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2 O SER HUMANO E A ALTERIDADE SOLIDÁRIA

2.3 Servos solidários: o amor na história

2.3.1 Descobrindo o Outro que habita em nós

Abrir-se ao advento e disponibilizar-se para o Outro requer, do sujeito histórico, um voltar-se para o Transcendente na possibilidade do Eterno. É preciso ser livre para descobrir o Outro que habita em nós. E ainda, reconhecer os desafios do tempo, na angustiante armadilha do nada. Nesse horizonte de busca, o judaísmo cristão introduziu a ideia da experiência religiosa a uma nova categoria que a chamamos de fé. Entende-se por fé a emancipação absoluta de toda espécie de ‘lei’ natural e, portanto, a mais alta liberdade que a pessoa possa imaginar: a de poder intervir sobre o mesmo estado ontológico do universo. Somente a liberdade é capaz de proteger a humanidade do moderno terror da história, isto é, uma liberdade que tem sua expressão na fonte e na garantia de Deus.

150FORTE, Bruno. A Essência do Cristianismo, p. 66.

151Idem. A Teologia, como Companhia, Memória e Profecia, p. 49. 152Idem. Teologia da História, p. 295.

Todo esse movimento da liberdade moderna, por mais que possa dar satisfação a quem a possui, torna-se impotente para justificar a história, na qual a humanidade busca ser sincera consigo mesmo, o que equivale às dores vivenciadas ao longo da história. Longe de fazer “concorrência à criatura, a transcendência do Deus vivo constitui a condição de possibilidade da sua liberdade, e por isso nela fundamenta a autêntica dignidade. Diante de Deus e com Ele, o homem decide por si mesmo, no horizonte do tempo e da eternidade.”153 Dentre a incessante busca pela liberdade, nasce o desejo, intrínseco do ser humano de ir descobrindo o Outro que habita em nós, e aponta o caminho em direção à Pátria, como condição do amor. Nessa visão teológica Forte propõe uma abertura ao discipulado no seguimento da liberdade:

[...] tal revelação de liberdade do mestre requer do discípulo o segmento da liberdade no amor e exige que a comunidade dos fiéis e o cristão singular sejam livres e libertadores. [...] Uma igreja livre significa, acima de tudo, uma comunidade que vive na radical obediência à Palavra de Deus; sua força e sua riqueza estão na incondicional dedicação ao Senhor. [...] Quem é verdadeiramente livre para o Pai e para os outros sabe se comportar diante do desconhecido, ou seja, crê para além de cada possibilidade, da possibilidade impossível, aquela que é a liberdade de Deus, revelada em Jesus Cristo, prometida na história. 154

Colocar-se na liberdade para o Pai e para os outros redime a história e contribui para a expansão da justiça e da esperança na trajetória humana.Perfilam-se assim alguns sinais que se reconhece nas inquietações do tempo como uma espécie de busca pelo sentido perdido da vida. Não se trata, porém, de um retorno à história,do limitar-se a olhar as crises e os sistemas orgânicos individualistas que esqueceram as razões da solidariedade. É preciso minimizar as estruturas capitalistas, que enaltecem a razão como única fonte de alcançar o mundo globalizado, esquecendo o lugar de Deus na existência. Trata-se aqui de encontrar um esforço capaz de resgatar a vida e reconhecer o horizonte último, em vista do qual se possa encontrar o Outro que habita em nós. Sobretudo, salvaguardar a esperança “para ser testemunho do Outro na companhia da vida e da fé das pessoas reais.” 155

A novidade de reconhecer o Outro, que acolhe a humanidade, aproxima-se da história do êxodo e tem a missão de transformar a vida, sob o impulso da cruz libertadora. Sabe-se, então, que Deus se revela e “Jesus oferece-se como a Palavra saída do Silêncio, o êxodo de Deus saído de si por amor a nós, o santuário vivo e santo, no qual a alteridade do Filho em relação ao Pai nos abre à Trindade de Deus”156 No encontro do êxodo humano que caminha

153FORTE, Bruno. L’ Eternità nel Tempo, p. 28-29. 154Idem. Exercícios Espirituais no Vaticano, p. 39-40. 155Idem. Teologia em Diálogo, p. 87.

em direção ao advento divino sente-se a manifestação da ternura do Transcendente que sustenta e anima o humano, ainda que seja pela Cruz solidária.

Esse itinerário que revela o rosto do Outro para a humanidade testemunha o tempo de penúria que aflige o coração humano. Entende-se que a crise, da modernidade, no reinado da exploração e da miséria, provém dos sistemas opressores. Como diminuir a dor pela qual passa a humanidade? Como falar de justiça para homens e mulheres sem esperança? Talvez o desafio ensine a agir corretamente segundo a prática da justiça. A essa concepção da crise existencial, Forte assinala um sistema opressor que precisa ser denunciado em caráter único, para um possível resgate de uma nova identidade.

O sistema de dependência e opressão é um sistema que procura manter os atuais privilégios das forças dominantes e o radical fechamento e defesa diante de tudo o que possa ser verdadeiramente novo. Para as massas oprimidas, é o sistema do medo e da resignação fatalista diante da condição do presente. [...] A lógica do lucro, alma dos processos que constituem as dependências, revela o seu poder desumanizante; mas ela se revela não menos alienante nas contradições da sociedade opulenta.157

Das profundezas dessas tensões surge uma nova consciência, podendo adotar o que constitui a práxis da justiça e da solidariedade que escuta o lamento do povo oprimido. É fundamental educar para atitudes transformadoras e acreditar que a utopia é possível. É ainda preciso redescobrir a beleza que salva, para que se tenha a consciência de que o Outro habita em nós. Em relação à dimensão da fé, a solidariedade é indubitavelmente uma virtude cristã que acompanha os seres humanos, no específico da gratuidade e da reconciliação com todo o universo. A carta encíclica Caritas In Veritate desafia a Igreja e a própria sociedade, neste crescente e de incisiva globalização, a repensar alternativas éticas para um desenvolvimento mais humano, no qual a caridade se expresse no amor.158 É pela luz da fé e por convicções humanizadoras que se promovem encontros que têm por meta transformar a vida e impulsionar mudanças necessárias nas relações comunitárias, tão esquecidas no mundo atual.

157 Idem. Jesus de Nazaré, p. 19.

158Bento XVI reflete na carta encíclica Caritas In Veritate: “Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, do qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurado pelo simples progresso técnico e por meras relações de convivência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (Cf. Rm.12,21) e abre a reciprocidade das consciências e das liberdades.” (Cf. Carta Encíclica Caritas .In Veritate, n. 9).