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4. DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.6. Morte das Normas Programáticas

A doutrina consagra como sendo norma programática, aquele preceito constitucional onde não se teria uma aplicabilidade imediata e nem uma real aplicação. Seria apenas um comando que ditaria um objetivo a ser buscado, um norte a ser seguido, algo a ser implementado um dia.

Corroborando com esse entendimento, José Afonso da Silva171 assim dispõe acerca da matéria,

170 MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p.113 e 114. 171 2004, p. 137 e 138.

[...] Muitas normas são traduzidas no texto supremo apenas em princípio, como esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários. São estas que constituem as normas constitucionais de princípio programático, [...].

[...]

Aceitando as linhas fundamentais dessa doutrina, e reservando especo para esclarecimentos e especificações ulteriores, podemos conceber como programáticas aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.

Nesse sentido, estaríamos retirando a eficácia e eficiência de um preceito constitucional, nos colocando a espera e ao bel prazer das autoridades públicas para a sua aplicação, podendo ou não fazer a aplicação do preceito constitucional. Isso constitui ato ainda mais grave, quando se classifica um preceito de direito fundamental como sendo de origem programática. Nesse sentido, temos que dar uma real e ampla aplicabilidade a todos os preceitos constitucionais indistintamente, ainda mais quando se tratar de norma de direito fundamental.

O constitucionalista português Jorge Miranda explica os direitos sociais e traz à lume a intrincada questão das normas programáticas:

Os direitos sociais abrangem tanto a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a protecção à maternidade e à infância e a assistência aos desempregados como os direitos dos trabalhadores atinentes à segurança do emprego, ao salário, à associação sindical, à greve e à participação (arts. 6º a 11). No que é, por certo, a mais grave deficiência do texto constitucional, só muito depois surge a “ordem social” (arts. 193 a 232), evidentemente indissociável dos direitos sociais, mesmo quando se traduz em garantias institucionais e incumbências do Estado. Dominam aqui as normas programáticas, muitas delas de difícil cumprimento até a longo prazo, pelo menos da mesma maneira num país tão diversificado como o Brasil (e cuja estrutura federativa deveria recomendar maior plasticidade”.172

A norma constitucional programática, não obstante já anunciada sua “morte” era objeto de discussão mesmo antes da edição da Constituição de 1988, quando do estudo na XI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil em Belém, Pará, de 04 a 08 de agosto de 1986, decidindo a Comissão por enumerar

para possível inclusão nos anais, as sugestões apresentadas pelo Dr. Nardim Lemke, nos seguintes termos: “(...) inserir entre os direitos e garantias individuais o

direito à moradia, especificando, em artigo próprio, o fornecimento de recursos financeiros para a concreção desse direito“ e “(...) tornar obrigatórias as normas programáticas, a exemplo do que consta da Constituição Alemã (arts. 1º e 3º)”, entre

outras sugestões enumeradas e incluídas naqueles Anais.173

Tal conclusão veio de encontro com a exposição de J. J. Calmon de Passos que fez constar como uma de suas proposições, entre outras:

(...) As normas definidoras das liberdades, garantias e direitos fundamentais têm eficácia imediata, independentemente da edição de leis ou decretos de aplicação. Elas são interpretadas e integradas à luz das declarações internacionais de direito das quais o Brasil é signatário.174

As normas constitucionais programáticas encontraram terreno fértil de discussão e crítica na doutrina, reconhecendo Paulo Bonavides175 consistir na “face

moderna das Constituições” e que devido às formulações em termos genéricos e

abstratos “comodamente se atribui a escusa evasiva da programaticidade como

expediente fácil para justificar o descumprimento da vontade constitucional”, pois,

com efeito:

(...) de todas as normas constitucionais a programática é indubitavelmente aquela cuja fragilidade mais suscita dúvidas quanto à sua eficácia e juridicidade, servindo assim de pretexto cômodo à inobservância da Constituição.

A análise histórico-teleológica, que nenhum texto constitucional dispensa e a que não se pode forrar nenhum constitucionalista, é talvez o instrumento interpretativo mais poderoso de que dispõe a hermenêutica das normas constitucionais, sobretudo da norma programática.

Esse reconhecimento vem modificando pensamentos e oportunamente Willis Santiago Guerra Filho traz a notícia de que o novo pensamento de José Afonso da Silva, apresentado em palestra na Universidade de Fortaleza – UNIFOR – no dia 04.12.92 (texto na Revista da Procuradoria do Estado do Ceará – RPGE, n. 11,

173XI CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Anais. Belém-Pará,

1986, p. 644.

174Idem, p. 689-680.

1993, p. 43 s.), tratando da questão da eficácia da norma de direito fundamental, assim se retrata:

Nesse momento, vale suscitar um último aspecto, encerrando essa parte do presente trabalho, que se propunha mais a demarcar uma problemática, indicando rumos para ulteriores desenvolvimentos, do que propriamente trazer um tratamento exaustivo da matéria. Trata-se da questão da eficácia da norma de direito fundamental, à qual não se aplicaria as classificações usualmente apresentadas, em manuais de direito constitucional pátrio, da “cargas de eficácia” das normas constitucionais. Essas classificações, em que pese alguma variação terminológica, costumam ser construídas a partir de um padrão, importado da doutrina italiana – onde, aliás, não é mais encontradiço, nas exposições recentes do direito público peninsular –, em que se teria uma gradação dessa eficácia desde um máximo, quando as normas constitucionais apresentariam “eficácia plena”, até um mínimo, registrado nas chamadas “normas programáticas” – e nesse ponto não se pode deixar de fazer uma referência à renovação do pensamento de J. Afonso da Silva, do qual costumam partir os doutrinadores pátrios que tratam dessa matéria, no sentido de aceitar a aplicabilidade das normas programáticas, que permaneceriam com essa denominação apenas por conterem (também) pautas para ação estatal, posição próxima daquela de Canotilho, adiante referida.176

José Afonso da Silva177 ao mencionar sobre as normas programáticas e a

finalidade da ordem econômica e social assim dispõe:

As normas programáticas são de grande importância, como dissemos, porque procuram dizer para onde e como se vai, buscando atribuir fins ao Estado, esvaziado pelo liberalismo econômico. Essa característica teleológica lhes confere relevância e função de princípios gerais de toda a ordem jurídica, como bem assinala Natoli, tendente a instaurar um regime de democracia substancial, ao determinarem a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com vista a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Esta é o fim que os arts. 170 e 193 da Constituição de 1988 prescrevem para as ordens econômica e social. Não é fácil realizar a justiça social num sistema em que predomina a concentração da riqueza. É que ela só se concretizará mediante eqüitativa distribuição da riqueza nacional, pois um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais de viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Um regime democrático de justiça social não aceita as profundas desigualdades, a pobreza e a miséria. Ora, o reconhecimento dos direitos sociais, como instrumentos de tutela dos menos favorecidos, não tem tido a eficácia necessária para reequilibrar a posição de inferioridade que lhes impede o efetivo exercício das liberdades garantidas. Assim, no sistema anterior, a promessa constitucional de realização da justiça social não se efetivara na prática. A Constituição de 1988 é mais incisiva no conceber a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social para o fim de assegurar a todos existência digna. Dá a justiça social um conteúdo preciso. Preordena alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a

176 GUERRA FILHO, 2007, p. 59.

redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca do pleno emprego – que possibilitam a compreensão de que o capitalismo concebido há de humanizar-se (se é isso seja possível). Traz, por outro lado, mecanismos na ordem social voltados à sua efetivação. Tudo depende da aplicação das normas constitucionais que contêm essas determinantes, esses princípios e esses mecanismos.

Não é que seja destituída de valor jurídico e de eficácia a determinante constitucional de que as ordens econômica e social objetivem realizar a justiça social. Esta é uma determinante essencial que impõe e obriga que todas as demais regras da constituição econômica sejam entendidas e operadas em função dela. E mais releva essa importância quando se lembra que parte da doutrina reconhece que a justiça social se erigem em fator de legitimação constitucional. A questão, atualmente, consiste mais em compreender a natureza desse valor-fim das ordens econômica e social, a fim de que seja tido em conta na aplicação das normas definidoras dos direitos sociais do homem.

Existe um “conteúdo intangível” dos direitos fundamentais que não pode ceder de forma alguma, traduzido no que vem a ser denominado de “mínimo existencial”, “ou seja, aquele conjunto de situações que caracterizam o ponto limite a

partir do qual não se pode avançar sem ofender a dignidade do homem, sem reduzi- lo a meio”.178 A efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana deve ser

imediata e, apenas assim, se aplicará o comando constitucional.

178 GUERRA FILHO, 2007, p. 115.