstáculo principal é que muitos não têm experiência ou tem pouca

experiência de ensinar língua em geral, mas nenhum deles tem experiência em PLE. Então, eles não se dão conta dos problemas que o não nativo encontra com coisas que nunca foram problemas pra eles. Eles acham, como

todo brasileiro acha: “Ai, minha língua é muito difícil e tal”, mas ele não percebe que as dificuldades que ele tem foi com a descrição e que o não nativo

vai ter dificuldade com... coisas que eles usam sem ter a menor dúvida sobre como é o uso, não é? (Coord.)

Eles não trazem os problemas como sendo culturais, mas muitos eu interpreto como tendo também um componente cultural aí no meio... na

dificuldade, nem que seja... cultura educativa deles, né. Ou, pelo menos, me explicam determinadas situações por isso. Agora, “você consegue trabalhar esses problemas de forma satisfatória?” Não sei te responder ((risos))

(Coord.)

Na seção 4.2, em depoimento anterior, a coordenadora alerta para o fato de que os professores precisam perceber “a dimensão cultural dos problemas dos alunos”. Ela se refere a um aspecto do que chama de “cultura educativa” dos estudantes estrangeiros e menciona o costume de muitos deles de ficarem calados durante as aulas, de não fazerem perguntas e não interpelarem os professores, o que geralmente é interpretado como timidez, falta de interesse ou de motivação. Esse é um bom exemplo de que o levantamento de dados da cultura dos alunos ou a atenção para a possibilidade da ocorrência de choque cultural podem ser úteis para a adoção de estratégias tendentes a melhor gerenciar o ambiente de aprendizagem.

Tanto nas reuniões pedagógicas, como nas aulas observadas e em conversas informais com os estagiários, o que se percebe é uma insistência em orientar, ora de maneira mais relaxada, ora de maneira mais incisiva, seus alunos a falar em sala de aula, com argumentos diversos, embasados em sua experiência pessoal, como aluno de LE, ou em práticas de ensino da produção oral.

No entanto, em encontros deste pesquisador com as turmas de 2017 e 2019, não foram poucos os relatos de alunos de estudarem, em seu país, em salas com mais de cem alunos e a impossibilidade de se abordar o professor; de serem constrangidos simplesmente por fazer uma pergunta durante a aula; de existir uma distância hierárquica bastante significativa entre alunos e professores; e de haver até punições físicas por “atrapalharem” a aula. Consequentemente, o resultado dessas tentativas dos professores é praticamente nulo nos primeiros meses, em que o choque cultural é sentido com mais força. O professor estagiário acaba ficando frustrado, interpretando a falta de perguntas como desinteresse, desmotivação ou falta de exposição à língua, o que, em boa parte dos casos, configura um diagnóstico equivocado.

Nesse exemplo posto, a observação dessa diferença entre as culturas de certos alunos e do professor pode fazer com que este último adote uma postura distinta, conscientizando-os de que o comportamento socialmente aceitável e esperado na sala de aula de LE no Brasil é o de abertura para a interpelação oral pelo aluno e estimulando-os a ajustar seu comportamento discente em prol da criação de condições para a aprendizagem do português.

Ademais, o ensino de aspectos culturais desde o início do curso, de forma responsável e adequada, municia os alunos de conhecimentos que utilizarão de forma consciente nas interações fora de sala de aula, oportunidades de exposição e prática da língua-alvo extremamente importantes, pois repletas de significação e funcionalidade em um momento tão delicado de sua jornada estudantil. Podem ser antecipadas informações que acarretariam choque e, em situações extremas, relutância em se colocar em situações de uso da língua, restringindo essas experiências às aulas do pré-PEC-G.

A falta de conhecimento teórico alegada pelos professores investigados, por si só, já reforça a ideia da adequação de intervenções junto a sua preparação para ministrar aulas de PLA no contexto em questão, o que seria o objeto do presente trabalho. A importância dessa intervenção aumenta à medida que se visualizam os momentos em que esses professores iniciam sua interação a cada ano, com alunos que apresentam arcabouço cultural diverso, pois são turmas bastante heterogêneas, e bastante distinto do nosso (como percebido na seção anterior, em que narram aspectos que não só lhes geraram estranhamento, mas muitas vezes desconforto e até conflito).

O próximo subcapítulo apresenta um questionamento feito a eles acerca desses episódios em que essas diferenças culturais afloraram no ambiente de sala de aula e como os professores, em uma posição frágil e geralmente amparados pela intuição, por conhecimento empírico e não sistematizado ou por ajuda de colegas mais experientes, atuam como mediadores diante de choques culturais vivenciados na própria aula ou trazidos pelos alunos na forma de críticas, reclamações ou meras constatações quando o assunto é abordado ou quando fazem parte de seu dia a dia fora da instituição.