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Capítulo III – Estado de direito como valor referencial

1.4 Opinião pública

Mesmo se Adorno (1947/1996) e também Bourdieu (1989) defendem que a opinião pública não existe, pelo menos na acepção que lhe é atribuída e que adiante será explicitada, é aceite que a partir do momento em que a sociedade civil passou a ter protagonismo no cenário de construção da democracia, a opinião pública ganhou voz, marcando aqui e além o compasso e “podendo obrigar o sistema político a modificar o rumo do poder oficial” (Habermas, 2003, p.94). Num processo para o qual contribui em grande parte, a liberdade de expressão e através dela, a de imprensa, os media catapultaram-se para lugar de destaque, na interacção social. Esse papel foi entretanto reforçado com os meios ditos massivos e com as redes socias que acabam por indiferenciar público (ius publicum), de privado (ius

privatum), mesmo sendo estes tão distintos e contando que os problemas privados através da

construção mediática mediatizada se tornam problemas públicos (Sacco, 1995).

Vai fazer-se aqui um parêntesis, porquanto, esta indiferenciação entre público e privado (no equivalente às regiões de fachada e de traseiras ou bastidores de que fala Goffman) tem reflexo na opinião pública. Este pressuposto provoca a alteração na dicotomia que vem já desde a Antiguidade Clássica, donde decorre que depois de se ter mantido durante muitos séculos, passa hoje por aquilo que pode ser designado de um choque. Por estar a ser vivido, ainda não é possível verificar todos os seus contornos, mas há marcas empíricas que permitem levantar a hipótese das formas de mediação entre público e privado se estarem a alterar, vincando-se uma intersecção das esferas. Num mundo em que se aponta como característica da contemporaneidade a “substancial extensão da tecnicidade aos domínios da manipulação das relações sociais, da experiência subjetiva e do mundo da linguagem” (Rodrigues, 1990, p. 74), em relação às práticas comunicativas, a transformação foi radical. Na lógica de mercado em vigor paga-se para comunicar, quando antes da vaga de evolução das comunicações móveis, para conversar não era preciso gastar dinheiro; falava-se para o interlocutor e conseguia-se o propósito/efeito. Mas não só. Verifica-se também uma alteração dos papéis sociais – traduzida em configuração diferente daquela que era usual nas práticas entre sujeitos. Nos dias que correm, na ligação permanente à ‘rede’ (permitida pela flexibilização do trabalho e mesmo da esfera íntima familiar), assume-se uma predisposição cultural de reforço do status (e do ser popular entre pares), levando a que os impulsos ordenadores acabem por traduzir-se no habitus de que fala Bourdieu. Por outro lado, verifica- se ainda uma erosão do espaço e do tempo, que vai do estar no espaço público, mas dispondo de meios que permitem aceder ao privado, até ao estar ligado ao exterior (mesmo com intervenção pública) desde o espaço privado. Estas particularidades remetem para o que Milton Santos (1996) chama de “tempo de paradoxos [que] altera a percepção da História e

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desorienta os espíritos, abrindo terreno para o reino da metáfora de que hoje se valem os discursos recentes sobre o Tempo e o Espaço” (p. 30). Sobre as questões da metáfora ver Lakoff e Johnsen (1980), ou Noelle-Neumann (1995).

Relativamente a esta questão, o professor Wilson Gomes (1998) distingue do seguinte modo, entre esfera pública e privada:

“público é o âmbito da vida social em que interesses, vontades e pretensões que comportam consequências concernentes a uma colectividade apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional” (p.1)… “Contrasta com o Estado enquanto reconhece como instância legitimadora não mais o arbítrio e o segredo, mas a comunicação sem perturbações e o uso público da razão; contrasta com a esfera privada enquanto desconhece a validade do interesse e do desejo privado antes que estes se submetam e sejam aprovados numa discussão racionalmente conduzida onde quaisquer outros interesses e desejos expressos tenham as mesmas chances de contrapor-se e confrontar-se” (p.6).

Na sua análise, acaba por atribuir à primeira, um lugar central na produção de opinião: “A esfera pública é, ao mesmo tempo, o locus e a condição onde se gera a opinião pública” (p.4). Por sua vez, Habermas (2003), situa em relação ao espaço onde se exerce essa capacidade, traduzida na ideia esfera pública (já antes evocada, como espaço de acesso livre onde os cidadãos se encontram para debater e desenvolver racionalmente argumentos sobre questões da vida comum), descrevendo-ao como sendo:

“uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública reproduz-se através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa quotidiana” (p. 92).

Ora, este processo da compreensibilidade não ocorre de forma simples. Resultante de um dinamismo próprio, a evolução acontece de forma furiosa (pela velocidade estonteante) na sociedade. Daí resulta num contemplar crítico em que sempre se ‘olha de lado’ para a inovação, na medida em que ‘sai do que é norma’ e aceite até então, pela maioria. Como afirma Laraia (2009) a nossa herança cultural “desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade” (p. 67).

Isso não impede, contudo, a continuação do manifestar de pontos de vista e a apresentação de ideias/visões por parte das pessoas e/ou grupos, levando a que as opiniões se tornem forças e as relações entre opiniões traduzam conflitos de força entre os grupos, como sugere Bourdieu. Desse modo, as diferentes vozes da sociedade ganham visibilidade pública na afirmação de um sentido e olhar críticos, próprios do deslocamento da palavra a que se referem Lemos e Lévy (2010):

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“As pessoas sempre têm muita coisa a dizer, imagens e músicas a difundir, coisas a trocar, injustiças a denunciar, sofrimentos a expressar, histórias a contar, opiniões a oferecer, questões a colocar, poemas a declarar, testemunhos a compartilhar (...). E esse deslocamento da palavra, esse “poder de dizer enfim”, esse “mostrar” e “se mostrar” generalizado é que é uma das principais dimensões da revolução (…) em curso” (p.89-90).

O “poder dizer enfim” deve traduzir-se na opinião pública participativa, fomentando a prática da cidadania, o que leva ao fortalecer do capital social, que em reforço das visões já assinaladas é entendido por Rothberg (2006) como a “qualidade obtida a partir do fortalecimento generalizado do exercício dos direitos civis e políticos entre a população de um município, região ou país” (p. 156). Em consequência, vai surgir uma nova opinião que promove a intervenção, sendo promotoras de maior pluralismo, diversidade e, naturalmente, qualidade das respostas obtidas socialmente, com vista a um maior desenvolvimento, que é entendido “não somente em termos de crescimento económico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afectiva, moral e espiritual satisfatória” (Unesco, 2002) e que segundo Albrow (1996) é o “tema mais significativo na vida contemporânea e na teoria social desde o colapso dos sistemas comunistas” (p. 89).

Também esta questão da diversidade e da pluralidade merece alguma demora. Numa sociedade que é diversa (diferença, variedade, multiplicidade de realidades – cada entidade com a sua centralidade e seus sentidos simbólicos) e também plural (diferentes concepções e ideais), tem-se acentuado a multiculturalidade (representação da diversidade) – ver McLaren (1997). Nesse particular e no dizer de Touraine (1998) torna-se mesmo impossível “nas nossas sociedades dizer-se democrata sem aceitar a ideia de sociedade multicultural” (p. 242). Se McQuail (2003) refere que “a maior parte da teoria social preocupada com o interesse público valoriza a diversidade”, a Unesco, em 2005, em reforço da Declaração sobre a Diversidade Cultural de 2002 (sociedade que abrange os sistemas de valores com base nos direitos humanos), salienta o desenvolvimento dessa diversidade cultural, num quadro de democracia, de tolerância, de justiça social e de respeito mútuo entre os povos e as culturas, de modo a tornar-se indispensável à paz e à segurança a nível local, nacional e internacional. Por seu turno, o pluralismo (dentro do âmbito específico deste estudo) traduz segundo Kaitatzi- Whitlock (1996) a “qualificação da liberdade de informação” (p. 457) incluindo “que o número máximo de vozes seja ouvido num largo especto político e cultural (p. 458), o que leva à abundância comunicativa de que fala Keane (1984), numa valorização da opinião pública. Isto, apesar de, e seguindo Thompson (2000), a pluralidade de pontos de vista traduzida na expressão dos interesses gerais na sociedade, não ser garantida, atendendo à “concentração crescente de recursos nas mãos de conglomerados da multimídia” (p. 327) resultante do controlo dos meios de comunicação pelos grupos económicos. Este tema também e trabalhado por McChesney (1999) que escreve sobre a reforma estrutural dos

media, defendendo o não comercial e não lucrativo, com forte regulação e políticas anti- trust. Situando em relação às opções tomadas, em reforço dos factores já explicados antes,

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também estes factores agora sinalizados tiveram peso e nos conduziram no pensamento de ser devida a identificação da propriedade das empresas/grupos de media no distrito que estudamos.

Face a tudo o que vem sendo dito, qual o sentido que carrega ‘opinião pública’? Será o resultante de sondagens de opinião, que revelam a natureza estatística anónima da sua manifestação (Rodrigues, 1985), as mesmas que levaram Adorno e também Bourdieu a afirmarem que não existe opinião pública, pois ela é sempre condicionada? Ou será, tal como propõe Gomes (2000), um conjunto de ideias, juízos e pensamentos expressos por grupos políticos, económicos, sociais e mediáticos, que de certa forma apresenta consenso nos seus discursos, em relação a determinados temas de interesse colectivo?

A opinião pública, é uma construção que Pazim et al. (2012) dizem ser feita sobre “afectos - amizades, cultura, tradição, costumes, educação, inclinações, rumores entre outros – os quais são posteriormente racionalizados” (p. 25). Avançam ainda que, em vez de opinião pública, poderia ser considerada no plural “opiniões públicas” pois, alimentada “nos sistemas de valores, na cultura do ambiente, na educação e na política vigente se fundindo e interferindo no imaginário social” (idem) representa não só uma pessoa, ou determinado grupo, mas também segmentos alargados da sociedade. Concorda-se com esta posição enquanto fundamento conceptual, na medida em que se funda mais no social que vinca a interacção, sem com isso ser desmerecida a primeira.

Jenkins (2008) a par da convergência mediática (ver sobre este assunto Pellanda 2003; Deuze, 2004; Avilés, 2009; Domingo et al. 2011), considera que a inteligência colectiva e a cultura participativa, trazem ao público o ganho de novas possibilidades de expressão interventiva (reforçando consequentemente a sua capacidade participativa). Existe mesmo uma exigência social nesse sentido pois o “público, que ganhou poder com as novas tecnolo- gias, ocupando um espaço na intersecção entre velhos e novos meios de comunicação, exige o direito de participar intimamente da cultura” (p. 53). Ou seja, projecta-se para o que Muniz Sodré (1996) chama da sua reinvenção, levando a cultura a ampliar-se para além do conjunto de instrumentos de que dispõe a mediação simbólica (artes, ciências, leis língua, mitos) de modo a permitir ao indivíduo/grupo a abordagem do real (p. 85).

Tendo presente este sentido, importa destacar a contribuição da liberdade de imprensa para a concretização plena deste ideal, atendendo à sua capacidade de promover a mobilização, porquanto os media (os meios de comunicação) constituem “espaços de consolidação de opiniões a partir de sua capacidade de interpretar diferentes pontos do tecido social” (Gontijo, 2002, p. 31).

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