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POR UMA PROPOSTA DE AÇÃO POLÍTICA

DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO CINEMA DE FICÇÃO

4. POR UMA PROPOSTA DE AÇÃO POLÍTICA

A Alteridade como ética fundamentada no Outro é necessária à recuperação de um caminho de revalorização dos Direitos Humanos, pois

[...] a ética que se funda no ser, mesmo na civilidade, pro- longa esse jogo, perpetua, de formas variadas, o império do egoísmo, às custas do outro’. [...] Transcender o sujeito é encontrar o Outro, além da percepção subjetiva do ser egotizado, Para a ética da alteridade, não há a oposição civi- lizado-bárbaro, pois a subjetividade ontológica deu lugar ao encontro do ‘Nós’. (BRITTO, 2013, p. 360)

Uma ética da alteridade voltada para o cuidado e o respei- to, externada como indicador no comportamento de humanos que auxiliam os personagens não-humanos nos filmes trabalha- dos, deve e pode ser haurida e consubstanciada pela percepção do Outro anterior ao sujeito solitário da ontologia moderna ego- tizada. Abrir o pensar para esse Outro, sem história e sem rosto, fora de qualquer comunidade comunicativa, sem razão e sentido (BRITTO, 2013, p. 361), oferece palco fundante para revigorar a compreensão que pode ser revertida em favor dos Direitos Humanos. Para tanto, necessária é a

Ruptura com a ética da Modernidade, fundamentada no sujeito [...] reação ética contra o formalismo kantiano [...] tentativa de salvar o concreto em face do formal, [...] a ex- terioridade do oprimido, da vítima, do mestiço e do aban- donado. (BRITTO, 2013, p. 361)

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O mesmo Britto lembra Dussel, em um trecho que mere- ce a atenção por encaixar adequadamente à dinâmica dos roteiros dos filmes descritos e a uma práxis que considere sua discussão

jurídica e pedagógica:

[...] pois bem, o ‘encontro’ com a vítima como outro, como sujeito ético no re-conhecimento originário, é o a priori de toda ética, aquilo que Levinas chama de ‘proximité’, ‘face- -a-face’”. [...] É necessário fundar uma nova teoria [meta- física, antropologia ou ética da alteridade] e uma nova ação (política da alteridade: justiça) É uma descolonização da concepção ética moderna. (BRITTO, 2013, p. 362)

Nessa violência epistêmica de encobrimento e subalter- nização do Outro, a precariedade da Subjetividade destes entes ou seres é a pedra de toque, que, preconizamos, deve ser extraída e lapidada metodologicamente para propiciar uma compreensão das dimensões de Direitos Humanos circundantes à nossa realidade.

A voz que ressoa ao fundo, nas tramas cinematográficas aborda- das, deve ser amplificada, auscultada com mais vagar, pois per- meia a nossa própria sociedade coetânea. Aqui for a e dentro da tela,

os subalternos são a mesma voz:

In the face of the possibility that the intellectual is com- plicit in the persistent constitution of Other as the Self ’s shadow, a possibility of political practice for the intellec- tual would be to put the economic ‘under erasure,’ to see the economic factor as irreducible as it reinscribes the so- cial text, even as it is erased, however imperfectly, when it claims to be the final determinant or the transcendental

signified.17 (SPIVAK, 1988, p. 24)

17 “Face à possibilidade de que o intellectual é complacente na constituição persis- tente do Outro como a sombra do Eu, uma possibilidade de prática política para o intelectual poderia ser colocar o econômico “sous rature” [conceito de Heidegger]

para ver o fator econômico como irredutível enquanto ele reinscreve o texto social, mesmo se for apagado, de qualquer modo imperfeitamente, quando advo- ga ser o determinante final ou o significado transcendental.”, em tradução livre (Lizandro Mello).

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No espaço da academia, o uso de obras cinematográficas que não guardam, em seu roteiro, relação direta e imediata com a temática dos Direitos Humanos, pode ser uma ferramenta po- tente de desconstrução de paradigmas arraigados até mesmo nos educadores e pensadores mais progressistas. Bohnsack refere que a imagem é, também, possuidora da qualidade de dirigir a ação:

[...] no nível da compreensão e da aprendizagem, da socia- lização e da formação (para além das instâncias de comu- nicação de massa), a imagem desempenha um papel funda- mental na orientação de nossas ações práticas.[...] as cenas ou situações sociais são apreendidas sobretudo como ima-

gens anteriores (innereBilder). Estas são apropriadas mimeti-

camente e recordadas por meio de imagens.(BOHNSACK, 2007, p.289)

Não se esqueça a advertência de, novamente, Dussel, re- portando o academicismo do encobrimento do outro:

[...] a linguagem filosófica moderna e tradicional na filosofia acadêmica termina por ser uma ideologia que oculta a reali- dade.” Qual realidade? A da opressão e do colonialismo, do esquecimento e da indiferença à grande maioria da huma- nidade explorada, sofrida e abandonada. (apud BRITTO, 2013, p. 357)

A ação proposta parte também da análise documental, proposta por Mannheim e aperfeiçoada por Bohnsack, adotada neste trabalho sob critérios que se ajustam ao material pesqui- sado. Em primeiro lugar, adotamos a perspectiva de que estas imagens propõem uma visualização de verdades sociais mimeti- zadas (lembremos que são personagens e obras de ficção), empiri-

camente, compreendidas através das imagens. Como dito acima, a

subalternização, a construção do Outro, o sujeito-egotizado, são particularidades sociais presentes dentro e fora da ficção.

Em seguida, encaramos a compreensão ateórica, em seu matiz de conhecimento sobre o habitus transmitido principal-

mente através dos filmes. Cada personagem e roteiro reflete um lugar de comportamento, facilmente identificável: o serviçal sem

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rosto e sem identidade, o trabalhador migrante perdido, margina- lizado e deslocado à força, a criança materialmente abandonada. A partir daí, partimos para uma análise iconológica, buscando o sig-

nificado propriamente dito, um modus operandi da produção destas

imagens e buscando o iconológico como expressão do período sócio-histórico e habitus panofskiano dos produtores de imagens que reproduzem (BOHNSACK, 2007, p.290-292) uma matriz colonial.

Conjuntamente, buscamos utilizar dois níveis de senti- do mannheimianos. O segundo nível, ou expressivo, buscando o

conteúdo expressivo que o produtor das imagens tenta manifes- tar em sua obra. E o terceiro nível, ou documental, interpretando

o fenômeno cultural (jurídico e sociológico) em seguimento à identificação de uma postura frente à realidade sobre os quais esta postura repousa, passando este fenômeno inteiro a ser com- preendido como manifestação ou documento de uma determinada concepção de mundo –matriz colonial, de subalternidade e constitui-

ção do Outro.

Lançando mão da interpretação documental de Mannheim,

em seu terceiro nível, no qual se refere ao conteúdo expressivo que o realizador das imagens tenciona manifestar, também se interpreta o sentido cultural desvelando numa imagem os prin- cípios fundamentais de uma postura frente a realidade sobre os quais esta repousa, compreendendo tal fenômeno como mani- festação ou documento de uma determinada concepção de mun- do (MARTINEZ, 2006, p. 395). A partir disso, a comparação de exemplos da realidade humana com seus similares da cine- matografia será utilizada para enfatizar a falta de empatia que reflete um certo cinismo, próprio da matriz colonial de poder (MIGNOLO, 2010, p. 11 e ss) que abstrai o mundo jurídico do contexto sociocultural no qual se encontra e que o condiciona, substituindo o humano corporal, com necessidades e produtores de realidades, para seres sem atributos, fora da contingência e su- bordinados a suas próprias produções sócio-históricas (RUBIO, 2010, p. 23-6). O encobrimento do outro é semifictício na cine- matografia: mas totalmente tangível no mundo da experiência

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vivida. Transpondo um nível de meio cultural, essa subalternida- de “[...] não é somente veiculada enquanto um discurso cultural difuso, mas através de instituições que operam por meio desses padrões culturais dominantes.” (WOLKMER E CORREAS, 2013, p. 788). E o fato de que se possa alcançar, neste trabalho sucinto, a compreensão de um cotidiano real através de algumas imagens da ficção, insta a significar que este mundo, este real vivido, “[...] esta realidade social, não é apenas representada de forma imagética, mas também constituída ou produzida desta forma.” (BOHNSACK, 2007, p. 288-289).

REFERÊNCIAS

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BOHNSACK, Ralf. A interpretação de imagens e o método documen- tário. Sociologias – Revista do PPG em Sociologia da UFRGS, Porto Alegre, ano 9, nº 18, p. 286-311, jun/dez 2007, , 2007.

BRITTO, Antônio Guimarães. Filosofia do sujeito e o pensar da al- teridade na América Latina: o Outro e a barbárie na modernidade. In: WOLKMER, A. C; CORREAS, O (orgs.). Crítica jurídica na América Latina. Aguascalientes: CENEJUS, 2013.

COLUMBUS, Chris. Bicentennial Man (Filme – título em português: O homem bicentenário). Produção de Michael Barnathan, direção de Chris Columbus. EUA, Columbia Pictures, 1999, 132 minutos.

KHALED JR, Salah; DA ROSA, Alexandre Morais. Matemo-nos uns aos outros e a mensagem Natalina. 2014. Disponível em: <http:// justificando.com/2014/12/23/matemo-nos-uns-aos-outros-e-mensa- gem-natalina/>. Acesso em: 15 abr. 2015.

MARTINEZ, Amalia Barboza. Sobre el método de la interpretación documental y el uso de las imágenes em la sociología: Karl Mannheim, Aby Warburg y Pierre Bourdieu. Sociedade e Estado – Revista do Departamento de Sociologia da UNB, Brasília, v. 21, n 2, p. 391- 414, mai-ago, 2006, 2006.

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MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010.

RUBIO, David Sánchez. Confrontar la simplificación del mundo ju- rídico. Jornal Estado de Direito, Porto Alegre, ano 5, n. 28, p. 25, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevidéu: Ediciones Trilce, 2010.

SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que Reproduz em Educação: Ensaios de sociologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

SPIELBERG, Steven. A.I. – Artificial Intelligence (Filme – título em português: Inteligência Artificial). Produção de Bonnie Curtis, direção de Steven Spielberg. EUA, Warner Bros., 2001, 146 minutos.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (orgs). Marxism and the Interpretation of Culture. Londres: MacMillan, 1988.

WOLKMER, Antonio Carlos; CORREAS, Oscar (orgs). Crítica Jurídica na América Latina. Aguascalientes: CENEJUS, 2013.

Rita de Araujo Nev

es e Maria Cecilia Lorea Leite

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UMA IMAGEM REVOLUCIONÁRIA