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Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986

3. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

3.2. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986

O direito ao desenvolvimento vem proclamado expressamente na Declaração

sobre o Direito ao Desenvolvimento em 1986; assim como na Declaração e Programa de Ação de Viena, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos em

1993, consagrando a Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento “direito universal

e inalienável e parte integral dos direitos humanos fundamentais”. Nesse sentido, a

pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento, não podendo ser invocada a “falta de desenvolvimento” como justificativa para se limitar os “direitos humanos

internacionalmente reconhecidos”.

Sem adentrarmos, nesse momento, à questão da eficácia das normas constitucionais, importante destacar o enfoque nos documentos internacionais sobre direitos humanos, a observação de Fábio Konder Comparato, que entende, “o

desenvolvimento é um processo de longo prazo, induzido por políticas públicas ou programas de ação governamental em três campos interligados: econômico, social e político”, assim explicado:

O elemento econômico consiste no crescimento endógeno e sustentado da produção de bens e serviços. Endógeno, porque fundado nos fatores internos de produção e não, portanto, de modo predominante, em recursos advindos do exterior. Crescimento sustentado, porque não obtido com a destruição dos bens insubstituíveis, constituintes do ecossistema.

O elemento social do processo desenvolvimentista é a aquisição da progressiva igualdade de condições básicas de vida, isto é, a realização,

49Cabe aqui, por oportuno, a crítica de Miguel Reale ante o equívoco de alguns partidários do

“fundamentalismo ecológico” e dos excessos cometidos pelo Ministério Público: “É à luz, pois, de um quadro global de valores, tanto da natureza como da vida humana, que deve ser situada a defesa do meio ambiente pela sociedade e, por conseguinte, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, não tendo sentido que, ao fazê-lo, prevaleçam motivações resultantes do fanatismo ecológico. Tenho tido notícia de tão exageradas e descabidas defesas do meio ambiente que, se eles tivessem prevalecido na história do povoamento e desenvolvimento do Brasil, ainda estaríamos vinculados às estreitas fronteiras do Tratado de Tordesilhas...” (Em defesa dos valores humanísticos. Espaço Aberto. Jornal O Estado de São Paulo, 13 de março de 2004).

para todo o povo, dos direitos humanos de caráter econômico, social e cultural, como o direito à seguridade social (saúde, previdência e assistência social), o direito à habitação, o direito de fruição dos bens culturais.

Enfim, o desenvolvimento integral comporta, necessariamente, um elemento político, que é a chave da abóbada de todo o processo: a realização da vida democrática, isto é, a efetiva assunção, pelo povo, do seu papel de sujeito político, fonte legitimadora de todo poder e destinatário do seu exercício. Pode-se, pois, justificar a ausência, na Carta Africana, da declaração do direito dos povos à democracia, desde que se sustente que ele é o componente político indispensável de um verdadeiro direito ao desenvolvimento.50

Não apenas o homem individualmente considerado, como também o povo, são sujeitos ativos ou beneficiários do direito ao desenvolvimento, cuja significação maior desta evolução reside no reconhecimento ou asserção do direito ao desenvolvimento como um “direito humano inalienável”, estando todos capacitados a participar no desenvolvimento econômico, social, cultural e político, dele desfrutar e contribuir ao mesmo, no qual todos os direitos humanos “podem realizar-se

plenamente”.51

A partir da Declaração das Nações Unidas de 1986, as agências especializadas das Nações Unidas, cumprindo o referido no preâmbulo acerca dos

instrumentos, passam a se utilizar de mecanismos desenvolvidos no domínio dos

direitos humanos, cujos exemplos são dados por Antônio Augusto Cançado Trindade:

[...] o sistema de relatórios, o monitoramento (por um grupo de trabalho ou um rapporteur especial) de situações manifestamente resultantes da condição de subdesenvolvimento (afetando diretamente a realização do direito ao desenvolvimento), a elaboração de estudos aprofundados (identificando problemas relativos a alguns direitos econômicos e sociais, por exemplo, atinentes à saúde, moradia, educação).52

O que se percebe com essa “instrumentalização” de que dotou as agências especializadas das Nações Unidas é o fato do mero crescimento econômico não bastar para a análise e elaboração de estudos acerca do desenvolvimento, ou seja, não se trata mais do desenvolvimento econômico, e sim, do desenvolvimento em que se privilegiam os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

50 COMPARATO, 2004, p. 395-396. 51 TRINDADE, 1997, p. 276-277. 52 Ibid., p. 277-278.

Restava superada aquela idéia de que crescimento econômico promovia automaticamente aquele desenvolvimento proclamado na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986.

Para tanto, basta analisar os números produzidos, sobretudo na Segunda Guerra Mundial53, que, indubitavelmente, ajudaram muito a difundir a especialização

técnica, com grande impacto na organização industrial e nos métodos de produção em massa.

Faz-se, então, a seguinte pergunta: - Afinal, a Guerra promoveu crescimento econômico? A essa questão Eric Hobsbawm analisa sob dois ângulos:

Num certo sentido, é evidente que não. As perdas de recursos produtivos foram pesadas, sem contar a queda no contingente da população ativa. Vinte e cinco por cento dos bens de capital pré-guerra foram destruídos na URSS durante a Segunda Guerra Mundial, 13% na Alemanha, 8% na Itália, 7% na França, embora apenas 3% na Grã-Bretanha (mas isso deve ser contrabalançado pelas novas construções de tempo de guerra). No caso extremo da URSS, o efeito econômico líquido da guerra foi inteiramente negativo. Em 1945, a agricultura do país estava em ruínas, assim como a industrialização dos Planos Qüinqüenais pré-guerra. Tudo que restava eram uma imensa e inteiramente inadaptável indústria de armamentos, um povo morrendo de fome e em declínio, e maciça destruição física.54

53Conforme o historiador Eric Hobsbawm, os governos priorizaram o ramo de fabricação de

armamentos e material bélico, além de outros que fatalmente estavam ligados à guerra, cujo retrato histórico surpreende nos números: “Contudo, mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, a França fazia planos para uma produção de munição de 10-12 mil granadas por dia. Mesmo a Rússia czarista descobriu que produzia 150 mil granadas por dia, ou uma taxa de 4,5 milhões por mês. Não admira que os processos das fábricas de engenharia mecânica fossem revolucionados. Quanto aos instrumentos menos destrutivos da guerra, lembremos que durante a Segunda Guerra Mundial o exército dos EUA encomendou mais de 519 milhões de pares de meias e mais de 219 milhões de calças, enquanto as forças alemãs, fiéis à tradição burocrática, num único ano (1943) encomendou 4,4 milhões de tesouras e 6,2 milhões de almofadas para carimbos dos departamentos militares (Milward, 1979, p. 68). A guerra em massa exigia produção em massa. Por outro lado, as guerras foram visivelmente boas para a economia dos EUA. Sua taxa de crescimento nas duas guerras foi bastante extraordinária, sobretudo na Segunda Guerra Mundial, quando aumentou mais ou menos 10% ao ano, mais rápido que nunca antes ou depois. Em ambas os EUA se beneficiaram do fato de estarem distantes da luta e serem o principal arsenal de seus aliados, e da capacidade de sua economia de organizar a expansão da produção de modo mais eficiente que qualquer outro. É provável que o efeito econômico mais duradouro das duas guerras tenha sido dar à economia dos EUA uma preponderância global sobre todo o Breve Século XX, o que só começou a desaparecer aos poucos no fim do século. Em 1914, já eram a maior economia industrial, mas ainda não a dominante. As guerras, que os fortaleceram enquanto enfraqueciam, relativa ou absolutamente, suas concorrentes, transformaram sua situação. Se os EUA (nas duas guerras) e a Rússia (sobretudo na Segunda Guerra Mundial) representam os dois extremos dos efeitos econômicos das guerras, o resto do mundo se situa entre esses dois extremos; mas no todo mais perto da ponta russa que da ponta americana da curva.” (Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 52).

Obviamente que a essa constatação, o Estado não mais poderia conceber apenas o crescimento econômico como sendo fator de desenvolvimento pleno do homem e de todos os povos.

As Declarações que se seguiram no pós-guerra passaram, assim, a ter um caráter universal elevando a condição humana como essencial a ser protegido e garantido, de maneira a superar a experiência, do próprio homem, que tentou impor pela força ao exterminar milhões de almas, desmantelando o Estado, a família e a sociedade.

As proclamações de direitos do homem traduziram, assim, a clara tentativa de resgatar aqueles direitos naturalmente reconhecidos, mas positivando internacionalmente os direitos humanos.

Ao mero crescimento econômico, o Estado não mais poderia se curvar sem antes reconhecer nos direitos humanos um fator limitador, auscultando o teor das Declarações Universais de Direitos do Homem, sob pena de violação dos direitos que se tornaram universais e inalienáveis, através da evolução da conquista de direitos, de maneira a irradiar para o direito internacional e, por conseqüência, ao direito interno das Nações.

Daí o direito ao desenvolvimento, não aquele meramente econômico, não obstante sua inquestionável importância, mas com o “propósito de fortalecer, jamais

restringir, os direitos pré-existentes”, em razão da natureza complementar de todos

os direitos humanos e, assim, qualquer denegação há de acarretar conseqüências adversas para o exercício dos direitos civis e políticos assim como os direitos econômicos, sociais e culturais.55

É exatamente em função da associação com as questões relacionadas à justiça e igualdade, como indica Arjun Sengupta que,

Realizar o direito ao desenvolvimento é fundamentalmente diferente das políticas convencionais e programas para o desenvolvimento, vistos como o aumento do PIB, o suprimento das necessidades básicas ou melhoria do índice de desenvolvimento humano.56

55 TRINDADE, 1997, p. 281. 56 2002, p. 66.

Antônio Augusto Cançado Trindade considera que o reconhecimento e a cristalização do direito ao desenvolvimento “só puderam ter ocorrido à luz da

unidade de concepção e indivisibilidade dos direitos humanos”, em crítica frontal a

consagradas autoridades como Norberto Bobbio que tratou das gerações dos direitos do homem, declarando que, “o fenômeno que hoje testemunhamos não é o

de uma sucessão generacional imaginária (a infundada teoria das gerações de direitos), mas antes o da ‘expansão e fortalecimento dos direitos humanos reconhecidos’”.57

A essa afirmação, segue à crítica de Ingo Wolfgang Sarlet58, ao rebater a proposta de Antônio Augusto Cançado Trindade de que as chamadas “gerações de

direitos” não possuem fundamento histórico e jurídico e têm prestado um “desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos”, posto tratar-se de uma “infeliz invocação da imagem analógica da ‘sucessão generacional’”, justificando-se que essa fragmentação em categorias

ou de projetá-los em “gerações” não passam de tentações dos poderosos para postergar “sob pretextos diversos a realização de alguns (e.g., os direitos

econômicos, sociais e culturais) para um amanhã indefinido”.59

A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento dispõe que para a realização do direito ao desenvolvimento, os Estados devem garantir “igualdade de

oportunidade para todos no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimento, vestimenta, moradia, emprego e a justa distribuição de renda”

(artigo 8).

Nessa esteira, ressalta Antônio Augusto Cançado Trindade, a compreensão de que “o desenvolvimento econômico não é um fim em si mesmo, mas antes um

meio de realizar objetivos sociais mais amplos como imperativos de justiça social”,

valendo a advertência do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento de que “os direitos econômicos, sociais e culturais estão a

requerer atenção especial”.60

57TRINDADE, 1997, p. 281.

58A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 50. 59TRINDADE, 1997, pp. 24-25.

Ainda que se considere a importância das gerações/dimensões dos direitos humanos, vale a advertência de Antônio Augusto Cançado Trindade, ao reafirmar que os direitos humanos são indivisíveis:

Urge por um fim à tendência de separar o desenvolvimento econômico do desenvolvimento social, as políticas macroeconômicas (visando o crescimento econômico) dos objetivos sociais do desenvolvimento; os conceitos contidos na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 deveriam ser incorporados às políticas e programas de todas as agências e órgãos do sistema das Nações Unidas, inclusive as instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional).61 Os direitos até aqui expostos, trataram do direito ao desenvolvimento sob a ótica dos direitos humanos individuais em que, resumidamente, pressupõe que para atingir o desenvolvimento, “se removam as principais fontes de privação de

liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”62, sendo necessário abordar acerca dos direitos

coletivos, pelo próprio reconhecimento constante no “preâmbulo” da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, que ora insere como “toda a

população”, ora como “todos os povos”, estabelecendo logo no artigo 1:

1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados;

2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais.

Na explicação de Arjun Sengupta, “não há razão para considerar os direitos e

um grupo ou coletividade (povo ou nação, grupos étnicos ou lingüísticos) como sendo fundamentalmente diferentes em natureza dos direitos humanos de um indivíduo, uma vez que seja possível definir a obrigação de garantir estes direitos e os responsáveis por assegurá-los”.63

61 1997, p. 282-283.

62 SEN, 2000, p. 18. 63 2002, p. 76.