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Elied da Silva Paiva 1 Maurides Macêdo 2

2. O direito à igualdade como fundamento de qualquer democracia

A Democracia consolidou-se definitivamente no Brasil com a nova ordem constitucional de 1988. A partir de então, o povo exerce sobera-namente o poder, por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

A Constituição atual está ancorada no direito à igualdade, de tal modo que o reconhecimento dessa garantia constitucional condiciona a consoli-dação do estado democrático de direito. Eis que os institutos permanecem imbricados, uma vez que a democracia não se concretiza sem a igualdade.

O direito à igualdade foi reiterado em diversas partes do texto consti-tucional, revelando a preocupação do legislador constituinte originário em

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coibir discriminações de qualquer natureza, dentre elas a discriminação de gênero. Desta forma, em 1988, o constituinte trouxe expressamente para o texto constitucional a igualdade de homens e mulheres em direitos e obriga-ções (art. 5º, Constituição Federal), concretizando um clamor de importante parcela da sociedade brasileira à época, conforme VOGEL (2019, p. 37):

Por meio de documento intitulado “Carta das Mu-lheres Brasileiras aos Constituintes” e a partir do slogan “Constituinte para valer tem que ter pala-vra da mulher”, vários grupos feministas reivindi-cavam o direito à representação, à voz e a vez na vida pública. Ao mesmo tempo, essa maior pre-sença no campo político não poderia estar desvin-culada da defesa da dignidade na vida cotidiana, como o direito à educação, à saúde, à segurança e à vivência familiar sem traumas. A partir de um discurso próximo da perspectiva intersecciona-lista (que articula classe, gênero e raça), o docu-mento considerava que a construção de um país efetivamente democrático e a efetiva liberdade de seus cidadãos e cidadãs só seria conquistada se,

“sem prejuízo de sexo, raça, cor, classe, orientação sexual, credo político ou religioso, condição física ou idade, for garantido igual tratamento e igual acesso às ruas, palanques, oficinas, fábricas, escri-tórios, assembleias e palácios.

Mas a luta em busca dessa igualdade foi árdua. Em 1986, foram eleitas apenas 26 mulheres para o Congresso Nacional, todas para a Câmara dos Deputados. As deputadas constituintes representavam apenas 5% do total de parlamentares do Congresso. Mesmo assim, com o apoio de diversos segmentos da sociedade, foram capazes de articular importantes inserções de pautas femininas na Constituição de 1988. (BRASIL, 2018b).

Naquela ocasião, elas deixaram de lado preferências partidárias, unin-do-se em torno de um ideal comum e superior, consistente na garantia de

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que a nova ordem constitucional assegurasse a tão sonhada igualdade entre homens e mulheres. Uma política baseada na empatia, voltada ao diálogo e à inclusão garantiu os louros da vitória ao movimento conhecido como “lo-bby do batom”, movimento de mulheres coordenado pelo Conselho Nacio-nal dos Direitos da Mulher (CNDM), mas que contava com a participação de grupos e organizações por todo o país (BRASIL, 2018c). A Constituição Cidadã teve importante participação de mulheres que marcaram a nova or-dem social e jurídica brasileira, como Jacqueline Pitanguy, Luiza Erundina, Sueli Carneiro, Heloísa Buarque e Benedita da Silva.

Graças às importantes articulações engendradas por essas bravas guer-reiras, garantiu-se igualdade de participação na tomada de decisões do Es-tado, inadmitindo-se discriminações de qualquer sorte. O incremento dessa garantia constitucional reclama o pleno exercício da capacidade eleitoral ati-va e passiati-va, ou seja, o direito de votar e de ser votado. Porém, a igualdade, formalmente instituída pela atual Constituição, não foi bastante para que homens e mulheres participassem igualitariamente dos pleitos eleitorais.

Talvez o maior desafio não tenha sido a positivação constitucional da igualdade de gênero, mas a materialização dessa garantia na sociedade brasileira, marcada pelo machismo. O rompimento do ciclo de exclusão requer ações concretas, pois apenas o reconhecimento formal da igualdade não consegue efetivar as necessárias transformações sociais. Nesse sentido, surgiram políticas públicas voltadas à inclusão feminina na política brasi-leira, buscando o “empoderamento” desse grupo social, vítima de desigual-dade e discriminação. As ações afirmativas voltam-se ao fortalecimento dos grupos minoritários, despertando-lhes a necessidade de ocuparem seu papel enquanto cidadãos (CANDAU, 2008).

As Leis n.º 9.100/95 e 9.504/97 são exemplos de ações afirmativas volta-das à expansão da mulher na política brasileira. Pioneira, a Lei n.º 9.100/95 instituiu as cotas de candidaturas para os cargos do sistema proporcional, estabelecendo que vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Progres-sivamente, a Lei n.º 9.504/97 estabeleceu a reserva do mínimo de trinta e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo, mas a exigência legal não foi suficiente para ascender à militância feminina, pois os partidos

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passaram a registrar o percentual máximo permitido de candidaturas mas-culinas, deixando vago o preenchimento da reserva destinada às mulheres.

Em busca de melhores resultados, a Lei n.º 12.034/2009 estabeleceu a obrigatoriedade de cada partido ou coligação preencher o mínimo de trinta e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. Força-dos a preencher o número mínimo de 30% de candidaturas por gênero, os partidos políticos passaram a fraudar o processo eleitoral, lançando as candidaturas femininas apenas para obedecerem a um critério formal, sem viabilizar condições para que essas mulheres participassem dos pleitos em igualdade de condições com os homens, dando origem às denominadas

“candidaturas fictícias” ou “candidaturas laranjas”. Essa prática cruel, reite-rada, pleito a pleito, pelos partidos políticos enseja o controle jurisdicional, conforme destacam Almeida e Machado (2018, p. 143):

Essa modalidade de abuso justifica o controle ju-risdicional do processo político-eleitoral na medi-da em que se trata de um ato ilícito grave, pois a conduta, além de representar uma fraude a uma política de Estado assentada em normas de direi-tos humanos e que está há 22 anos tentando obter resultados quantitativos consideráveis, contribui para manter a desigualdade entre os gêneros na política, claramente afetando a normalidade e legi-timidade das eleições ao restringir o mercado polí-tico eleitoral e diminuir a margem do exercício da liberdade de voto do eleitor, que, na dinâmica das democracias representativas modernas, não elege qualquer pessoa, mas apenas aquelas que estejam participando efetivamente da disputa.

O Tribunal Superior Eleitoral está atento à necessidade de intervenção jurisdicional, imprescindível à obtenção de melhores resultados com a po-lítica de cotas:

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Em 17 de setembro de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral, por maioria de votos, manteve a cassa-ção de seis vereadores eleitos em 2016 na cidade de Valença do Piauí (PI). Eles foram acusados de se beneficiar de candidaturas fictícias de mulhe-res que não chegaram sequer a fazer campanha eleitoral. Os vereadores foram condenados pelo Tribunal Regional Eleitoral do Piauí (TRE-PI) por supostamente lançarem candidaturas femininas fictícias para alcançar o mínimo previsto na Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) de 30% de mulheres nas duas coligações e se beneficiarem dessas candidaturas fantasmas. Ao todo, entre eleitos e não eleitos, 29 candidatos registrados pelas duas coligações tiveram o registro indeferido pelo mesmo motivo. Em seu voto, a presidente do TSE ressaltou a importância do papel da Justiça Eleitoral para corrigir a distorção histórica que envolve a participação feminina no cenário político nacional. “Este Tribunal Superior tem protagonizado a implementação de práticas que garantam o incremento da voz ativa da mulher na política brasileira, mediante a sinalização de posicionamento rigoroso quanto ao cumprimento das normas que disciplinam ações afirmativas sobre o tema”, afirmou. Já o ministro Barroso lembrou que, embora a cota de gênero exista há mais de dez anos, a medida ainda não produziu nenhum impacto no Parlamento brasileiro. “O que se identifica aqui é um claro descompromisso dos partidos políticos quanto à recomendação que vigora desde 1997”, observou. No mesmo sentido,

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o ministro Tarcisio disse não ver com perplexida-de a consequência prática perplexida-de se retirar do cenário político candidaturas femininas em razão da frau-de à cota frau-de gênero. “As candidaturas femininas fictícias propiciaram uma falsa competição pelo voto popular”, constatou. (TSE, 2019b, on-line).

Outras ações foram incrementadas, tais como a veiculação de propa-ganda institucional do Tribunal Superior Eleitoral incentivando a partici-pação feminina na política e, recentemente, a destinação de recursos finan-ceiros para candidaturas de mulheres e a reserva de tempo de propaganda no rádio e televisão.

Embora dignas de reconhecimento, os resultados obtidos com as ações acima enumeradas ainda estão longe do esperado. Em comparação com os países vizinhos da América Latina, o Brasil apresenta os mais baixos índi-ces no que se refere à participação feminina na política, comprovando que as medidas já implantadas se mostram insuficientes. Em estudo recente realizado pela ONU Mulheres (2020), o Brasil é o antepenúltimo no ran-king sobre a participação das mulheres na política nos países latino-ame-ricanos já mapeados. Esses números ensejam diversas especulações acerca do tema. Por que as políticas públicas não se mostraram suficientes para garantir a presença das mulheres no espaço político brasileiro? Que outras ações são necessárias? Será que apenas alterações legislativas são suficien-tes? A ausência feminina compromete a democracia representativa?

De fato, o pleno exercício da capacidade eleitoral ativa e passiva é condição imprescindível para a sedimentação do Estado Democrático de Direito. A participação periférica das mulheres na política compromete a efetividade da democracia representativa. A desigualdade de gênero na po-lítica, passivamente aceita pela maioria dos brasileiros, afronta o direito fundamental à igualdade e são justamente os direitos humanos que aferem legitimidade aos poderes. E havendo crise desses direitos haverá também uma crise do poder em toda sociedade democraticamente organizada. (BO-NAVIDES, 2007). A ausência feminina na política reflete uma sociedade desigual, com a saúde democrática comprometida.

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