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A denúncia genérica nos crimes tributários e a sua flexibilização como ofensa aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e

CAPÍTULO V QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A PROTEÇÃO PENAL TRIBUTÁRIA.

2. A denúncia genérica nos crimes tributários e a sua flexibilização como ofensa aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e

dignidade da pessoa humana.

Conforme já abordado do decorrer deste trabalho, os crimes contra a ordem tributária são processados mediante ação penal pública incondicionada268. Assim, a

denúncia, peça inaugural nesta ação, deve atender os requisitos do artigo 41 do

266 COSTA. José de Faria; SILVA. Marco Antonio Marques da, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais., p. 545.

267 Ibid., p. 595. 268

Código de Processo Penal, sob pena de ser considerada inepta e, consequentemente, rejeitada pelo magistrado nos termos do artigo 395 do CPP.

Dentre estes requisitos encontra-se a qualificação do acusado ou as circunstâncias que possam identificá-lo, bem como a individualização da sua conduta na suposta prática delituosa, pois “a autoria de um delito é o liame que une o fato delituoso ao seu executor e o estabelecimento desse elo de ligação, via de regra, não se constitui numa tarefa difícil para o aplicador da lei penal, haja vista a maior incidência dos crimes denominados monossubjetivos ou de autoria única.”269

Em relação à “coautoria ou participação, a denúncia deve apontar a conduta de cada coautor ou partícipe individualizadamente.”270 No mesmo sentido, é o entendimento de Marco Antonio Marques da Silva e Jayme Walmer de Freitas, ao afirmarem “que a denúncia deve especificar claramente o comportamento de cada um dos acusados, ainda que diversos, como nos crimes de autoria coletiva”271.

Contudo, esta suposta facilidade em determinar o autor, coautor e partícipe de um determinado delito, tornou-se uma matéria mais complexa com o surgimento dos chamados crimes societários, ou seja, aqueles praticados por intermédio de pessoas jurídicas.

Nestes delitos, dentre eles os crimes contra a ordem tributária, são praticados pelas pessoas que compõe a administração de uma sociedade, sendo que nem sempre é possível apurar “a responsabilidade pela tomada das decisões no âmbito interno das empresas ou entidades, por vezes realizadas de modo colegiado.”272

269 SILVA. Marco Antonio Chaves da, A Autoria Coletiva em Crimes Tributários, p. 77. 270

GRECO FILHO. Vicente, Manual de Processo Penal, p. 144.

271 SILVA. Marco Antonio Marques da; FREITAS. Jayme Walmer, Código de Processo Penal Comentado, p. 105.

272 RUIZ FILHO. Antonio; SICA. Leonardo (coord.), Responsabilidade Penal da Atividade Econômico- Empresarial, p. 459.

Assim, diante da dificuldade em adequar a regra do artigo 41 do CPP às peculiaridades dos crimes tributários, bem como aumento da impunidade relativa a estes crimes, sugiram na década de 1970 os primeiros precedentes jurisprudenciais visando a inversão do ônus da prova e a relativização dos princípios da não- culpabilidade e presunção de inocência nestes delitos.

E o início deste novo entendimento ocorreu no julgamento do RHC nº 50.880273 pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em 25.5.1973, onde se

discutiu o recebimento de queixa por crime de violação do direito de marca, cuja previsão legal estava contida nos revogados art. 175 e 177 do Decreto-lei 7.903/45.

Na oportunidade o Ministro Relator Rodrigues Alckmin, endossando o parecer da Procuradoria Geral da República, proferiu o seu voto, acompanhado por pela maioria dos ministros da 1ª Turma, no sentido de negar provimento ao referido recurso, sob o argumento de que a mera exteriorização da vontade aliada à condição de diretor seria fundamento suficiente para o oferecimento da denúncia:

EMENTA: Habeas Corpus – Crime de violação ao direito de marca, de violação do direito de expressão ou sinal de propaganda e de concorrência desleal pelo desleal pelo desvio de clientela. Alegação de inépcia da queixa por falta de descrição da participação de cada um dos querelados nas ações delituosas – Improcedência – Recurso não provido.

No bojo deste acórdão, o Ministro Rodrigues Alckmin manifestou-se no seguinte sentido:

Acrescento ainda, que a alegação de que se não descreveu a participação de cada um dos querelados nas ações delituosas não atentar para a peculiaridade dos tipos mencionados. Não exigem eles a direita realização

dos atos materiais, que componham as ações, pelos próprios réus, mas

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a extrinsecação da vontade das pessoas físicas, às quais cabe deliberar sobre a atividade comercial da sociedade. Ora tal, deliberação cabe aos diretores, não havia descrever a participação de cada um, como se tratasse de atos materiais singulares que se fracionassem ou se distinguissem no processo executivo dos crimes.(grifo nosso)

Observe que, apesar de não se tratar de um julgamento relativo aos crimes tributários, o trecho do acórdão ora transcrito revelou o entendimento do STF à época no sentido de que o julgador, visando viabilizar a denúncia em casos de autoria delitiva, deveria desprezar a delimitação da autoria e o liame entre a conduta do agente e os fatos a ele imputados, numa clara demonstração da responsabilidade penal objetiva.

Além disso, a ausência da ligação entre a conduta do agente e o fato descrito como crime, na visão do Supremo Tribunal Federal era considerada uma mera omissão que poderia perfeitamente sanada ao longo da instrução processual.

Neste sentido foi o acórdão proferido nos autos do HC nº 51.451274, também da 1ª Turma do STF:

EMENTA – Habeas corpus. Crime contra privilégio de invenção. Alegação de inépcia da queixa, pela fatal de descrição da participação de cada querelado na ação delituosa. Improcedência. Queixa que contém os requisitos indispensáveis ao conhecimento da imputação e ao pleno exercício de defesa. Não é possível exigir, para a propositura da ação penal por crimes em matéria de propriedade industrial, que a queixa descreva a atividade de cada querelado nas deliberações reservadas tomadas na sociedade: tal exigência impune à persecução criminal destes delitos. Ordem de habeas corpus indeferida.

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É oportuno salientar, que dentro do voto condutor, ficou consignado que: ...

Desde que a queixa impute a violação do privilégio a todos os pacientes, a falta da discriminação da conduta de cada um destes poderia, no máximo, ser censurada como omissão suprível a todo tempo antes da decisão final.

Desta forma, com base neste posicionamento dos nossos tribunais acerca do tema, e também diante da suposta dificuldade em individualizar a conduta de cada agente na prática dos delitos societários, foi concedido ao Ministério Público uma condição de hipossuficiente na relação processual, o que lhe garantia o direito de apresentar uma denúncia genérica em casos de autoria delitiva.

No entanto, diante desta prerrogativa concedida ao órgão acusador, este passou a denunciar, em casos de crimes cometidos no âmbito de uma sociedade, todos os sócios com poderes de gerência que compunham o quadro societário. Esta denúncia, não necessitava descrever a contribuição de cada na suposta prática delituosa, pois havia uma presunção de que estes agentes teriam de alguma forma, em razão o cargo que ocupavam, praticado ou autorizado os atos.

Este foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos RHC nº 59.857/SP e RHC nº 53.362.

Portanto, num primeiro momento, percebe-se que, com o intuito de evitar o sentimento de impunidade nos delitos societários e visando combater esta nova modalidade de criminalidade que surgiu com a evolução das relações sociais, os nossos tribunais, mais precisamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, afrouxaram as garantias constitucionais, ao permitirem que, nestes delitos, não haveria a necessidade da descrição pormenorizada da participação pessoal de cada acusado no ato da denúncia.275

275 RHC nº 65.369/SP, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento 02/10/1987; HC nº 75.868/RJ, STF. 2ª Turma, Rel. Min. Mauricio Correa, julgamento 10/02/1998; HC nº 74.813/RJ, STF. 1ª Turma, Rel. Min.

No entanto, este posicionamento possibilitou aos órgãos de acusação a possibilidade de oferecer denúncias criminais onde a autoria delitiva era baseada totalmente no quadro societário de uma determinada empresa, ou seja, o parquet estava autorizado a denunciar um agente pelo simples fato dele compor o quadro societário na função de sócio gerente, sendo que cabia a este, numa clara inversão do ônus da prova, comprovar no decorrer da instrução processual, qual era a sua função dentro da administração da empresa e acima de tudo, provar que não teve qualquer ligação com o suposto crime praticado.

Assim, esta postura da acusação, corroborada pelos nossos tribunais à época, ocasionou a configuração da Responsabilidade Penal Objetiva, extremamente vedada no direito penal pátrio, pois apesar de não ser exigível nos crimes societários, a descrição pormenorizada da conduta de cada agente, deveria o órgão acusatório estabelecer um vínculo entre os denunciados e a empreitada criminosa as eles imputada, ou seja, deveria descrever ao menos o modo como cada denunciado concorreu para a prática delitiva, o que nitidamente infringia aos princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório, da dignidade da pessoa, devido processo legal, bem como à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica.)

Vale ressaltar que a responsabilidade objetiva não se presume, sendo extremamente necessário apontar, ainda que minimamente, a contribuição dos acusados para a prática do delito em questão, ou seja, a acusação deveria informar no bojo da denúncia como foi a atuação de cada acusado na suposta prática do crime de falsidade ideológica, e não apenas atribuir a eventual autoria, pelo simples fato dos mesmos serem sócios-gerentes da empresa autuada, como foi realizado.

Assim, visando adaptar as garantias constitucionais ao processo penal, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal reformaram o seu Sydney Sanches, julgamento 09/09/1997; RHC nº 906/RJ, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. José Cândido de Carvalho Filho, DJ 18;02/1991; RHC nº 1961/RJ, STJ, 6ª Turma, Rel. Min Adhemar Maciel, DJ 17/12/1992.

entendimento, exigindo mais rigor em relação aos requisitos para veiculação da pretensão punitiva estatal, priorizando assim, os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, como essenciais ao Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, foram os julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça:

CRIMINAL. HC. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA.

TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CRIME