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DECOLONIZAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO

COMO ESTRATÉGIA NO ENSINO DO DIREITO

DECOLONIZAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO

As práticas pedagógicas oriundas do projeto sob análi- se enfrentaram uma série de dificuldades: estrutura institucional burocratizada, tempo hábil para finalização dos trabalhos, para uma adequada orientação, o grau de dificuldade das leituras in- dicadas aos alunos e das avaliações finais – efetivadas por meio de bancas de avaliação -, para citar algumas delas. No entanto, as respostas auferidas por meio dos grupos focais revelaram vários pontos positivos na inserção dos alunos em trabalhos de campo (HENNING, 2008).

O protagonismo discente e a consequente modifica- ção na relação de poder entre professor-aluno, é ressaltada pelo Aluno 7:

A7: Acredito que, aqui pra todos que estão pre- sentes, que podem falar da sua vida acadêmica, mas acho que todo mundo desenvolveu um tra- balho dentro da sala de aula, que sempre teve como fonte: livros, revistas, jornais, em fim, inter- net, mas nunca uma fonte de informação tão por

essência, tão rica, tão única por essência como foi a informação que a gente obteve na aplicação dos questionários, na sociedade. Foi muito bom poder trabalhar com dados e ter nossas próprias conclusões, baseadas numa informação que nós obtivemos por nós mesmos, que fez a nossa pró- pria cabeça. Digamos assim, porque nós mesmos fizemos a nossa própria cabeça.

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Por meio da pesquisa de campo, os estudantes entraram em contato com saberes populares, em realidades que não co- nheciam, tendo que desenvolver estratégias de investigação em grupo. Isso também proporcionou a negociação entre os colegas e a divisão de tarefas, como segue:

A21: Foi assim a esquematização do trabalho. Todo mundo competente [risos], todo mundo di- verge. Saiu um esqueleto: a escola evolucionista, a escola estruturalista, direitos humanos, direito de propriedade. Quê que a gente fez? A gente divi- diu certinho para cada um, cada bloco, e o cama- rada tinha que se virar. “O autor é mais ou menos este aqui, te vira. Depois tu traz, que a gente se reúne e vamos ler e concordar.”

A18: E daqui a pouco alguém precisava de algu- ma coisa e outro tinha visto uma revista antiga, um livro, exatamente o que o outro precisou. A20: O nosso problema é que cada um pensa- va uma coisa... já trancava: “Não, não é assim”. Daqui a pouco outro concordava, outro discor- dava, uma guerra quase.

A21: É, mas o grupo ficou muito forte mesmo, o pessoal ficou muito amigo.

A19: Por mais que a gente discutisse certas ques- tões, a gente usou isso positivamente pra fortale- cer o grupo e terminar a parte do projeto.

Com o passar do tempo, os alunos se embrenharam na tarefa de desconstrução e reconstrução de outras verdades, que não unicamente aquelas aprendidas nos manuais de direito:

A19: Essa pesquisa também mostrou pra gente que nem tudo é só o que a gente estuda. Ali é teoria, mas a gente viu na prática como é que é. Não que nem tá no livro, que tá na lei. A gente viu

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que o que a lei diz não acontece lá [...] Com cer- teza, mudei bastante. Antes, quando a gente fez o vestibular, imaginava que o direito é o que tava escrito, mesmo que esteja distante da sociedade, é aquilo ali. Agora, com certeza, eu notei que a gente pode mudar um pouco a trajetória. Não é só aquilo que está escrito. Antes eu pensava: “nin- guém vai mudar nada”.

A21: Melhora a argumentação tu vendo a realida- de das pessoas [...] tu não podes te basear só pelo escrito. Tu te obrigas a achar a ciência social para encontrar uma saída para a situação.

A intenção dos professores envolvidos foi, entre outras finalidades, a de possibilitar o (re)conhecimento, por parte dos alunos, das relações que perpassam a produção das normas ju- rídicas e a própria “verdade” constituída pelo sistema de direito. A seguir, a fala de um dos professores sobre o fundamento em instigar os alunos à pesquisa empírica:

P2: Eu acho que é impossível pensar direito des- vinculado: economia, história e isso depois da base do materialismo histórico. Claro que não é aquela leitura simplista dum instrumento, dum aparato superestrutural, mas a necessidade de compreender o fenômeno jurídico como um fe- nômeno social, relacionado com toda essa com- plexidade da vida cotidiana. Especialmente num mundo globalizado [...].

O mesmo professor segue, exemplificando a relação des- se pensamento com a prática de campo:

P2: Quando nós fomos entrevistar, eu participei da pesquisa de campo do pessoal dos sindicatos, e nós fomos [em uma grande rede de supermer- cados com filial na cidade]. Quando nós falamos

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o que era e começamos a falar no sindicato, o funcionário do gerente de plantão - porque to- dos são gerentes hoje em dia, o sujeito parecia o Conde Drácula quando enxerga alho e crucifixo. E nós tivemos que ir para a garagem do prédio pra entrevistá-los e eu aproveitei aquela oportu- nidade já para conversar: olha tão vendo o que é o mundo da empregabilidade, o mundo das opor- tunidades, né? Na verdade tem um tolhimento de toda e qualquer possibilidade, pra ganhar um sa- lário miserável, pra fazer um trabalho maçante, diariamente... e todos os entrevistados, todos não, mas a grande maioria, com medo do resultado da pesquisa, que fossem expor nomes ou coisa assim, com medo de perder o emprego. Isso foi impactante pra eles [os estudantes].

A importância desse tipo de pesquisa para os alunos no início do Curso é ressaltada, por sua vez, pela professora entre- vistada:

P1: Eu acho que ela é muito necessária, exatamente pra isso, pra quebrar o formalismo. Os alunos do Direito, mes- mo às vezes nos primeiros anos, eles são mais críticos e a formalidade do curso os deixa muito técnicos no final do curso; então eu acho que a pesquisa é uma coisa que pode contribuir bastante pra que isso não aconteça.

Percebe-se, por meio desses pequenos relatos, que há uma grande possibilidade de, ainda que no interior de uma mes- ma ordem discursiva, realizar resistências cotidianas às relações de poder/saber estabelecidas pelo meio acadêmico-jurídico. A decolonialidade, como bem observa Mignolo (2008b) não é o rompimento com a modernidade – na qual estamos todos imer- sos – mas uma procura cotidiana e incessante para “começar a jogar um outro jogo”, influenciando na elaboração de suas re- gras.

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CONCLUSÃO

As relações de colonialidade de poder e de saber, her- dadas do passado colonial, perpassam inclusive pela pedagogia jurídica. Conforme salientamos, a abstração, o apego à letra da lei e o desejo de neutralidade empobrecem o ensino do direito, tolhendo a reflexividade dos alunos. A preeminência da técni- ca – sob o alegado domínio do professor - em detrimento da participação discente faz com que os currículos formem meros aplicadores do direito escrito, em uma sociedade construída por pluralidades de culturas e expressões.

A pesquisa de campo, entendemos, proporciona aos alu- nos o desenvolvimento de conhecimentos empíricos acerca do contexto em vivem e no qual irão atuar como profissionais. Nas falas dos entrevistados, pode-se observar a modificação das per- cepções sobre o papel sistema jurídico e a do próprio ensino do direito. Nesse sentido, cria espaços de resistência e de alteridade, possibilitando a desconstrução de “verdades” e a produção de saberes decoloniais.

REFERÊNCIAS

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HENNING, Ana Clara Correa. Conexões entre cultura popu- lar e cultura acadêmica: recontextualização curricular na prá-

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tica de pesquisa jurídica do Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlântico Sul em Pelotas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. 2008. Disponível em:

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MIGNOLO, Walter D. La opción descolonial. Letral, n. 01, p. 04-22, 2008b.

SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Um Discurso sobre as Ciências. 12 ed. Porto: Afrontamento, 2001.

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LEGITIMANDO DESIGUALDADES: A