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Isabela Lefol Arruda 1 Magno Luiz Medeiros Da Silva 2

3. A democracia e os movimentos sociais

Dentro da teoria democrática, existem diversas linhas teóricas que buscam estabelecer critérios para conseguir consolidar de fato um regime chamado de democrático. Para Bobbio (1997, p. 17), para se alcançar uma definição mínima de democracia pode-se dizer que ela é caracterizada “por

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um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”.

Assim, as visões de democracia são múltiplas, podendo ser uma democra-cia direta, deliberativa, representativa, entre outras definições.

A visão deliberativa ganhou força especialmente com Habermas. A principal preocupação do autor é a operacionalização de um procedimento ideal de deliberação e tomada de decisão, que depende da institucionali-zação dos procedimentos e das condições de comunicação (FARIA, 2000).

Assim, surge a ideia de uma esfera pública, que apesar de já ter passado por diversas revisões, é possível afirmar que

A esfera pública é uma “estrutura intermediária”

que faz a mediação entre o Estado e o sistema político e os setores privados do mundo da vida.

Uma “estrutura comunicativa”, um centro poten-cial de comunicação pública, que revela um racio-cínio de natureza pública, de formação da opinião e da vontade política, enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. A esfera pública tem a ver com o “espaço social” do qual pode emergir uma formação discursiva da opinião e da vontade política. (LUBENOW, 2010, p. 236).

A constituição de uma esfera pública mostra a importância do outro, das múltiplas opiniões. Como exemplo do reconhecimento deste valor, a liberdade de expressão é um direito garantido pela Constituição de 1988 no Brasil9 e também aparece na Declaração Universal dos Direitos Humanos.10 Contudo, a visão deliberativa tem sido criticada e problematizada. A

deli-9 Art. 5º - IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, indepen-dentemente de censura ou licença;

10 Artigo 19 - Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liber-dade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

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beração, em si, não é o alvo das críticas, mas sim as formas com que ela é realizada. Dentro da proposta de Habermas, a deliberação deve existir até que seja possível encontrar uma posição consensual, evitando ao máximo a discordância e o conflito. Assim, a crítica para o modelo de deliberação é na

[...] imposição da busca de um consenso, mesmo que isto signifique a secundarização da controvér-sia, elemento fundamental para a democracia. A imposição da participação em determinados fó-runs participativos ou deliberativos busca somen-te a legitimação do processo dito “democrático”

e procura desqualificar outras formas de partici-pação política, de mobilização e de ação coletiva, tais como passeatas, manifestos virtuais, greves, caminhadas, manifestações, desobediência civil, etc. (PEREIRA, 2012, p. 71).

Assim, o consenso pleno ou é utópico ou, na maioria das vezes, ocorre pela exclusão de outras partes. As diferentes formas de participação políti-ca garantem que mais pessoas possam participar do processo de delibera-ção, além de servir como um parâmetro entre as instituições e a populadelibera-ção, que denuncia, propõe pautas, mostra o que quer. Dessa forma, é importan-te definir o conflito como parimportan-te constituinimportan-te da democracia. Mouffe (2005) defende um modelo agonístico de democracia, que coloca a questão do poder e do antagonismo em seu centro. A ideia de uma democracia bem sucedida e um consenso racional é ilusório para a autora. Por isso, reconhe-cer as limitações e manter viva a contestação democrática é uma maneira muito mais receptiva para entender a democracia dentro das complexas estruturas da sociedade. A deliberação deve ocorrer, mas sem que se espere que todas as partes saiam satisfeitas e que não haja contestação, pois histo-ricamente, isto já se mostrou improvável e improdutivo.

Nesta perspectiva, os movimentos sociais são conflitos importantes para a construção do ambiente democrático. Não há apenas uma definição

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de movimentos sociais, o que se pode afirmar é que os movimentos, na maio-ria das vezes, estão questionando as estruturas de poder e propondo novas formas de organização à sociedade política (GOHN, 1997). Nas democracias, os movimentos sociais auxiliam a pautar novas demandas, que podem ser deixadas de lado por serem de grupos com menos poder, menos participa-ção política, menos voz. Além disso, ajudam a reconhecer desigualdades e a manter uma tensão contínua dentro dos regimes democráticos, ao mesmo tempo que questionam decisões, colaboram para o processo de canalização das expectativas em relação ao sistema político (PEREIRA, 2012).

Assim, os movimentos feministas surgem pela necessidade de expor as injustiças e desigualdades sofridas pelas mulheres. Em um sistema de-mocrático, a participação feminina visa expor demandas frequentemente deixadas de lado, especialmente quando se considera que a representação feminina é mínima na esfera pública. A exemplo, no ano de 2020 nas elei-ções municipais, as mulheres representavam 12% dos prefeitos eleitos e 16%

dos vereadores.11 Além disso, a própria definição do que constitui a esfera pública e a esfera privada é cara aos movimentos feministas. Para Biroli (2018), as hierarquias que constituem a vida privada restringem a partici-pação das mulheres na esfera pública, uma vez que as responsabilidades impostas na esfera privada e a construção dos sentidos do feminino muito conectados ao “doméstico” colocam filtros na participação pública.

Para a autora, essa dualidade, público e privado, não é tão problemati-zada na maioria das teorias democráticas. Esse debate coloca em jogo o que é relevante para a esfera política e, consequentemente, quem será reconhe-cido para participar e interferir neste debate. Assim, o que é de interesse

“geral” e o que é de interesse “particular” pode alterar toda uma agenda política. Muitos assuntos não são tratados como problemas da sociedade ou da democracia, mas são reduzidos a problemas de gênero ou ainda, como algo isolado da vida pública. Foi essa preocupação que fez com que diversas mulheres levantassem a bandeira do “o pessoal é político”, especialmente ao final dos anos 60 com o movimento Women’s Liberation Movement, nos Estados Unidos. Essa discussão pode datar de mais de 50 anos, mas perma-nece mais atual do que nunca.

11 https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/mulheres-representam-apenas--12-dos-prefeitos-eleitos-no-1o-turno-das-eleicoes-2020

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