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Capítulo III – Estado de direito como valor referencial

POLÍCIAS

1.5 A notícia como base de relacionamento

1.5.1 O valor, a função e a produção de notícias

Tudo começa com os acontecimentos. Traquina (2004, utiliza-os para chegar ao conceito de noticiabilidade: “conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia” (p. 96). Esta é o “resultado de um processo de produção definido como a percepção, selecção e transformação de uma matéria-prima (os acontecimentos) num produto (as notícias)” (Traquina, 1993, p. 169). Gradim (2000) refere-se-lhe como dizendo respeito a “textos eminentemente informativos, relativamente curtos, claros, directos, concisos e elaborados segundo regras de codificação bem determinadas (…)” (p. 41), distintos de opinião, que é entendida pela mesma investigadora, como “texto no qual o seu autor exprime pontos de vista subjectivos relativamente a assuntos que, por qualquer razão, despertaram o seu interesse” (idem, p.74). Para Lemos e Holanda (2013), a notícia é construída no processo de mediação envolvendo “alto grau de interferência, seleção e elaboração do relato sobre a realidade” (p. 8) e em que “persiste a cobrança de transparência como única garantia possível da pureza do trabalho de transmissão de uma verdade (evidente e inequívoca)” (idem).

As notícias e os acontecimentos estão umbilicalmente ligados, já que, como salienta Traquina (1993) “as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e de textos; enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento” (p. 168). Os acontecimentos constituem um imenso universo de matéria-prima. A estratificação deste recurso consiste na selecção do que irá ser tratado, ou seja, na escolha do que se julga ser

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matéria-prima, numa palavra – noticiável” (idem, 169). O noticiável (as notícias) enquanto representação social da realidade quotidiana, têm uma função coordenadora das actividades na complexidade social. Nas palavras de Alsina (2009) são os meios de comunicação que se apresentam como transmissores da realidade social (p. 9). Tuchman (1983) salienta que o tornar disponível a informação a todos, que de outra forma estaria inacessível, leva a que a produção jornalística funcione como processo de construção social da realidade (p. 16). A este resultado também se refere Traquina (2001) com propriedade:

“Apesar das diversas sensibilidades que existem dentro do paradigma construtivista, é partilhada a perspectiva que as notícias são um resultado de processos de interacção social entre jornalistas, entre os jornalistas e a sociedade, e entre os jornalistas e as suas fontes de informação [...] para o paradigma construtivista o mundo social e político não é uma realidade predeterminada e dura que os jornalistas reflectem, e os jornalistas não são observadores passivos, mas participantes activos na construção da realidade” (p. 62-63).

Nessa participação activa o jornalista desempenha um papel essencial que Nuno Francisco refere “será sempre insubstituível como aquele que selecciona, dá sentido e credibilidade à informação” (Jornal do Fundão, 6 de Novembro de 2014, p.2).

É na função que desempenha e dentro da construção referida que Gadini (2007) vai entender o jornalismo como discurso do quotidiano, quando, respondendo a uma necessidade social da informação:

“noticia, informa e veicula uma abordagem a respeito dos eventos da realidade (global) cotidiana, logicamente passível de identificação pelo seu respectivo público- alvo, uma vez que são essas mesmas condições e possibilidades de produção que tornam uma notícia aceitável...na medida em que o receptor é interlocutor, que age como “reconhecedor” dos sentidos projetados nos produtos que ganham visibilidade e forma pela acção jornalística” (p. 13).

E é a partir daí que fortalecido na sua autonomização se defende caber ao jornalismo um papel próprio e por isso mesmo específico como refere Chaparro (s/d) sugerindo “ser linguagem socializadora, veraz, eficaz para o relato e o comentário do que de relevante acontece; e espaço público confiável, para que nele se realizem com sucesso conflitos que interessam à sociedade – inclusive, as lutas organizadas por boas causas” (p. 2).

No caminho do desenvolvimento do campo dos media como ciência e considerando os níveis de análise Traquina (2002) sistematiza as teorias da notícia dentro da Comunicação referindo-se particularmente às seguintes: do espelho, da acção pessoal/gatekeeper, organizacional, interaccionista, acção política, estruturalista, construccionista. Sem deixar de considerar importantes as abordagens organizacional (as normas dos campos, já evidenciadas no Capítulo III) e interaccionista (relação com as fontes - a ver com pormenor no ponto seguinte) tratam-se agora as teorias da acção pessoal e construccionista/estruturalista que são vistas pelo autor com propósitos similares, já que ambas:

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 salientam a importância da estrutura dos valores-notícia, a ideologia comunitária, as rotinas e os procedimentos profissionais;

 rejeitam a visão instrumentalista das notícia e reconhecem o grau de autonomia dos jornalistas (considerados participantes activos na construção da realidade);

 reconhecem as notícias como estórias marcadas pela cultura dos jornalistas (bem como da sociedade onde eles se inserem), servindo as formas narrativas para enquadrar o acontecimento.

Na produção das notícias vislumbra-se um ‘saber fazer’ muito próprio. Essa produção acontece fruto de uma visão específica que Bourdieu (1997) afirma ser própria dos jornalistas, uma vez que estes são possuidores de óculos especiais, através dos quais vêem determinados acontecimentos e não outros, vendo “de uma certa maneira as coisas que vêem” (p. 12), numa valoração sui generis da realidade. É a mesma concepção que motiva Patterson (1997) a referir-se-lhe como “prisma” que vai traduzir-se em notícias enquanto relatos altamente seleccionados da realidade e a que Tuchman (1993) também trata ao falar da “capacidade secreta do jornalista que os diferencia das outras pessoas” (p. 85).

No processo de produção de notícias (newsmaking) enquanto forma de construção narrativa da realidade (e não mero reflexo do real) acontecem interacções de forças diversas, que, Jorge Pedro Sousa (2000) descreve como sendo as seguintes:

“1 - Acção pessoal – as notícias resultam parcialmente das pessoas e das suas intenções, da capacidade pessoal dos seus autores;

2 - Acção social – as notícias são fruto das dinâmicas e dos constrangimentos do sistema social, particularmente do meio organizacional, em que foram construídas e fabricadas;

3 - Acção ideológica – as notícias são originadas por forças de interesse que dão coesão aos grupos, seja esse interesse consciente e assumido ou não;

4 - Acção cultural – as notícias são um produto do sistema cultural em que são produzidas, que condiciona quer as perspectivas que se têm do mundo quer a significação que se atribui a esse mesmo mundo (mundivalência);

5 - Acção do meio físico e tecnológico – as notícias dependem dos dispositivos tecnológicos que são usados no seu processo de fabrico e do meio em que são produzidas;

6 - Acção histórica – as notícias são um produto da história durante a qual interagiram as restantes cinco forças que enformam as notícias que temos (pessoal, social, ideológica, cultural e físico-tecnológico)” (p.18-19).

Atendendo ao poder dos media na perspectiva anteriormente defendida, relaciona-se o newsmaking com o gatekeeping (nas contribuições de Kurt Lewin - 1947 e David Manning White - 1950) que diz respeito no caso do jornalismo à selecção de acontecimentos, particularmente à pessoa que escolhe, que decide, o que é notícia. Esta teoria foi considerada por Roberts (2005) como o gelado de baunilha da Teoria da Comunicação (p. 3) já que na sua evolução/revisão sem ser a favorita da comunidade científica por todos é tolerada

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(se bem que na actualidade tenha perdido parte do seu fulgor) referindo Traquina (2005) que por ela o processo de produção de informação:

“é concebido como uma série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos Gates [em referência ao estudo de White], isto é, “portões” que não são mais do que áreas de decisão em relação às quais o jornalista, isto é o gatekeeper, tem de decidir se vai escolher essa notícia ou não. Se a decisão for positiva, a notícia acaba por passar pelo “portão”; se não for, a sua progressão é impedida, o que na prática significa a sua “morte” porque significa que a notícia não será publicada, pelo menos nesse órgão de informação (p.150).

Porque os acontecimentos constituem um universo grandioso de matéria-prima (matéria discursiva) deve acontecer a sua estratificação que passa pela selecção do que irá ser tratado, ou seja, na escolha do que se julga ser matéria-prima, digna de adquirir a existência pública de notícia (a já referida noticiabilidade). Especificando ainda mais o conceito, Wolf (2005) sustenta que esta corresponde “ao conjunto dos critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, de entre um número imprevisível de factos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias (p. 196). O autor italiano defende que as decisões do

gatekeeper são tomadas “em relação a um conjunto de valores que incluem critérios quer

profissionais, quer organizativos, como eficiência, produção de notícia e rapidez” (p. 186). Gadini (2007) afirma que o processo de selecção76 jornalística não ocorre de forma isolada sob

a “única responsabilidade de alguns profissionais, mas integra um processo que é formulado e mantido inclusive sob o consentimento da sociedade civil (mais ou menos organizada!), dos consumidores e dos gestores da vida pública ou administrativa, vigentes” (p. 17). Os acontecimentos transformam-se em notícias mediante determinada contextualização, considerando diferentes elementos de noticiabilidade, entendida globalmente como visibilidade atribuída pelos media. A visibilidade noticiosa acontece mediante a determinação de valores-notícia que Elliott e Golding (1979) definem como “qualidades dos acontecimentos ou da sua construção jornalística, cuja presença ou ausência os recomenda para serem incluídos em um produto informativo” (p. 114).

Nessa transformação têm de ser considerados valores base que são salientados por Traquina na obra A Tribo Jornalística (2004) ao destacar a liberdade, a independência/autonomia, a credibilidade e a verdade (p. 67-69) e ainda o rigor, a honestidade e a objectividade (p. 70). Sem menosprezar os demais, o valor da objectividade é crucial, sendo um valor bastante caro ao próprio Lippmann (1922) que defendia encontrar- se “um sabor especial no método objectivo” (p. 256) e que Gaye Tuchman (1993) via como ritual estratégico. Traquina (2004) depois de evidenciar os contributos de Ericson, Baranek, Herbert Gans, Galtung e Ruge, divide os elementos de noticiabilidade, em duas categorias principais: os valores-notícia de selecção e de construção (p. 107), apoiado em Bourdieu e

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Wolf. Quanto aos valores de selecção, divide-os em dois subgrupos. Um, referido a critérios substantivos (avaliação directa do acontecimento em termos da sua importância – interesse como notícia). Cabem ali a notoriedade, a relevância, a morte, a proximidade, a novidade, o tempo, o inesperado (a surpresa), a infracção (crime, escândalo) e o conflito – o próprio Bourdieu (1997) defendia que o sangue e o sexo77, o drama e o crime fizeram sempre vender

(p. 9) – vemos essa materialização no filme ‘Superman – O regresso’, quando o patrão do jornal ‘Daily Planet’ em conversa com a jornalista ‘Loris Lane’ (nomeada para receber um Pulitzer) lhe dizia: “Loris, um jornal vende tragédias, sexo e o superman (…)”. Como o super- homem só mesmo na ficção, então ficam as tragédias e o sexo para os jornais venderem. Este é já um critério contextual, que integra outra ordem de valores e que são respeitantes ao contexto de produção das notícias, que agrupa ainda a disponibilidade, o equilíbrio, a visualidade, a concorrência e o dia noticioso.

Existem ainda valores de construção (relativos ao produto em si mesmo – produção e realização) que têm a ver com as possibilidades técnicas e de organização, as restrições existentes à realização e as limitações de cada médium e que se formam e aprendem no interior do campo, como sejam a simplificação, a amplificação, a relevância, a personalização, a dramatização e a consonância.

O alvo do jornalismo passa por ser a realidade quotidiana (constituindo a sua narrativa uma visão social do mundo) onde os acontecimentos mediante critérios de actualidade, sociabilidade e imprevisibilidade se contextualizam:

“nesse “mundo a comentar” com o surgimento de uma fenomenalidade que se impõe ao sujeito, em estado bruto, antes de sua captura perceptiva e interpretativa. Assim sendo, o acontecimento nunca é transmitido à instância de recepção em seu estado bruto; para sua significação, depende do olhar que se estende sobre ele, olhar de um sujeito que o integra num sistema de pensamento e, assim fazendo, o torna inteligível (Charaudeau, 2006, p.95).

A partir daqui, confrontada com abundância de acontecimentos e escassez do tempo, lutando para impor ordem no espaço e ordem no tempo (Traquina, 2001), uma empresa jornalística deve estar em condições de identificar o acontecimento eleito a ser notícia (de entre a multiplicidade que se apresenta); fazer os relatos sem dar a cada um tratamento idiossincrático e organizar a produção (em tempo e espaço), de modo a que os acontecimentos notícia possam convergir segundo a planificação feita, como salienta Tuchman (1983, p. 48). É neste enquadramento que são de referir as rotinas profissionais definidas por Fontcuberta (1999) como “uma série de actuações dos meios de comunicação que regulam e determinam o exercício profissional a partir de factores que nada têm a ver com a importância intrínseca dos factos ou a sua actualidade” (p. 106). Estas evidenciam, modos de organização e também consequentemente de funcionamento, com base em factores

77 Ver a página online do jornal Correio da Manhã do dia 25 de Julho de 2013 em Anexo XXI

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de espaço e de tempo onde a relação com as fontes (que na sua pluralidade exigem estratégias mediante os interesses presentes) se torna primordial.

Este é o modo de operar. Operando, trabalhando, exercendo a profissão, estabelecem-se relações importando dar conta da relação que os media têm com a polícia. Para compreender a relação têm obrigatoriamente de se conhecer as motivações que levaram os campos a essa posição. No modelo americano que normalmente nos serve de referência e abrigo Emery (1962) liga a indústria do jornal, numa primeira fase, ao alimentar do ideal ansioso de independência, atiçando as emoções entre os colonos, para de seguida evidenciar o seu papel de watchdog no descrever e sobretudo no avaliar da acção governativa. Por seu lado a industrialização em paralelo com as controvérsias em torno da imigração e da escravatura fizeram notar a necessidade de um controlo social que estaria na origem da criação dos primeiros departamentos de polícia nos Estados Unidos. O advento da TV e a cobertura em directo dos direitos civis (por que lutavam os americanos) juntamente com os protestos anti-guerra colocaram face a face jornais e polícia, defendendo à partida interesses opostos, em que aqueles assinalavam as lides desajeitadas da polícia no controlo dos manifestantes, levando esta a acusar os jornais de contribuírem para a turbulência e em que cada grupo alegava que apenas fazia o seu trabalho e não permitia interferências do outro (Selke & Bartoszek, 1984). Com o evoluir da criminalidade o controlo do crime passa a ser um campo de disputas inflamadas entre posições. Dada a complexidade do fenómeno de controlo social onde a criminalidade se expande e dados os interesses grupais em causa não se estranha o conflito entre polícia e imprensa como situa Altschull (1975) ao referir-se ao choque entre os campos de execução da lei (polícia) e o jornalismo/os media. No caso português foi já visto no capítulo I o tipo de relação que mantiveram os campos durante a ditadura, tentando-se agora chegar às bases e aos condicionamentos que existam de parte a parte no posicionamento peculiar (atendendo aos interesses de cada campo) em tempos de democracia, na interacção que estabelecem os media/jornalistas e as fontes de notícia (que as polícias configuram).