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Capítulo III – Estado de direito como valor referencial

1.2 Os direitos humanos

Até ao final do séc. XII vigorou o poder do rei/senhor/suserano sobre os seus súbditos, cujos deveres de vassalagem (dos segundos face aos primeiros), incluíam a servidão, chegando à possibilidade de compra da liberdade e da obtenção/detenção de direitos de morte sobre aqueles. A relação entre ambas as partes era de dominação/subserviência, com base numa desigualdade de classes que era característica da altura (e que continuaria a vigorar ainda durante mais uns séculos, até ao final do Antigo Regime). No sentido de limitação do poder arbitrário, a Magna Carta36, surge como marco inicial da expressão de

direitos do homem, sendo depois criados outros mecanismos limitadores como tenham sido o

Habeas Corpus37 ou o Bill of Rights38.

Depois de um período de luta veemente contra o absolutismo, a Constituição americana de 1787 e depois a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC) que nos é oferecida pela Assemblée Nationale de France em 1789, manifestam direitos que passam a ser considerados naturais, inalienáveis e sagrados, tidos por imprescritíveis, abraçando a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão (ver Bonavides, 2000). A DDHC afirma que “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão, pode falar, escrever e imprimir livremente, respondendo pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei” (artº IX).

Sob a inspiração da Declaração francesa, Cunha (2000) afirma que “foi inaugurada a fase de institucionalização de postulados dogmáticos na ordem jurídica formal, que a doutrina distingue como uma sequência temporal de direitos – de primeira, segunda, terceira e quarta geração” (p. 97).

A primeira categoria refere-se aos direitos individuais e direitos políticos:

36 Documento do século XIII (1215), em que o rei de Inglaterra, João <sem terra>, se compromete a

governar nos limites da lei, permitindo aos barões (cidadãos de honra) gozarem a sua liberdade e os seus bens.

37 Documento do século XVII (1679) que reforça a Magna Carta, determinando que uma pessoa detida

deve ser presente ao tribunal, para se conduzido um inquérito sobre os motivos da sua detenção.

38 Documento do Século XVII (1689) que levou à separação dos poderes do parlamento e do monarca em

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“Nesse primeiro conjunto de direitos encontram-se, a proteção contra a privação arbitrária da liberdade, a inviolabilidade do domicílio, a liberdade e o segredo de correspondência. (…) Já as liberdades políticas referem-se à participação do indivíduo no processo de poder político. As mais importantes são as liberdades de associação, de reunião, de formação de partidos, de opinar, o direito de votar, o direito de controlar os atos estatais e, por fim, o direito de acesso aos cargos públicos em igualdade de condições” (Tavares, 2003, p. 369-370).

No segundo nível cabem os direitos sociais (ou relativos à igualdade):

“Impõem ao Estado o fornecimento e prestações destinadas ao cumprimento da igualdade e redução dos problemas sociais. Por muito tempo esses direitos tiveram previsão apenas em normas de caráter programático, em razão da necessidade de meios e recursos para a atuação do estado nesse campo” (Chimenti et al., 2006, p. 47).

Os chamados direitos de terceira dimensão dizem respeito à “proteção ao meio ambiente, ao progresso, à qualidade de vida saudável, à paz, à autodeterminação dos povos, à defesa do consumidor, e outros, e têm sua base no conceito de fraternidade e solidariedade” (Soares, 2010, p. 53).

Bonavides (2000) refere que fazem parte dos direitos de nível quatro ou de responsabilidade global, o direito à democracia (…) o direito à informação (…) e o direito ao pluralismo (…) ligados ao futuro da cidadania (p. 517-525). O conjunto destes direitos viria a ser reunido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) de 10 de Dezembro de 1948, da Organização das Nações Unidas e que o autor vê como:

“o estatuto de liberdade de todos os povos, a Constituição das Nações Unidas, a carta magna das minorias oprimidas, o código das nacionalidades, a esperança, enfim, de promover, sem distinção de raça, sexo e religião, o respeito à dignidade do ser humano” (p. 531).

Com um enfoque que justifica uma particularização específica vai ser tratado, por um lado, o direito de informação - sujeito à transparência e que Serra (1999) no enquadramento de democracia representativa em que vivemos considera não envolver apenas um direito passivo (de haver direito à informação) “mas também um dever (activo): o dever de cada um dos Cidadãos exigir a quem governa a coisa pública (seja qual for o nível e o domínio em que esse governo se exerce), que explique as suas acções e omissões” (p. 2). Por outro lado, debateremos também o direito de opinião - traduzido na liberdade de expressão e conducente à liberdade de imprensa. Este último apresenta uma singularidade. Efectivamente, no tocante à liberdade de expressão/direito de opinião e considerando a relação que estabelecem polícia e media acontecem alguns condicionamentos por parte da polícia resultantes de valores de peso diferenciado que têm de ser considerados quando se é militar e se ‘fala’ com os media. Isso indubitavelmente acaba por moldar a relação existente – o militar é uma pessoa ‘especial’ e está sujeito a um ordenamento muito próprio, o que implica ter de ser particularmente comedido nas suas opiniões. Se não forem tomados os

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cuidados referidos, mesmo quando a opinião possa ser de um delegado/presidente de uma associação profissional/sindical representativa, perante os estatutos militares, isso não vai fazer muita diferença no resultado final: punição do militar por ter “falado com os jornalistas” (segundo a notícia que constitui o Anexo XVI). O caso apresentado constitui-se como uma dupla elucidação quanto à relação entre as partes: utilização dos media para tomada de posição de força por parte do ‘sindicalista’ na denúncia de normas internas (assumir de posição crítica face ao poder instituído/comando da Instituição – o que remete para uma nova circunstância que se prende com as lutas dentro do campo que vão ser tratadas no capítulo seguinte) e o consequente sancionar do interveniente pela intervenção havida, na utilização dos meios de comunicação social (que potenciam a ampliação do resultado numa utilização que poderá ter sido assim pensada para atingir objectivos que a mediação permite) e que segundo as conclusões do procedimento disciplinar desenvolvido, terá ferido os preceitos militares.

O conjunto das expressões/manifestações que fazem parte dos direitos obtidos, são resultantes das batalhas travadas ao longo dos tempos pelas pessoas e que foram ganhando lugar nas constituições dos diferentes países. Silva (2006) contextualizando a ligação dos direitos humanos aos direitos constitucionais (inseridos na Constituição), apresenta as características que os individualizam:

“Inalienabilidade - São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis;

Imprescritibilidade - Nunca deixam de ser exigíveis. Pois prescrição é um instituto jurídico que somente atinge os direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso;

Irrenunciabilidade - Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite que sejam renunciados” (p.185).

No global, os direitos humanos entendidos como “um conjunto inalienável de bens, serviços e oportunidades individuais em que o Estado e a sociedade são, em circunstâncias comuns, chamados a respeitar ou prover (Donnelly, 1998, p. 176), funcionam como restrição ao “leque legítimo da autoridade do Estado e estabelecem obrigações que o Estado deve a cada e todo cidadão, independente de outras considerações” (idem). Materializam-se no ‘ser pessoa’ que também é pressuposto para o exercício da cidadania, pois, tal como refere Cunha (2000) “ninguém poderá exercer cidadania, sem ser pessoa. A essência do existir dignamente, é ser pessoa, numa dimensão que projeta o ser para o político, social, comunitário, enfim exercer a cidadania” (p. 102).

É no respeito por estes princípios, que cabe a acção da polícia na prossecução de um fim que tenha como resultado a garantia do respeito pelos direitos humanos, coexistindo com os media que assinalam/evidenciam as posturas policiais menos próprias, de violação a tal

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dever de respeito, o que faz todo o sentido, já que ambas se constituem como exercícios de cidadania. Dito assim, o que significa afinal exercer a cidadania?

1.3 Cidadania

“O conceito de cidadania traduz uma responsabilidade perante nós e perante os outros, consciência de deveres e de direitos, impulso para a solidariedade e para a participação, que é sentido de comunidade e de partilha, é insatisfação perante o que é injusto ou o que está mal, é vontade de aperfeiçoar, de servir, é espírito de inovação, de audácia, de risco, é pensamento que age e acção que se pensa” (Jorge Sampaio, in Paixão, 2000).

O conceito tido no presente é bem diferente do conceito de cidadão da polis grega, exercido apenas por 1/10 da população (estavam excluídos os escravos, os metecos – estrangeiros, e as mulheres) naquilo que era uma ligação muito directa aos deveres. Esta evolução de sentido ganharia a forma moderna com as ideias surgidas das revoluções inglesa (1688), americana (1774-76) e francesa (1789), na afirmação da vontade popular e a que a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, veio acrescentar força e dinamismo, numa ligação crescente entre cidadania e dignidade, traduzida em direitos da pessoa humana (ver Marshall, 1965).

Em Portugal o termo cidadão aparece pela primeira vez na Constituição em 1822, no artº 21º (antes da Monarquia constitucional eram denominados súbditos), que proclamava que todos os portugueses eram cidadãos (corte com o passado de classes sociais e privilégios que lhe estavam associados de acordo com a lei natural). Isto, apesar de se vedar, por exemplo, o direito de voto a analfabetos, criados, mendigos e membros das ordens religiosas. Relativamente aos analfabetos, a exclusão parece justificada pela argumentação de Constant e já antes também de Montesquieu, de que apenas a educação formal podia gerar nos indivíduos um sentimento de preocupação pelo bem comum (Garrett, 1991, p. 128). Aos criados (influenciáveis pelos seus patrões), aos religiosos (influenciáveis pelos seus superiores) ou aos mendigos (vida errante e por isso sem rumo) faltava capacidade para uma vida autónoma e independente (Vieira, 1992, p. 260). Esta linha de pensamento é bebida de Kant (2004) quando o filósofo alemão argumenta que a independência se traduz em cada indivíduo ser senhor de si próprio, enquanto pressuposto base para o exercício da cidadania. Como curiosidade e, paralelamente, numa outra perspectiva de entendimento (e com foco na nossa passagem pelo tempo de ditadura), Salazar (1961) descrevia a União Nacional como “escola para os cidadãos” (p. 117). Como são diferenciados os entendimentos perante os termos, que assim adquirem significação tão díspar.

Ultrapassando esse aparte, vinga hoje, uma ideia liberal neorepublicana - ver Skinner (1998), Pettit (1997) e/ou Viroli (1999), de cidadania ligada à sociedade civil, sendo entendida numa linha de igualdade político-jurídica de integração/intervenção individual, ou

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em grupo, através da responsabilidade colectiva, enquanto garante da coesão e ordem social. Preocupa-se com os problemas concretos da vida não apenas de forma minimalista (com incidência nos problemas locais) mas também à escala global (resultante da ‘globalização’/‘mundialização’ que vivemos) e em que a mudança acontece a um ritmo alucinante que exige uma participação permanente, mas em que os valores de referência (tolerância, diálogo e aceitação da divergência de opinião) provocam algumas dissonâncias.

Numa perspectiva socio-antropológica, a cidadania não deixa de estar associada à ideia de nação, como comunidade histórica de cultura e de pátria, como a terra dos pais (Miranda, 1998, p. 62) num enaltecer da comunidade local em que o cidadão é conotado “não apenas sujeito de direitos, mas também inserido na sociedade e detentor de uma parte da soberania política e dessa forma se afirma como princípio de legitimidade política” (Schnapper, 2000, p. 10). Comunidade e sociedade completam-se. Foi Weber quem, pegando na distinção entre comunidade e sociedade, apontou a existência de acções e relações sociais de forma comunitária – fundadas sobre o sentimento subjectivo de pertença a uma mesma colectividade e acções e relações de forma societária – baseadas no compromisso e na associação voluntária dos indivíduos para defenderem os seus interesses (Carvalheiro, 2010, p. 67). A pertença e os interesses são estruturantes da ideia de cidadania, tendo esta como objectivo principal a constituição de uma comunidade de cidadãos que no mundo em constante mudança, conduz a adaptações permanentes. Seriam essas adaptações que Giddens (2000) tinha em mente quando defendeu que a revolução das comunicações produziu cidadanias mais activas e mais reflexivas, do que aquelas que existiam antes (p. 73) e a que Nancy Fraser (1992) já se tinha referido no seu ensaio sobre repensar a esfera pública, resultante da mudança que acontece.

A atitude permanente de repensar a sociedade e ainda a propósito das mudanças havidas, Correia (2005) relativamente às novas tecnologias de comunicação, referindo-se ao conceito de sociedade civil, alerta para a necessidade de uma redinamização da cidadania, com uma ligação que se ofereça como uma esfera de interacção social localizada, composta pela esfera íntima, pela esfera das associações voluntárias, pelos movimentos sociais e pelas formas de comunicação pública (p. 125). E tudo isso, na construção da cultura democrática que refere Yamamoto (2008):

“A construção de uma cultura democrática depende da participação política dos sujeitos inseridos uma determinada formação social. Esta construção é realizada por grupos diversificados da sociedade, mas ganha notoriedade nos movimentos sociais populares já que suas propostas intentam transformações profundas nas estruturas que regulam o funcionamento da sociedade. Tais movimentos utilizam veículos de comunicação que operam como suportes para transmissão de ideias e propostas políticas, dando visibilidade às formas de exclusão do actual sistema político- económico. Pressupõe-se em tais movimentos, a prática da cidadania como elemento norteador, seja para resolução dos problemas mais gerais que entornam o cotidiano e a existência desses sujeitos, seja para, a partir disso, naturalizar um hábito político” (p. 2132).

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A ideia de cidadania tem subjacente a ideia de participação que acontece por acção própria, mas quantas vezes sob impulsos de interlocução resultantes do exterior, como evidencia Vieira (2003):

“Devido à crescente complexidade social, as pessoas não só para se orientarem e estabelecerem contacto permanente umas com as outras, mas, também, para participarem, precisam de conhecimentos e ideias sobre o que acontece ao seu redor. Os fatos repercutem em suas vidas, nas opiniões da comunidade, e o conhecimento deles serve para que possam actuar eficazmente nos ambientes de trabalho, familiar e social, cumprindo seus papéis de cidadãos” (p. 30-31).

Da participação, não se pode excluir a capacidade crítica e argumentação/retórica, como sugere Danblon (2005) na associação que faz da capacidade argumentativa ao esforço de crítica social e aprofundamento do espírito crítico, que considera indispensáveis na construção da cidadania. Tito Cardoso e Cunha (2004) no livro ‘Razão Provisória’ trata a inevitabilidade retórica considerando-a das “dimensões mais fundamentais da realidade humana, na sua relação com o mundo” (p. 145), sendo esta uma técnica/arte que lida com a razão prática impelindo à acção. O espaço social promove a integração na esfera pública das diferentes formas de participação, assente na comunicação interpessoal argumentativa e mobilizadora, de modo a conseguir a expansão das vivências de cidadania que envolva direitos e deveres. Será dessa maneira que poderão ser dados passos firmes no sentido de tentar resolver desigualdades, através da criação de contracorrentes de intervenção, ou, simplesmente, novas perspectivas que alarguem/desenvolvam a vivência democrática. Mesmo se a apatia perante o espaço público se pode assumir quase como direito legítimo ao repouso, por parte do cidadão, de que o consumismo televisivo constitui parte essencial (Lazarsfeld e Merton, 1987, p. 230-231) é deveras tentador seguir Habermas (1962) naquilo que implica a verdadeira transformação estrutural da esfera pública – para a qual Calhoun e Nancy Fraser (1992) contribuem na crítica que fazem ao filósofo alemão, e que permita uma transformação no afrontar a ideologia dominante. A ideologia, é entendida por Althusser (1980), como representando “a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de existência” (p. 24), considerando-a Chauí (2003) da forma seguinte:

“ideologia é um corpo sistematizado de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o fazer e o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante” (p. 3-4).

Está em causa uma reinvenção no espaço público, procurando um sentido em que a liberdade coincida com a activa participação nos assuntos públicos (Taylor, 1991, p. 170-175) e em que se assuma o agir político que, ainda segundo Taylor (1994) “implica uma comunidade que seja simultaneamente mobilizadora e unificadora, conferindo um sentido

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último à própria afirmação da autenticidade num contexto moderno” (p. 118) e onde a opinião pública seja o catalisador.