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1 SISTEMA DE ENSINO E DESIGUALDADES

EXPRESSÃO DE SEU CARÁTER COLONIAL

1 SISTEMA DE ENSINO E DESIGUALDADES

Até meados do século XX, a problemática que envolvia as desigualdades escolares era encarada pela sociologia da edu- cação a partir de uma ótica funcionalista, embasada em noções características do senso-comum que atribuíam à escolarização formal o emancipador papel de instrumento de transformação social e de promoção de mobilidades sociais através da democra- tização do ensino. Assim, a escolarização era vista como essencial ao processo de superação do atraso econômico e dos privilé- gios sociais, porquanto era entendida como uma oportunidade de crescimento concedida igualmente a todos que a ela tivessem acesso (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 16).

Outrossim, acreditava-se que a escola e, também, a Universidade, funcionavam como instrumentos de promoção de justiça social e de meritocracia, dado que, a partir do momento em que o indivíduo nelas ingressava, passava a competir com os demais alunos em condições iguais, porque todos receberiam tratamento igualitário dentro dessas instituições, sem autoritaris- mos ou favorecimentos aos já beneficiados do ponto de vista econômico.

O ensino escolar e universitário, nesse sentido, difundiria um conhecimento objetivo, centrado na razão e na ciência, e, sendo oferecido por instituições públicas e gratuitas, estaria dis- ponível a todos que nele se interessassem, superando, com isso, os privilégios adscritos. Os alunos, ao se depararem com tal neu- tralidade institucional, competiriam entre si em iguais posições e as diferenças entre os seus desempenhos somente existiriam em razão de suas maiores ou menores habilidades individuais. A consequência dessas diferenças de talentos seria o sucesso esco- lar dos mais habilidosos, que, por uma questão de justiça, pos- teriormente tenderiam a alcançar as posições consideradas mais prestigiosas na hierarquia social (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 16).

Nessa perspectiva, a escola e a Universidade, enquanto instituições equânimes, avaliariam os seus alunos a partir de crité-

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rios puramente racionais, superando, com fulcro na meritocracia, as relações verticalizadas imperantes ao tempo das sociedades estamentais.

A partir da década de 1960, por sua vez, as conotações positivas da escolarização são postas em dúvida e a propalada concepção meritocrática da instituição de ensino entra em crise, o que inaugura uma postura pessimista no lugar da interpretação antes adotada. A divulgação dos resultados de uma série de pes- quisas quantitativas relacionadas ao âmbito educacional foi de- terminante para essa ressignificação, uma vez que demonstraram, em síntese, que os desempenhos escolares eram profundamen- te determinados pela origem social dos alunos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 16-17).

Ademais, a expansão do sistema educacional público e gratuito trouxe consigo uma geração de estudantes frustrados com os seus destinos escolares, dado que, com a massificação do ensino, a obtenção dos títulos acadêmicos deixou de receber a valorização de outrora, não concedendo aos seus portadores o retorno social e econômico aguardado. É quebrada a promessa de ascensão social através do ensino e, vendo as suas expectativas malogradas, os portadores dos desvalorizados diplomas escola- res passam a gradualmente contestar o sistema educacional e a sua aparente neutralidade (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 17).

Embora a perspectiva funcionalista não tenha sido imediatamente rejeitada, os fatores referidos tiveram o con- dão de minar, aos poucos, as otimistas expectativas deposita- das no sistema de ensino, bem como fizeram emergir a des- confiança no que se refere à alegada meritocracia resultante da igualdade de oportunidades dos alunos frente à escola. Diante dessa conjuntura de contestação social, Pierre Bourdieu apre- senta um novo paradigma científico no campo sociológico da educação, propondo uma reinterpretação das funções e obje- tivos do sistema de ensino radicalmente oposta à perspectiva até então adotada.

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Partindo da premissa de que a desigualdade social deve perpassar todas as análises relativas à educação, Bourdieu vai contra a visão funcionalista que encara a escola como um instru- mento criado para democratizar o acesso ao ensino. Criticando arduamente o imaginário liberal que vê na meritocracia a variá- vel determinante para o bom ou mau desempenho acadêmico, o autor rejeita a ideia de que os indivíduos competem em condi- ções iguais dentro da escola e somente aqueles que se destacam em razão de seus talentos individuais são levados a avançar nas suas carreiras escolares, alcançando, invariavelmente, patama- res sociais mais elevados. Segundo essa perspectiva, a escola e a Universidade seriam instituições neutras que propagariam um conhecimento universal e objetivo e promoveriam mobilidades sociais em função do mérito daquele que ascende (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 16-17).

Bourdieu contraria essa concepção otimista e a divulgação de sua teoria revela que, por trás da ilusória aparência de justiça social, igualdade e meritocracia, o sistema de ensino escondia re- produção e legitimação das desigualdades sociais (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 13). A educação, anteriormente tida como instância democratizadora das relações sociais e libertadora dos privilégios estamentais, converte-se, a partir das teses propostas por Bourdieu, numa instituição a serviço da lógica do capital, responsável por manter na subalternidade os deserdados da so- ciedade em razão de sua origem. Em outras palavras, a escola e a Universidade passam de instituições justas e bem-feitoras a promotoras de controle social e de violências simbólicas. Assim, ao invés de abrir caminhos aos membros das classes pobres e médias, a escolarização reforça as hierarquizações, selecionando os mais abastados para as posições mais conceituadas social e economicamente.

Defronte a esse contexto, a fim de aclarar a compreensão das exposições realizadas, Bourdieu fundamenta as suas asserti- vas com base em dois conceitos essenciais de sua teoria, quais sejam, as noções de capital cultural e de arbitrário cultural.

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1.1 Capital Cultural

Considerando os alunos como atores socialmente cons- tituídos e não como indivíduos isolados que competem igualita- riamente na instituição de ensino, Bourdieu parte da premissa de que cada um deles traz consigo bagagens sociais e culturais dife- renciadas. Por esse motivo, a obtenção de diferentes níveis de su- cesso entre os alunos e as diferenças entre os seus desempenhos ao longo de seus percursos escolares não podem ser explicados a partir de critérios biopsicológicos, porque é a origem social des- sas pessoas que as torna mais ou menos aptas ao bom desempe- nho escolar (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 18-19).

Nessa senda, contrapondo-se ao subjetivismo, Bourdieu nega que os sujeitos sejam dotados de excessiva autonomia na condução de suas atitudes. De igual maneira, não teriam a cons- ciência necessária das implicações resultantes de suas condutas, já que são as condições objetivas que explicam o curso da expe- riência prática subjetiva (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 22).

O autor, entretanto, também se afasta das teorias obje- tivistas, afirmando que, apesar de o comportamento individual ser socialmente determinado em seus menores detalhes, a ação das estruturas sociais sobre as condutas humanas parte do in- terior do sujeito, originando-se com a introdução do indivíduo no ambiente familiar, ainda em tenra idade. Sua posição dentro da hierarquia social é assentada desde o seu o nascimento e a sua formação inicial se dá com a incorporação de um conjunto de disposições que passam a reger suas condutas ao longo dos anos. Por outras palavras, ainda que as normas sociais tenham o potencial de condicionar as ações individuais, a sua estrutura é, em sua gênese, moldada pelo próprio sujeito e não externa a ele (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 24-25).

Ao negar o caráter autônomo da sujeito, Bourdieu afirma que o indivíduo é caracterizado não por uma identidade abstrata e reflexiva, mas por uma bagagem cultural auferida socialmente. Composta por elementos internos e externos ao sujeito, essa ba-

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gagem influencia diretamente o seu percurso escolar, podendo ser posta a serviço de seu sucesso ou de seu fracasso. Dentro dessa bagagem podem ser incluídos componentes objetivos, cor- respondentes às três formas de capital elencadas por Bourdieu. O capital econômico, em primeiro lugar, é aquele que pode ser tomado propriamente em termos monetários, sendo caracteriza- do pelos bens e serviços acessíveis através do dinheiro. O capital social, por sua vez, pode ser apreendido nas relações sociais, nas relações do sujeito com a sua família e com a comunidade em ge- ral, sendo definido como maior ou menor a depender do nível de influência que os relacionamentos mantidos pela família do sujei- to têm na sociedade. Por fim, o capital cultural institucionalizado diz respeito, basicamente, aos diplomas escolares auferidos pelo indivíduo (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 20-21).

No que se refere aos elementos subjetivos de sua baga- gem social, pode-se elencar o que Bourdieu intitula de capital cultural incorporado, que ocorre quando o conjunto desses ele- mentos passa a fazer parte da própria subjetividade do indivíduo. Assim, o maior ou menor contato que o sujeito tem com a cha- mada cultura geral, com a arte, com a música, o domínio maior ou menor de seu idioma vernáculo e de línguas estrangeiras é o que determina a maior ou menor quantidade de capital cultural em sua forma incorporada (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 21).

Nesse diapasão, cabe observar que esta última espécie de capital constitui o elemento mais impactante da bagagem cultural do indivíduo no que diz respeito aos rumos que serão tomados pelo seu destino escolar. Isto é, os fatores puramente econômi- cos, ainda que fundamentais, não recebem, na teoria bourdieunia- na, o mesmo peso que os fatores puramente culturais. Ao afirmar que estes representam a principal explicação para as desigualda- des escolares, o autor pressupõe que a posse de capital cultural propicia um melhor aprendizado na medida em que funciona como um elo entre os conhecimentos familiares e sociais daquele indivíduo e os conhecimentos por ele recebidos no meio escolar.

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Isso não significa, contudo, que aqueles dotados de maior capi- tal econômico não se encontram em posição favorecida, dado que o capital econômico funciona como principal meio de aces- so e acumulação das demais espécies de capital (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 21).

1.2 Arbitrário Cultural

Não sendo instrumentos neutros, a escola e a Universidade escalonam e classificam os alunos com base em sua origem so- cial, elegendo, arbitrariamente, a cultura e os valores dominantes como superiores e exacerbando diferenças pessoais a ponto de convertê-las em autênticas desigualdades (DEMO, 1999, p. 10). Numa sociedade capitalista, a cultura dominante está rigorosa- mente presa às suas elites, impondo o seu discurso no meio aca- dêmico. Ainda que de forma dissimulada, esse discurso é trans- mitido através dos currículos escolares e fatalmente se transporta para uma prática que realimenta as desigualdades a todo instante (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 29).

Observa-se, ainda, que mais do que reproduzir em seu interior toda a estrutura classista do sistema dominante, a esco- la cumpre o papel fundamental de legitimar as desigualdades e dominações ao escondê-las por trás do manto da meritocracia, corroborando o imaginário liberal que vê nas diferenças acadê- micas questões cognitivas e biológicas, relacionadas aos dons e talentos individuais dos alunos, e não efetivas desigualdades de oportunidades.

Para formular o seu raciocínio, Bourdieu trabalha com a noção de arbitrário cultural, aproximando-se de uma visão an- tropológica do conceito de cultura. Ao refutar a ideia de uma forma ideal de cultura, o autor entende que, em meio à imensa variedade cultural existente, não é possível definir um comple- xo cultural como superior ou inferior ao outro, uma vez que as culturas humanas não podem ser hierarquizadas, muito embora frequentemente o sejam.

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Os códigos culturais, enquanto conjugados de normas, símbolos e significados partilhados por um conjunto de indiví- duos, podem se manifestar de diferentes maneiras em cada co- munidade e essas diferenças não podem ser enquadradas em re- lações verticalizadas, porque representam apenas modos diversos de socialização e convivência (LARAIA, 2001, p. 62).

Não havendo uma cultura que possa ser definida como superior a nenhuma outra, os valores que orientam os compor- tamentos e condutas de cada grupo de indivíduos seriam arbi- trários por definição, isto é, não estariam pautados em razões universais e inquestionáveis, não podendo, portanto, ser apreen- didos como melhores ou piores do que quaisquer outros. No entanto, a cultura transmitida pela instituição escolar, apesar de igualmente arbitrária, é socialmente reconhecida como racional e legítima, o que não só deprecia os valores que não se coadunam com a cultura escolar, como também a eleva a um falso patamar de superioridade e universalidade (BOURDIEU, 2012, p. 26-29).

O ponto nevrálgico da interpretação de Bourdieu está no fato de que a conversão de um arbitrário cultural em cultura legítima só pode ser explicada a partir de um diálogo entre as relações de poder e de dominação entre as classes sociais e as relações entre os vários arbitrários em disputa numa dada socie- dade. Em uma sociedade classista, a capacidade de legitimação de um arbitrário cultural corresponde à força atribuída à classe social que o sustenta. Isso significa, por sua vez, que os valores arbitrários capazes de se impor como legítimos são, justamente, os valores que orientam a classe social dominante. Em última instância, o arbitrário cultural escolar, socialmente aceito como racional, objetivo e legítimo, corresponde, basicamente, à cultura das classes dominantes, imposta aos demais através dos conhe- cimentos transmitidos pela escola ou pela Universidade sob os auspícios de uma falsa aparência de neutralidade (BOURDIEU, 2012, p. 44-45).

Para que a reprodução dos favorecimentos seja perpe- tuada pela ação pedagógica da escola, basta que ela atribua tra-

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tamento equiparado àqueles que são substancialmente desiguais, porquanto não é suficiente, para se alcançar a plena igualdade, que muitas pessoas sejam isonomicamente atingidas por uma re- gra de distribuição se as diferenças reais entre elas forem ignora- das. O simples fato de a escola tratar a todos da mesma maneira faz com que os indivíduos social e culturalmente privilegiados assumam, desde o princípio, posições vantajosas no contexto da competição escolar, sem levar em conta a necessidade de um ni- velamento que possibilite que todos saiam de um ponto comum de partida (BOUDIEU, 2007, p. 53).

Os alunos que já dominam, desde sua formação familiar inicial, os códigos necessários para decifrar a comunicação pe- dagógica transmitida pela escola, que já conhecem previamente o conjunto de habilidades e referências culturais e linguísticas por ela transmitido, serão, evidentemente, beneficiados na assi- milação dos conteúdos ensinados. No outro extremo, os alunos cuja cultura familiar se distancia do legitimado arbitrário cultu- ral pertencente à instituição escolar o veem como uma cultura estrangeira, estranha, desconhecida, não detendo os necessários instrumentos para a decodificação da mensagem que lhes é re- passada (BOURDIEU, 2012, p. 51).

Segundo esse prisma, a escola desempenha o papel de embuste responsável por dissimular a equiparação entre sua cul- tura e a cultura dominante, ocultando, com isso, os óbvios fa- vorecimentos que são consequência dessa aproximação ao fan- tasiá-los de diferenças de capacidade cognitiva entre os alunos. Assim, a reprodução das desigualdades resta garantida pelo apa- drinhamento dos já favorecidos e pela marginalização daqueles que já são comumente excluídos nas relações sociais. A negação dos privilégios oferecidos pela escola àqueles que são cotidiana- mente beneficiados pelo simples fato de pertencerem às classes dominantes é o que, por sua vez, acaba por legitimar essas desi- gualdades (BOURDIEU, 2007, p. 53).

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2 O ENSINO JURÍDICO COMO REPRODUTOR DE