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Capítulo II – Ditadura versus democracia

2. O 25 de Abril de 1974: mudança de paradigma

3.2 Democracia representativa

Outra perspectiva, aquela que tem sido a forma de aplicação da democracia por excelência, traduz-se na democracia representativa. Se antes foi referido o estado de refundação em relação à participação, o mesmo acontece em relação à representação. Muito criticada em todos os quadrantes, como demonstra o reflexo das manifestações referidas e que são eloquentes relativamente à constatação de falhas na complementaridade que devia ser norma entre Estado e sociedade civil, que não existindo, provoca um descontentamento geral das pessoas com a democracia como destacam Manin (1998); Baquero (2003) e Costa (2007). A existência na sociedade de tantos e tão graves problemas que tardam em ter solução, potencia/aumenta o desencanto e a desconfiança das pessoas em relação à política.

22 Lei Constitucional 1/05 de 12 de Agosto – CRP (revisão).

23 Ver a Lei n.º 52/08 de 28 de Agosto sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais

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Vinga hoje a visão institucionalista de representação iniciada com Max Weber na defesa do sistema parlamentar (Turner, 2001). Foi reforçada por Schumpeter (1961) e a que Lipset (1967), Huntington (1991), Dahl (2001), Held (1996) e Manin (1998) deram continuidade ou continuam a dar nas suas especificidades teóricas. Para se entender a representação em democracia ter-se-á de recuar até Thomas Hobbes (n.1588-m.1679) que defendia que o agir de forma racional dos indivíduos visava garantir a sua sobrevivência e sempre que possível pensando no seu prazer. Hobbes partiu da rejeição da ideia em vigor do direito divino dos monarcas e avançou para a necessidade de formular um contrato social entre as pessoas, que permitisse garantir condições de segurança através da atribuição do poder a uma pessoa ou assembleia (ao Estado), de modo a que as decisões tidas fossem aplicadas aos membros da comunidade. E isso tornava-se imperioso pois “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça” (1997, cap. XIII, # 15). O homem do mundo moderno enquanto ser racional, livre e cultivando valores de justiça, não aceita nenhuma forma de autoridade que não resulte de delegação humana, nem aceita verdades que não tenham uma base de comprovação científica, daí que os cidadãos passem não só a valorizar a sua individualidade autónoma, mas sobretudo a ver a sociedade como uma assembleia onde as pessoas afirmam a sua liberdade e onde se unem em função de determinadas escolhas. O valor assenta na ideia de contrato social, que gradualmente se vai tornando teoria hegemónica de justificação do poder político, através da alteração do modo de entender o poder: operando por delegação, deixa tal delegação de advir de Deus, por delegação divina (teológica), para passar a ser através de uma delegação do povo (das pessoas/popular).Tem também de ser citado o pensamento de John Locke (1963), teórico empirista e da razoabilidade (the reasonableness) que defendia igualmente o contrato social. Valorizava a experiência como fonte do conhecimento e defendia que a sociedade é uma associação de indivíduos que estabeleceram entre si um contrato de reunião, onde o bem público deve considerar as realizações individuais e não os fins colectivos, pois o que é bom para a sociedade no seu todo, é bom para os indivíduos. Afirmava intransigentemente os direitos básicos inalienáveis do homem, nomeadamente, o direito à vida, à liberdade e à propriedade e o direito de resistência, tendo subjacente a necessidade de vigorar uma base de confiança (trust) que é condutora do consentimento gerado entre os indivíduos para se criar a sociedade (e que quando conseguido levará à criação do governo). Temos aqui o valor da confiança como referencial de conduta. No capítulo IV voltar-se-á a este valor, já que é tido como essencial na manutenção das relações entre os actores/agentes sociais.

Os dois autores são separados por uma base discursiva diferenciada, mesmo oposta: Hobbes defendia uma forma de exercício absolutista, Locke defendia o liberalismo – mas sendo ambos defensores da democracia representativa (baseada na representação política). Teriam continuadores em pensadores como Berlin (1991), Popper (1982; 1993) ou Rawls (1996), que contribuíram para a evolução do conceito de representação cujo início se situa no final da Idade Média, como refere Kinzo (1980):

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“Nesta época a prática da representação caracterizava-se pelo seu caráter privatístico: os mandatários eram delegados de um burgo, comunidade ou estrato específico da população. Não eram dados poderes de decisão ao mandatário; as decisões deviam ter a aprovação expressa dos mandantes, e, portanto, deviam ser decididas previamente entre eles, sem o que o mandatário poderia ser destituído desta condição. Deste modo, o representante não tinha nenhum poder de ação autônoma, era apenas o orador indicado para expor as reivindicações de seu burgo, corporação, cidade ou classe social. Foi na segunda metade do século XVIII – na França com a constituição de 1791 e na Inglaterra por obra de um parlamentar conservador Edmund Burke - que esta noção de mandato imperativo foi questionada” (p. 30-31).

Sendo importantes os argumentos, para além do que distancia as posições nas suas mais diversas formas de concretização, defende-se, acompanhando o pensamento de Gomes Canotilho (1993) e Canotilho e Moreira (1993), que participação e representação têm uma relação comum, pois a participação do povo não se compadece com uma colaboração intermitente, antes exige uma participação de intervenção permanente que possibilite, não apenas, uma democracia representativa mas uma autêntica e real democracia participativa, permitindo dessa forma que seja alargado o exercício da cidadania.

Mas não se pense que a discussão é aberta, ampla e fecunda, somente em relação aos modelos de democracia. A discussão acontece também nas formas que individualizam cada um dos modelos de democracia que vão sendo debatidos – veja-se o caso da democracia liberal representativa, que assenta no sistema de pluralismo político e que segundo Pereira & Espada (1984) tem as seguintes regras condutoras:

“A primeira regra seria que a fonte de soberania reside no povo e na sua vontade livremente expressa. São os cidadãos que legitimam os governantes, e não há nenhuma outra fonte de soberania: nem divina, nem militar, nem ideológica, nem mesmo científica; A segunda regra exigirá que os poderes sejam divididos: deve-se diminuir ao máximo a possibilidade de um só homem ou uma só instituição concentrar em si todos os poderes, ou sequer, um número excessivo deles. Daí que se tenha estabelecido a consagrada distinção entre executivo, legislativo e judicial; A terceira regra exigirá que os candidatos aos diversos lugares dos distintos poderes não sejam apenas eleitos – mas que o sejam em candidaturas alternativas entre si e que estas disponham de condições mínimas iguais para disputar o eleitorado; A quarta regra exigirá a possibilidade de alternância entre os diversos candidatos. Ninguém poderá prolongar indefinidamente a sua passagem pelo poder – terá de submeter-se a sufrágios cíclicos (...); A quinta regra, que devemos exigir para que as duas anteriores tenham substância, é que os poderes sejam, tanto quanto possível e sensato, permeáveis à observação e controlo do público” (p. 62-63).

A esta descrição, acrescenta Popper (1993):

“Aquilo que os marxistas descrevem depreciativamente como simples liberdade formal, torna-se a base de tudo o mais. Essa “simples liberdade formal”, isto é a democracia, o direito do povo julgar e destituir o governo, é o único dispositivo conhecido por meio do qual podemos tentar proteger-nos contra o abuso do poder político; é o controlo dos governantes pelos governados. Uma vez que o poder político pode controlar o poder económico, a democracia é também o único meio de controlo do poder económico pelos governados. Sem controlo democrático não há qualquer razão válida para que qualquer governo não use o seu poder político e económico com fins muito distintos da protecção da liberdade dos seus cidadãos” (p. 125).

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No ensaio supra citado é defendida a democracia liberal pluralista, uma visão, face a outros entendimentos (cabendo igualmente dentro da representação), como seja o de partido único, característico das democracias populares, em vigor no leste da Europa antes da queda do Muro de Berlim coincidentes com o sistema político da ex-URSS de inspiração socialista.