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PRELÚDIO: A ARTE – A LINGUAGEM ENTRE E POR DETRÁS DA LINGUAGEM

A CORAGEM DE PENSAR, CRIAR E CUIDAR (DA VIDA E DE SUAS RELAÇÕES)

INTRODUÇÃO: VAMOS COMEÇAR A COMPOSIÇÃO DE UM MOSAICO

1. PRELÚDIO: A ARTE – A LINGUAGEM ENTRE E POR DETRÁS DA LINGUAGEM

Convém um esclarecimento inicial, na medida em que este breve ensaio elegeu a expressão “linguagem” para indicar o produto da arte e suas especificidades. Necessário dizer que a mesma foi indicada em alusão ao direito que faz da “palavra” ferramenta de capital importância ao seu exercício, sendo que a mesma segue vinculada e quer neste expressar quaisquer dos elementos do conjunto artístico, qual seja, “essas questões tra- balham diretamente o ‘quadro’: a obra e seu limite, a exposição, a recepção, a reprodução, a difusão, a interpretação e as diversas formas de separação que reconvocam”. (LÉVY, 2015, p. 104)

Não há nessa escolha, descuido, imparcialidade ou des- prezo a outras expressões que poderiam melhor representar a obra artística. Ao contrário, intenta-se atualizá-la ao pensamento complexo, próprio da contemporaneidade. Aliás, tal segue dis- posto com o surgimento das novas tecnologias, mas que não se reduz à ciência, nem à filosofia, nem tão pouco aos seus paradig- mas e/ou teorias, sendo pressuposto considerá-la não como mo- delo, mas “como desafio e como uma motivação para pensar”, consoante indica Morin (2010, p.176).

Desse modo, saímos de uma compreensão de que a arte, no Ocidente, consoante nos aponta Pierre Lévy (2015, p. 104- 105), figurava assim:

Uma pessoa (o artista) assina um objeto ou mensagem particular (a obra), que outras pessoas (os destinatários, o público, os críticos) percebem, experimentam, leem, inter- pretam, avaliam. Quaisquer que sejam a função da obra (re- ligiosa, decorativa, subversiva...) e sua capacidade de trans- cender toda função em direção ao núcleo de enigma e de emoção que habita em nós, ela se inscreve em um esquema de comunicação clássica.

Pela atuação da inteligência complexa, um novo pensa- mento desenha-se na atualidade. Morin (2000, p. 132), revela que

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O complexo surge como impossibilidade de simplificar lá onde a desordem e a incerteza perturbam a vontade do co- nhecimento, lá onde a unidade complexa se desintegra se a reduzirmos a seus elementos, lá onde se perdem distinção e clareza nas causalidades e nas identidades, lá onde as an- tinomias fazem divagar o curso do raciocínio, lá onde o sujeito observador surpreende seu próprio rosto no objeto de sua observação.

Imperioso destacarmos que a complexidade não é sim- ples tarefa da arte, nem ela mesma se traduz pelo condão da sua própria complexidade, ainda que tal se dê, porém, a caracterís- tica principal do fenômeno da complexidade está em saber que ele aparece “tecido simultaneamente” (MORIN, 2000, p. 133) e, portanto, mais do que estar só, se apresenta segundo princípios, fenômenos, interações, relações, sistemas, configurações, todas reconhecidamente complexas. Não é que a complexidade se re- cusa a estar só, é que a mesma “recusa deixar-se definir imediata e certamente de maneira simples”. (MORIN, 2000, p. 133)

Tanto na esfera da arte, quanto do direito, e por respeito à distribuição do deste estudo, agrega-se uma correção do enten- dimento: a existência de um farol que há de auxiliar o exame da temática. Trata-se da inteligência da complexidade. Um nível de inteligência que somente é possível percebê-la tecida em unidade com pontos de referência que sustentam a história humana – tanto as culturas, a sociedade, como a lógica, a física, a vida, o ambiente, o ser humano... em uma escala de infindas possibilida- des. Por assim dizer, novas ciências são configuradas, nascentes e portadoras do gérmen dessa complexidade, as quais certamente estão a propor uma nova ética, que na esfera do presente, tem-se uma ética nascente da junção do direito “lido” pelo espectro da arte.

Essa rede - que se situa no mesmo mosaico, tão parti- cular à expressão criadora da arte - tem muito a contribuir para o enfrentamento dos conflitos que o direito em seu cotidiano e missão de dizer, interpretar e aplicar o próprio direito, requer o exercício de se auto completar-se. É como se resgatássemos

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um dom adormecido, que embora presente, sempre nos pare- ceu ausente, o qual, senão pela possibilidade da inteligência dita complexa, possuidora de muitos espectros, por mais que nata no humano, e estando até então adormecida, e pelo tratamento da arte, desperta. Contudo, é como se a descobríssemos, no caso do direito, no momento histórico ocorrente e, no caso da arte, pelo ato criador, no escuro de nossa alma.

A “descoberta” de tal processo que pode durar um longo tempo - quer durante gerações distribuídas historicamente, quer no micro espaço de uma vida humana - sem que nenhum pro- cesso ou nenhuma pessoa possa dar-se ao trabalho de buscar no ser, no caso da arte, ou de dar-se conta no caso do direito, sequer pode servir de pressuposto para o seu não reconhecimento e a sua não adoção. O importante é que a descoberta sempre estará conosco enquanto ferramenta de aplicação da justiça, tal qual um relógio que nos desperta, ou um porto seguro onde vamos nos refazer, um oásis, no qual sabemos ter a melhor água para nos saciar, um amigo com quem podemos verdadeiramente contar, numa linguagem poética: que nos ama mesmo sabendo os nos- sos erros e fragilidades. Todos são redes comunicacionais seguras que conferem motivações reais do viver e estar juntos.

Rollo May apresenta alguns aspectos que reputamos im- portante serem anotados pela proximidade com a situação apre- sentada nesta análise. Ora, o autor conclui que o mundo inter-re- laciona-se com a pessoa, enquanto que uma dialética profunda se dá entre o mundo e o indivíduo e de onde um não pode ser compreendido sem a presença do outro. Referida constatação dá conta de que não é possível situar a criatividade na qualidade de fenômeno subjetivo. Não se trata de estudar o íntimo de uma pessoa. De outro modo, o polo correspondente ao mundo, é exa- tamente a parte inseparável da criatividade (MAY, 1975, p. 149)

Portanto, tem-se pela frente uma ética da compreensão tecida pela inteligência da complexidade. Dessa proposta, tem-se a “ciência com consciência”3 extraída da problemática da com-

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plexidade que não mais há de se fazer marginal ainda que assim denuncie Morin “no pensamento científico, no pensamento epis- temológico e no pensamento filosófico” (MORIN, 2010, p. 175)

Com isso, passamos a perceber a arte e sua linguagem através de uma nova “escritura” de elementos que o admirador procura decodificar ou decifrar e cuja assinatura se dá pelo viés da comunicação. A arte “fala”, comunica, confere representação, anuncia e é o “papel fundamental da imagem” de que nos alerta Arintero (2003, p. 111). A sua construção, se tomada por uma estrutura-guia-cuidadora dos seres humanos, pode conduzir o direito ao trajeto que lhe impôs originalmente – de acesso a or- dem jurídica justa em prol da humanidade de todas as épocas, de amparar este “novo” ser, integral, concreto e real.

A abstração, que muitas vezes a arte nos permite, tem o condão de nos dirigir – de uma escritura simbólica que, pacien- temente, o contemplador procura decifrar - e a partir de tal com- preensão, o símbolo do qual a arte é titular, se abre para permitir ao “que une ou reúne os elementos que, em uma primeira leitura, parecem estar distintos e separados: o visível e o invisível; o tem- po e o eterno; o criado e o incriado; a forma e o sem forma; o homem e Deus, etc.” (LELOUP, 2006, p. 21).

Cada vez mais, tanto quanto o direito, a arte vem de- pendendo de um público cuja vocação detém modalidade para a “imaginação criadora – e não somente do pensamento criador”, consoante nos apresenta Leloup (2006, p. 19), indispensável a um pensamento agregador, dito complexo, restando dependente da inteligência e da prática humana, qual seja, o particular estado da condição humana, segue uma manifestação do próprio estado do “homem”, o que não é diverso do estágio da arte. Concretamente isso implica o seguinte: o “estado de manifestação atual do direi- to”, que pôs sua condição de justiça à deriva, quando o contrário era esperado, não nos parece ser a condição da arte, que fez da sua irrepetição, um padrão de unidade e especialidade, enquanto o direito caminhou em sentido oposto, de fazer do acesso ao jus- to um caminho para todos. Paradoxalmente, enquanto o direito,

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viva memória do passado, tornou o injusto um lugar comum, a arte fez da sua memória presente um estágio para esperançar o futuro.

Por isso mesmo, é esperado que a arte possa agregar ao direito, aquilo de que a ciência jurídica não foi capaz de assimilar em seu processo histórico. Há, pois, um significado profundo nessa proposta e convém o destaque para que do mesmo não venhamos duvidar: o raciocínio jurídico pode ter na arte um paradigma por onde se vai espreitar as muitas possibilidades de compreensão do fazer justiça. Isso propõe também um retorno ao fundamento permanente da história humana: de ser susten- táculo uns aos outros, tanto no momento presente, quanto na caminhada, no porvir que se apresenta. É necessário, porém, in- centivar a maneira justa de posicionar a vida à luz da arte, qual seja, de lhe medir com a “regra da medida” de não ser indiferente aos homens de todas e quaisquer épocas, ao contrário, revela-lhe, o sentido maior da vida, e restitui dignidade às suas relações, em detrimento de um mundo cuja adoração tecnicista tem premiado o mais absoluto vazio4, o que requer seja repensado.

Essa qualidade de “reparo” que a arte permite agregar ao direito é, sem dúvida, a prova de que o direito precisa avançar na esfera da inteligência complexa. Para tanto, a arte é uma proposta significativa para contornar os desafios que os fatos se nos apre- sentam e, em tal mister, tendente ao pensamento multidimensio- nal, um esforço no sentido de conceber uma motivação para pen- sar o desafio de agregar ao direito a possibilidade de uma nova cultura científica nascente da influência da arte.

3. INTERLÚDIO: O DIREITO E A “ESCOLA DO