• Nenhum resultado encontrado

4 OS GRANDES REFERENCIAIS NA ÁREA DO DIREITO E A CRISE DO ENSINO JURÍDICO

O ENSINO JURÍDICO COM OS “PÉS” E O “OLHAR” NA AMÉRICA LATINA

4 OS GRANDES REFERENCIAIS NA ÁREA DO DIREITO E A CRISE DO ENSINO JURÍDICO

Sem dúvidas, é gigantesca a contribuição europeia, seja pelo desenvolvimento milenar da ciência jurídica no referido continente, seja pela nossa tradição jurídica, haja vista que o nos- so Direito é oriundo e amplamente baseado na tradição romano- -germânica. De igual forma, os Estados Unidos deram (e conti- nuam dando) valorosa e importante contribuição para o Direito. Essa influência se dá desde o surgimento dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, ainda em 1827, logo após a indepen- dência do Brasil e ante a necessidade de preenchimento dos qua- dros burocráticos do incipiente Estado brasileiro. O resultado disso é que a educação jurídica sob a influência tecnicista que impera desde a criação dos cursos jurídicos no Brasil, infeliz- mente, tem-se mantido até a atualidade, sendo que a forma como era praticada ainda perdura na ampla maioria das Faculdades de Direito (SANCHES; SOARES, 2014, p. 118). Aliado a isso, te- mos, nas palavras de Thais Luzia Colaço (2006, p.22) um “ama- dorismo pedagógico” por parte dos docentes de Direito, o que agrava o problema do ensino jurídico.

Ocorre que este ensino jurídico, que mudou muito pouco desde a sua origem, está em profunda crise, sendo que são diver- sos os fenômenos que vem contribuindo para a referida crise,

Alexandre T or res P etr y

171

como aponta Horácio Wanderlei Rodrigues (2005, p. 34), que destaca que o país sofreu profundas mudanças nas últimas dé- cadas, as quais não foram acompanhadas pelo ensino jurídico. Sobre a complexidade do problema da crise do ensino jurídi- co, torna-se fundamental trazer as palavras do próprio Horácio Wanderlei Rodrigues:

A atual crise do ensino do Direito é bastante complexa; e múltiplas, as tentativas de explica-la, às vezes através de fórmulas ingênuas e simplistas. A não compreensão de seu aspecto multifacético, que atinge diversas instâncias e ní- veis, é um dos problemas centrais que reveste muitas das respostas que vêm sendo apresentadas. Outro problema, não menos grave, é a negação de seus elementos próprios, internos, vendo-a como mera consequência de uma crise político-econômica, bem como o seu oposto, ou seja, a vi- são da crise do ensino do Direito meramente como uma crise interna e desvinculada das questões políticas, econô- micas, sociais e culturais. A busca de um entendimento da atual situação do ensino do direito exige uma análise inte- gral, dialética, que permita compreender essa realidade.

Com refere Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (2011, p. 276) “a crise do ensino jurídico é tema de frequentes – e an- tigas – discussões no Brasil”, pois, sem dúvidas, como destaca o autor, há um excesso de bacharéis em direito, sendo que a ampla maioria dos diplomados sequer terá condições de exercer alguma profissão jurídica, De igual forma, temos uma proliferação de Faculdades de Direito, nem sempre comprometidas com o ensi- no de qualidade, o que também contribui para o desprestígio do ensino jurídico e mesmo das profissões jurídicas.

No final de 2011, o número de cursos jurídicos no Brasil autorizados pelo Ministério da Educação e Cultura já chegava ao impressionante número de 1.210, destacando-se que destes ape- nas 90, ou seja, cerca de 7% eram recomendados pela Ordem dos Advogados do Brasil (JARDIM, 2012, p. 264), o que demonstra nitidamente uma descontrolada proliferação de Faculdades de Direito num contexto de mercantilização do ensino.

172

O ensino jurídico com os “pés” e o “olhar” na América Latina

A crise do ensino jurídico traz muitos problemas para a sociedade como um todo, pois acaba por contribuir para a manutenção das desigualdades sociais, como bem refere Sérgio Rodrigo Martínez (2012, p. 43):

A constatação de deficiências no processo de ensino e aprendizagem dos cursos de direito serve como advertên- cia cidadã da necessidade de implantação, nestes, dos con- ceitos de responsabilidade social, sob pena da perpetuação jurídica das desigualdades e exclusões sociais observadas no cotidiano nacional.

Não se pode ficar indiferente à crise do ensino jurídico, pois isso é deixar de lutar pela necessária mudança. A formação de juristas despreparados e descomprometidos com a realidade social traz muitos prejuízos, pois compromete o próprio exercí- cio da justiça e, mesmo, da democracia. Ademais, esse jurista é “formado” numa ideologia pautada nos valores europeus e ame- ricanos, que até hoje formatam e condicionam os pensamentos dos doutrinadores brasileiros, num nítido processo de “coloniza- ção acadêmica”. E o pior é que isso se dá de forma massificada!

Portanto, repensar o ensino do Direito é a primeira etapa para a mudança do próprio Direito. Nessa linha de mudança no ensino do direito, cita-se Eduardo Bittar (2006, p. 11):

Sem dúvida alguma, se se tiver que pensar na modificação das práticas jurídicas, no aperfeiçoamento do ordenamen- to jurídico brasileiro, na modificação da cultura das insti-

tuições, ter-se-á que partir pela reforma do próprio modus

pelo qual o Direito é ensinado, e de inter-ação entre coisa e

prática, entre escola e profissão, entre reflexão acadêmica e implementação de reformas institucionais, pode-se até mesmo entrever, haverá de surgir a necessária e indispensá-

vel simbiose para a re-adequação do ensino jurídico brasileiro.

A mudança no ensino jurídico perpassa pela própria mu- dança cultural de ver, pensar e interpretar o Direito. Porém, a grande dificuldade é romper com essa tradição cultural que não atende aos interesses sociais. Isso porque o ensino jurídico deve

Alexandre T or res P etr y

173

estar voltado para a transformação social, conforme sustenta Antônio Alberto Machado (2009, p. 180) ao afirmar que a prá- tica jurídica atual exige uma mudança de mentalidade jurídica, mudança que pode começar “tanto da própria atuação prática dos juristas, pelo manejo de uma nova legalidade progressista e democrática, quando da substituição dos paradigmas tradicionais do ensino jurídico”.

Nesse contexto, superar a crise do ensino jurídico é uma meta de qualquer jurista comprometido, pois o atual modelo de ensino jurídico é insustentável, já que colabora para um quadro de desigualdades. A necessária mudança inicia, portanto, pela quebra de paradigmas, sendo uma dela é passar a aceitar e con- siderar a interculturalidade como forma de pensar e exercer o Direito.

De acordo com Magali Mendes de Menezes (2011, p. 325), a interculturalidade apresenta-se “como uma exigência ética de reconhecimento do outro onde o diálogo torna-se um exer- cício de justiça”. Essa lógica deve imperar no ensino jurídico, pois aceitar e reconhecer o outro é essencial para um diálogo construtivo. Reconhecer e praticar a interculturalidade traz como consequência a reflexão sobre o ensino jurídico (o qual está in- serido dentro do contexto universitário), uma vez que, conforme Fornet-Betancourt, atualmente a educação reflete a cultura hege- mônica a qual precisa ser repensada (2004, p. 60):

O ensino acadêmico que devemos examinar em uma pers- pectiva crítica, está regulado em grande parte, por planos de estudos cujos conteúdos nucleares não apenas refletem a “cultura científica” da sociedade hegemônica de ontem e de hoje, como que apontam a manutenção das condições epis- têmicas necessárias para a perpetuação do conhecimento ou, dizendo com maior propriedade, do ideal do conheci- mento que a sociedade hegemônica vende como universal.

Na era da “modernidade”, marcada pela exclusão, já que “na maioria das sociedades ocidentais, criou-se uma fron- teira, mais ou menos visível, opondo os integrados aos excluí-

174

O ensino jurídico com os “pés” e o “olhar” na América Latina

dos” (DUBET, 2007, p. 20) pensar num ensino intercultural e integrador é fundamental, sob pena de silenciarmos conheci- mentos válidos fundamentais para o progresso e harmonia da humanidade.

Nesse sentido, deve-se reforçar a ideia de ecologia de sa- beres, a qual é densamente trabalhada por Boaventura de Sousa Santos na obra denominada Gramática do Tempo (2010). A originalidade dessa concepção está muito mais em do que sim- plesmente reconhecer que existe diversidade epistemológica no mundo, a qual abarca várias formas diferentes de conhecimento, ou que seria inviável uma epistemologia geral, mas sim em buscar o reconhecimento destes sistemas plurais que precisam se tornar visíveis dentro de um processo de globalização excludente, os quais devem dialogar e contribuir um com o outro em recipro- cidade.

A teoria de ecologia dos saberes, segundo o próprio Boaventura de Sousa Santos, traz a seguinte concepção (2010, p. 154):

A ecologia de saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemónicas e pretendem contribuir para as cre- dibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que chamam sê-lo são as menos neutras; 2) a reflexão epistemológica deve inci- dir não nos conhecimentos em abstracto, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. Quando falo de ecologia de saberes, entendo-a como eco- logia de práticas de saberes.

Logo, a ecologia dos saberes significa uma luta contra monocultura do saber, contra as verdades hegemônicas que obs- curecem os demais saberes que passam a ser excluídos e conside- rados inválidos ou neutros. Esse clamor por uma maior abertura epistêmica é possibilitado pelas perspectivas interculturais que permitem a validação e reconhecimento de sistemas de saberes plurais.

Alexandre T or res P etr y

175

Edgar Morin (2002, p. 39) refere que “a educação deve promover a ‘inteligência’ geral apta a referir–se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção glo- bal”.

O ensino jurídico deve estar inserido nesse contexto em que todos os saberes devem ser escutados, devem ter espaços, devem dialogar e promover um ensino crítico, reflexivo, que per- mita a emancipação e a referida inteligência geral. Logo, nessa visão de mundo mais inclusiva, não existe qualquer razão para que o ensino jurídico na América Latina continue desintegrado e indiferente com o que ocorre dentro do seu próprio contexto. É chegada a hora de valorizar, reconhecer e incentivar o que aqui se pesquisa, estuda e se produz.